Saúde Fon-Fon
Exames, cirurgias, terapias, medicamentos não são
acessórios tais como som, acesso à internet e tapetes para carros
28/08/2017 - 16h10
Ligia Bahia, O Globo
Equiparar seguro de saúde caro e com garantia de livre
escolha a carro de luxo tornouse moda nos EUA durante os anos 1970, quando o
sistema privado americano atingiu seu apogeu.
No governo Clinton, a expressão “plano Cadillac” retornou
ao vocabulário, mas como problema a ser solucionado por uma reforma da saúde.
A metáfora, com sentido negativo, foi utilizada durante o
debate e aprovação do Obamacare, que previu cobrar impostos de empresas e
clientes de renda alta para financiar a expansão de cobertura.
Durante o processo de aprovação da legislação que
regulamentou os planos de saúde, alguns empresários brasileiros, contrários à
inclusão dos idosos nos contratos, diziam que os velhos eram carros batidos.
Como a comparação pegou muito mal, foi substituída pela classe de passageiros
no avião. Passaram a dizer que, independentemente do conforto da viagem, todos
chegariam ao mesmo destino
A ideia de anciões avariados ficou intacta, mas o
embarque seria admitido para aqueles que pagassem muito mais.
Depois, os jargões contendo gradações para o pagamento
direto de gastos com saúde que podem ser muito elevados e persistentes foram
considerados de mau gosto e caíram em desuso.
Ficou razoavelmente estabelecido que os custos da moderna
atenção à saúde deveriam ser transferidos para um terceiro pagador, governos,
seguros sociais ou empresas privadas de planos de saúde.
De repente, a equivalência da saúde com carro ressurgiu,
como argumento de defesa da revisão das normas legais para permitir a
comercialização de planos com coberturas reduzidas.
Funcionaria assim: o cliente terá acesso ao que existe de
recursos assistenciais em um lugar, ou seja, quase nada em cidades pequenas ou
localidades de municípios grandes; ou pagará menos de mensalidade e mais quando
usar serviços. Não seria obrigatório que o plano-carro tenha motor, quatro
rodas e bancos. Peças separadas poderiam ser vendidas.
Empresas de planos e Santas Casas ficariam menos expostos
à crise econômica e a restrições dos orçamentos públicos. E quem perdeu o
emprego e o plano continuaria a recorrer a determinados serviços privados.
O ajuste seria perfeito não fossem os fatos. Existem
problemas de saúde muito prevalentes como doenças cardiovasculares, traumas,
cânceres, condições neurológicas, sofrimento mental. Pessoas doentes,
especialmente casos graves, necessitam atendimento imediato e completo. Exames,
cirurgias, terapias, medicamentos não são acessórios tais como som, acesso à
internet e tapetes para carros.
Plano de saúde significa pagamento antecipado para
situações futuras imprevisíveis. Contratos de pré-pagamento são compromissos de
transferência de riscos.
O pós-pagamento, isto é, a remuneração após cada
atendimento — como ocorre em clínicas privadas populares que oferecem consultas
e exames mais baratos — sempre existiu e recentemente cresceu, inclusive em
bairros residenciais de classe média.
Quando o pagamento é antecipado, e o atendimento básico —
essencial, para necessidades de saúde frequentes —, negado, a conta não fecha.
Qual é a solução?
Depende dos interesses dos envolvidos. Os impulsos que
movem a pesquisa e o progresso cientifico, tais como conhecer a verdade e
evitar erros, não são necessariamente similares aos de setores empresariais e
de autoridades governamentais. Estudiosos distinguem um sistema de atenção à
saúde de um subconjunto de oferta ocasional de serviços.
Para quem está do lado do conhecimento acadêmico, a
alternativa é a afirmação de um sistema público abrangente e qualificado e de
um setor privado autônomo, desvinculado de benesses públicas.
A proposta de plano “semiplano misto SUS” não está
conectada com qual quer teoria ou experiência concreta sobre organização de
sistemas de saúde e, sim, com a influência econômica e política de empresas
setoriais e as eleições de 2018. Assim, ao invés de debate e confronto de
argumentos, predomina a reiteração de certezas baseadas nas dicotomias
simplificadas entre estatal e privado e exibição de força.
O SUS não é um calhambeque. Tem até aqui obtido bons
resultados na redução de riscos e superação de agravos individuais e coletivos,
mas requer investimentos financeiros e reformas administrativas.
Do setor privado, na categoria biturbo ficam poucos.
Contam-se nos dedos os hospitais filantrópico-privados ou privados — quase
todos localizados nas regiões Sul e Sudeste — que se modernizaram. Unidades
isoladas públicas ou privadas, ainda que excelentes, não fazem as vezes de um
sistema de saúde.
Portanto, a divergência refere-se à busca de alternativas
efetivas de inclusão ou radicalização da segmentação assistencial, e não ao
fechamento ou estatização de serviços privados. “Gotejamento para baixo” ou
assumir indiferença moral perante o sofrimento da maioria e estimular a “sucção
dos recursos disponíveis para cima”? Depende de valores de solidariedade.
Questionar o “semiplano privado misto público” —
alcunhado de popular ou acessível — e as circunstâncias de tramitação de uma
proposição que desmantela o SUS é obrigatório para os não indiferentes.
(Foto: Pixabay)
Ligia Bahia é professora da UFRJ