'A Venezuela já implodiu, e é preciso haver um pacto',
diz historiadora
SAMY ADGHIRNI
DE CARACAS /Folha de São Paulo
Uma das intelectuais mais respeitadas da Venezuela, a
historiadora e cientista política Margarita López Maya diz que o país já
implodiu e que a única solução à grave crise econômica e social é um pacto
entre o governo chavista e a oposição, hoje no comando da Assembleia Nacional
unicameral.
Para López Maya, que recebeu a Folha em seu escritório, a
alta participação e o resultado contundente em favor dos opositores na eleição
legislativa de dezembro reflete uma mudança já em curso.
Ela questiona, porém, a viabilidade dos esforços
parlamentares para abreviar a Presidência de Nicolás Maduro e afirma que uma
renúncia seria a opção mais viável.
López Maya diz que o apego popular ao chavismo se esvai
aos poucos, como o desencanto de uma relação amorosa, e critica a mentalidade
venezuelana rentista que existia já antes de Hugo Chávez (1999-2013).
*
Folha - A transição já começou na Venezuela?
Margarita López Maya- O voto de dezembro foi em favor de
uma mudança política, que começou pelo Legislativo, agora independente do
Executivo. Isso abre caminho para uma transição democrática ou de qualquer
outra natureza. Estamos indo em direção a algo diferente. Maduro tem uma carta
na manga, que é ter sido designado por Chávez, mas é um homem incapaz,
ignorante e indeciso.
Ele está na política desde os 14 anos de idade, foi
chanceler, presidente da Assembleia Nacional, um alto quadro do PSUV [partido
chavista], mas revelou-se uma nulidade. Isso gera desgosto e angústia dentro do
chavismo, e alguns grupos se movimentam para removê-lo, mas não sei até que ponto
isso pode surtir efeito.
Há perspectiva de saída de Maduro no curto prazo?
Muitos cenários estão em aberto. O mais barato e menos
traumático é a renúncia, embora não haja sinal de que isso ocorrerá. Se a
situação se tornar economicamente insustentável, algo que deve acontecer neste
ano, pode chegar o momento em que ele terá de cair. Caso renuncie, a
Constituição obriga a convocar uma eleição. [O vice-presidente] Aristóbulo
[Isturiz] assumiria a Presidência por 30 dias até que se realize esta eleição, que,
aliás, o governo não teria condições de ganhar.
Acho que a aposta do governo é dar um jeito de conseguir
dinheiro para chegar até janeiro, porque, se Maduro sair a partir desta data,
Aristóbulo ficaria na Presidência até o fim do mandato [2019].
De todo modo, tem de haver acordo com a oposição. Mesmo
que haja eleições antecipadas e que a oposição conquiste o Executivo, ela
precisará compor com todo o aparato administrativo e os quadros militares
chavistas. E, se houver renúncia depois de janeiro, Aristóbulo também
precisaria de um pacto para se manter.
Como seria esse pacto?
O país já implodiu, e medidas econômicas são
indispensáveis para reverter a crise.
Mas antes de implantar um pacote, é preciso adotar
medidas sociais de emergência para proteger as pessoas que dependem de produtos
regulados, pois essas pessoas ficarão muito afetadas quando houver uma
desvalorização.
A pobreza subiu para 72%. Sem essas medidas, haverá fome.
Você não pode deixar as pessoas expostas à tempestade. Um pacto também é
necessário para renovar os poderes públicos. A oposição não pode fazer nenhum
acordo com o governo se não houver mudança no Tribunal Supremo de Justiça (STJ,
corte suprema), no Ministério Público e outros órgãos que precisam recuperar
sua independência e autonomia.
Um setor da oposição defende uma emenda constitucional
para abreviar o mandato presidencial e outro prefere um referendo revogatório.
Tudo isso é muito complicado. As leis não têm caráter
retroativo. Se você aprovar uma lei, ela vale para o mandato seguinte, não para
o atual. Além disso, uma emenda precisaria passar pelo TSJ, onde será
certamente bloqueada. Ou seja, este caminho não procede.
Um revogatório também é complicado porque as pessoas
estão mais preocupadas com seus problemas diários do que em se mobilizar numa
coleta de assinaturas e depois votar em um referendo. Acho que a oposição se
deu seis meses para encontrar uma saída com a esperança de que Maduro renuncie.
As divisões dentro da oposição e do governo dificultam a
definição dos respectivos candidatos em caso de eleição antecipada?
Não acho. Estamos falando de uma presidência para
conduzir um processo de transição durante três anos até terminar o mandato de
Maduro. Esse presidente teria que ter um perfil muito específico. É preciso
alguém disposto a se sacrificar pela pátria, um veterano, como foi Adolfo
Suárez na Espanha após a morte do [ditador Francisco] Franco [1975].
Poderia ser [o presidente opositor da Assembleia
Nacional, Henry] Ramos Allup, que tem 72 anos e está no final de sua carreira
política.
Do lado do chavismo é mais complicado, não porque há
muitos candidatos, mas justamente porque não há ninguém. Na ciência política
existe a figura do herói da retirada, o homem que poderia ajudar o chavismo a
sair de cena com dignidade. O PSUV teria que buscar alguém capaz de capturar
gente para além do chavismo. Poderia ser Aristóbulo.
