A perversão da democracia começa pelo (mau) uso da
linguagem política. Conceitos são esvaziados do seu significado, palavras são
ideologicamente utilizadas, e os discursos afastam-se de qualquer relação com a
verdade. Pior do que isto, ritos e procedimentos democráticos são de tal forma
deturpados, que terminam por servir à própria subversão da democracia.
O caso mais extremo, tão admirado por certos setores da
esquerda brasileira, é o da Venezuela, com seu “experimento” de “socialismo do
século XXI”. Na verdade, trata-se de uma mera repetição do comunismo do século
XX, tendo como único elemento diferenciador o fato de se dizer democrático
quando, na verdade, não respeita regras democráticas ou, melhor ditas,
republicanas.
O Judiciário é totalmente dominado, até recentemente o
Legislativo era completamente controlado, os meios de comunicação são
severamente reprimidos e cooptados por empresários laranjas do governo, a
Petrobras deles é usada para objetivos nitidamente políticos, milícias
aterrorizam a população e assim por diante.
Na fachada, a “democracia” lá seguiria vigorando, pelo
menos no dizer do atual governo brasileiro, que tem uma relação de cumplicidade
com os bolivarianos. A ideologia tomou completamente o lugar da diplomacia.
Note-se que o Itamaraty seguiu fielmente as orientações do PT, que se tornou
cúmplice da subversão da democracia naquele pobre país. Curiosamente, tal
política é dita defensora da “democracia”.
Em certo sentido, dá para entender. O cerne da questão
reside no que eles entendem por democracia. A verdade, certamente, não é a sua
preocupação. Bons exemplos têm aparecido nos últimos dias e semanas. Todos eles
mostram processos de perversão da democracia, como se a corrupção partidária
patrocinada pelo PT e partidos aliados sobre o Estado brasileiro encontrasse
aqui uma sustentação.
Mais do que isto, tal forma de utilização da linguagem
política poderia prenunciar um processo de subversão mesma da democracia. Não
estamos evidentemente lá, mas há graus de uma evolução que devem ser seguidos
atentamente, quando mais não seja na defesa mesma da democracia.
O ex-presidente Lula e o presidente do PT saíram em
uníssono na defesa do manifesto dos advogados, comprometidos em boa parte com
os envolvidos na corrupção do Estado. São os ricos “companheiros” que se
aliaram neste assalto ao patrimônio público. Que advogados defendam os seus
clientes, nada mais normal. Agora, que o façam dizendo defender o “estado
democrático de direito” é simplesmente hilário. Nenhuma pessoa de bom senso
poderia compartilhar tal disparate.
Acontece que parte destes advogados não consegue entregar
aos seus clientes o que tinha prometido, a saber, a impunidade. Assim era no
passado. Acostumaram-se tanto com esta situação, enriqueceram com isto, que
chegaram a considerar que a exceção era a regra, ou seja, a impunidade seria a
regra mesma de uma sociedade democrática.
Estão, portanto, perplexos diante de uma nova situação,
em que instituições republicanas como o Judiciário, o Ministério Público e a
Polícia Federal estão cumprindo rigorosamente com suas funções institucionais.
Tornam-se, agora, alvos, como se a responsabilização dos criminosos,
empresários, agentes, executivos ou políticos, não devesse ser a regra. A
perversão é total. Os defensores do estado de direito tornam-se, nesta visão
deturpada, os algozes da democracia.
Na verdade, o ex-presidente Lula e o presidente Rui
Falcão parecem estar advogando em causa própria. Não faltou nem mesmo a defesa
dos seus dirigentes presos e processados. Até hoje os condenados pelo mensalão
são considerados “guerreiros do povo” brasileiro e defendidos enquanto tais. Há
maior desrespeito ao “estado democrático de direito”, neste claro desprezo ao
Supremo Tribunal Federal e ao seu longo processo de julgamento do mensalão?
Ambos chegaram a afirmar que o Brasil viveria em um
“estado de exceção”, que substituiria o “estado democrático de direito”. O
presidente do PT chegou a dizer que o processo atual corresponderia ao pior
período do regime militar, em que não vigorava o habeas corpus. Qual é a noção
de regra que orienta tais declarações? Tudo sinaliza para a defesa do status
quo de aparelhamento petista do Estado brasileiro, com a privatização
partidária da própria Petrobras, hoje uma ruína de si mesma.
Para eles, valeria a exceção, a ausência de regras
democráticas, pois, no entender deles, só o feito por eles, nos malfeitos que
os caracterizam, poderia ser considerado democrático. Identificam, na melhor
tradição comunista, o partido com o Estado.
Do mesmo tipo é o discurso governamental e petista de que
o processo de impeachment seria um “golpe” contra a democracia. Desconsideram a
própria Constituição, da qual este instituto faz parte. Pior ainda, o Supremo
ainda recentemente afirmou a sua plena validade, embora tenha alterado alguns
dos seus ritos.
Ora, tratar do impeachment como golpe nada mais é do que
um desrespeito ao “estado democrático de direito”. Aliás, no passado, o PT
defendeu este instituto no impeachment do ex-presidente Collor e advogou,
mesmo, pelo impeachment do ex-presidente Fernando Henrique. Lá valia, agora
não!
Embora o Fórum Social Mundial, que está ocorrendo em
Porto Alegre, tenha perdido o seu glamour de antanho, ele não deixa de ser um
termômetro do que pensa o PT e os movimentos sociais que orbitam em seu
entorno. Ora, a marcha inaugural e os discursos de representantes do governo
caracterizaram-se pela “denúncia do golpe”. Note-se a sincronia entre essas
declarações, as declarações de Lula, o manifesto dos advogados e o pronunciamento
do presidente do PT. A sua menor preocupação é a defesa do “estado democrático
do direito”. Estão, na verdade, pregando a “exceção”, a eliminação das regras
republicanas!
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na
Universidade Federal do Rio Grande do Sul