Artigo para O Estado de S. Paulo de 20/1/2017
Chamaram o exército…
Declara-se, como justificativa, que as Forças Armadas
nacionais entram na parada “pela credibilidade” que os funcionários do sistema
presidiário não têm. O presidente da Republica admite publicamente, portanto,
que a “falta de credibilidade“, vulgo corrupção, desses “servidores” está na
base da tomada das prisões pelo crime organizado que culminou nos massacres dos
ultimos 20 dias, mas que é impotente para fazer qualquer coisa a respeito senão
pedir vênia aos corruptos para coloca-los de lado, vez por outra, para tomar
dos criminosos os telefones, as armas e as drogas que estes regularmente lhes
servem nas celas.
A expectativa de eficácia dessa providência é,
naturalmente, a mesma das outras “meias-solas” que vêm sendo anunciadas para
“consertar a economia nacional” sem deter a hemorragia que a vai matando: essa
que mantem o país em profunda depressão moral e material.
“Nada de contrapartidas! Nem de arresto de bens por
calote! Demissões então, nem pensar! Nem um passo atras!”
No estado paralelo do crime organizado, com enclaves
inexpugnáveis espalhados por todo o grande favelão nacional, todo mundo
trabalha pelo fortalecimento da organização e o chefe elimina sumariamente quem
pisa a regra estabelecida. No estado nacional todos trabalham para se
locupletar e os chefes, em geral aqueles que tiveram maior sucesso nisso ao
longo da carreira, cooptam todos os que são flagrados jogando contra a Nação. A
grande novidade deste ultimo meio milênio é haver quem, do lado de dentro da
lei, esteja exigindo o cumprimento dela. Mas todos os demais lhes resistem como
sempre…
A declaração de independência dos presídios controlados
pelo crime organizado decorre diretamente dessa independência dos agentes do estado
brasileiro da lei e da vontade do Brasil. Os nossos “representantes”, os nossos
“servidores”, podem sempre se dar o luxo de ter vontades e comportamentos
próprios diferentes dos nossos impunemente. Escrevem leis que só valem para
eles e que nos impõem sem consulta; escolhem de quem vão cobrar ou deixar de
cobrar as que valem para o resto da nação. A mais “sagrada” de todas as leis
escritas por eles só para eles é a que estabelece que cada indivíduo posto para
dentro do estado não sai nunca mais. Ele e a sua descendência. Basta entrar.
Não estão obrigados a ser bons no que fazem, nem a mostrar resultados sob pena
de perderem tudo, como você e eu aqui no mundo real. Podem escolher se e quando
jogarão a favor da “empresa” sem que isso lhes custe nada. São indemissíveis.
São intocáve
O resto, desse marco inicial até a falência nacional e a
submissão do país inteiro ao crime organizado, o tempo faz. O raciocínio é
simples. Se você for contratar um empregado amanhã e começar a conversa
garantindo que a partir do ato da contratação ele será indemissivel para todo o
sempre e passará a decidir o valor do seu próprio salário, em 15 dias ele
estará na sua cama e você na casinha do cachorro. Nem o mais idiota dos
idiotas, individualmente, entraria numa roubada como essa. Mas como coletivo,
como sociedade, a brasileira tem sido muito mais que idiota. E ha tanto tempo
que nem casinha de cachorro tem mais. Está na rua, ao relento mesmo.
A dimensão psicológica do problema brasileiro tornou-se
maior que a sua causa original. Apesar da obviedade de tudo isso, apesar de
cada brasileiro conhecer pessoalmente tipos como os que o parasitam e a
obscenidade do resultado que colhem comparado ao que ele próprio consegue
suando, você pode ficar o dia inteiro na frente da TV, ler todos os jornais,
ouvir todos os “especialistas” e, à altura ja da centésima quinquagésima morte
por esquartejamento em 18 dias, do sexagésimo milésimo assassinato dos ultimos
12 meses, do décimo segundo milionésimo emprego perdido e do terceiro
aniversário da morte da economia nacional, não ver a óbvia, a ululante causa
original de tudo isso ser apontada uma única vez como tal. Os tres poderes,
para cujos titulares até as prisões são “especiais”, podem continuar
folgadamente falando apenas de si mesmos. E o quarto, que renunciou à condição
de “player” ao deixar de propor e expor soluções, vai a reboque num “lero”
infindavel sobre o nada; sobre modos “progressistas” ou “conservadores” de se
fazer as coisas que são luxos de gente que já se libertou e ficou rica.
nemai6Outros povos que viveram esse mesmo calvário
tomaram a si, com a arma do “referendo” por iniciativa popular, a aprovação ou
rejeição das leis escritas pelos seus representantes; instituiram o “recall”
para demitir eles próprios os desviados protegidos pelos colegas; aprenderam
que a única alternativa para o privilégio é a igualdade perante a lei e que
qualquer exceção aberta, por menor e bem “justificada” que seja, acaba
inevitavelmente no estouro da boiada. Mas para a alma latina e católica dos
nosso intelectuais, dos nossos jornalistas, dos nossos “revolucionários”, essa
solução parece muito pouco emocionante. Eles sempre começam cada batalha da sua
proclamada guerra contra a miséria brasileira renovando a sua rendição
incondicional; comprometendo-se a discutir todas as formas de “resolver o
problema” exceto pela remoção da sua causa fundamental. A indulgência plenária,
o perdão do comportamento pecaminoso mesmo que continuado, a graça conquistada
mais com as orações que com os atos; o privilégio alcançado, seja atraves da fervorosa
persistência do “concurseiro”, seja outorgado ao pobre mortal arrancado deste
vale de lágrimas pelo toque miraculoso do poderoso da hora, está sempre
pairando no horizonte. São fascinados pelo charme do privilégio. Botam sempre
fé que “seremos todos incluidos” nele um dia.
Enquanto for assim vamos como vamos: compra um carro
blindado, quem pode mais, uma arma, quem pode menos, e segue-se em frente
roubando ou sendo roubado, despedaçando ou sendo despedaçado.