O resultado de dezembro foi um voto castigo ao governo ou
um pedido para mudar o modelo?
As duas coisas. Houve participação massiva, de mais de
70%. Isso é quase um comparecimento em nível de eleição presidencial.
Como em quase todas as eleições na era Chávez, as pessoas
votaram como se fossem morrer caso não o tivessem feito. E é sempre um voto
contra ou o favor do modelo no poder. Por isso mesmo, por esse caráter
plebiscitário, foi um claro rechaço à gestão de Maduro. E isso significa que se
quer uma mudança não só dos atores, mas da maneira como o país está sendo
conduzido.
Não me atrevo a ir mais longe porque houve forte
abstenção no setor chavista. As forças de oposição conquistaram cerca de 400
mil votos a mais que na eleição presidencial de 2013. O voto chavista caiu em
mais de dois milhões. Há um desejo de mudança mas não necessariamente um voto
em favor da oposição que esteja claro.
Muitos dizem que a oposição ganhou graças a um voto
"emprestado".
Desde 2013 o chavismo vem perdendo voto. Até mesmo a
última reeleição de Chávez, em 2012, foi a sua vitória com menor porcentagem,
cerca de 54%. Na primeira vez, em 1998, ele teve 56%, depois 60% e 64%. Há um
deslocamento paulatino rumo à oposição, mas ainda não há um voto contundente em
favor da oposição.
Por que não há esse voto contundente em favor da
oposição?
O chavismo foi uma força política muito popular que teve
seu apogeu em 2006, quando a sociedade estava dividida entre uma maioria de
mais de 60% e uma minoria de 35 ou 38%. Hoje a coisa está se invertendo. É como
na vida amorosa, quando nos desencantamos pouco a pouco do parceiro. Muitos
ainda pensam: 'estou desencantado, mas não posso votar nesses inimigos de
Chávez e da pátria', mas cada vez mais se aproximam da oposição.
Falta proposta clara à oposição?
Essa história de que a oposição não tem mensagem é
relativa.
Há dois modelos de sociedade em disputa. Um é o que se
chama socialismo do século 21, centralizado, hierárquico, com forte
concentração de poder no Executivo e no qual tudo pertence e é regulado pelo
Estado.
O outro é capitalista, mais ocidental e moderno e supõe
uma democracia mais representativa. Mas essa alternativa não é completamente
clara porque há coisas que são politicamente custosas de dizer na Venezuela.
Ninguém na oposição fala do que fazer com a estatal
petroleira. A Venezuela é um país petroleiro, rentista e acostumado a um
petroestado que provê tudo desde antes de Chávez. Nos últimos 17 anos, porém, o
discurso chavista reforçou ainda mais essa visão de que o Estado tem que te
proteger, te dar casa e comida.
Estados podem prover infraestrutura, esgoto, terrenos,
créditos, empregos etc, mas casa? Aqui o governo se compromete a dar casa a
todos aqueles que não têm. É algo impossível de fazer. Há uma distorção muito
forte na cultura dos venezuelanos, que vem do rentismo e que faz com que seja
muito difícil corrigir o discurso político.
Tivemos uma crise pesada nos anos 1980, o governo ficou
muito endividado, a arrecadação petroleira caiu, a inflação ficou galopante e
havia escassez. A crise de hoje é a mesma, que não foi solucionada.
Nas vacas gordas, entram tantos dólares que vale a pena
importar qualquer coisa porque sai mais barato do que produzir aqui. E quando o
preço do petróleo cai, o aparato produtivo já ficou destruído. O petróleo se
manterá baixo e vai obrigar a buscar uma saída. Mesmo que suba, ficará em torno
de US$ 30 ou US$ 40 o barril, o que é totalmente insuficiente para a Venezuela.
A população está disposta a encarar um aumento da
gasolina?
Quando [o então presidente] Carlos Andrés Pérez aumentou
a gasolina [em 1989], deu-se o Caracazo [protestos que deixaram centenas de
mortos]. Mas quando [o presidente seguinte Rafael] Caldera implantou suas
medidas, o mal estar era tão grande que as pessoas praticamente estavam pedindo
alguma reação, e não houve o mesmo impacto.
Maduro já recuou três vezes de aumentar a gasolina, mas
as pessoas têm bom senso. O problema é que os efeitos de um aumento não serão
sentidos no curto prazo. Aumentar a gasolina não gera mais dólares, ao
contrário de uma desvalorização, que é necessária.
Por que não houve outro Caracazo apesar da percepção
generalizada de que esta crise é pior que a de 1989?
Naquela época ainda existiam meios de comunicação
independentes, que contavam o que estava acontecendo. Hoje há saques diários de
caminhões e vários episódios violentos, mas isso não sai na mídia, só nas redes
sociais.
O Caracazo já está acontecendo em pequenos episódios que
acabam rapidamente controlados. Além da censura, você tem militares por todos
os lados na rua. No Caracazo não era assim. A repressão de 2014 ainda é muito
presente. Além disso, qual seria a motivação de um novo Caracazo se não há nem
sequer alimentos e eletrodomésticos para saquear?