Livro-reportagem revela segredos incômodos sobre a
guerrilha do Araguaia
“Borboletas e lobisomens”, de Hugo Studart, deve
desagradar tanto aos militares quanto aos comunistas.
Por Luciano Trigo, G1
O historiador e jornalista Hugo Studart está lançando um
livro que promete reacender o debate sobre a resistência armada à ditadura
militar: “Borboletas e lobisomens” (editora Francisco Alves, 660 pgs. R$ 79)
traz revelações bombásticas, que devem desagradar tanto aos militares quanto
aos que cultuam uma imagem heroica dos integrantes da guerrilha do Araguaia –
movimento armado que tentou promover uma revolução comunista no Brasil, entre
1967 e 1974, na fronteira entre os estados do Pará, Maranhão e Goiás, mas
acabou sendo dizimado pelos militares.
Resultado de nove anos de pesquisa e do acesso a
documentos secretos das Forças Armadas, o livro afirma, entre outras coisas,
que:
As revelações sobre os militares não são menos incômodas,
incluindo episódios de barbárie, como o do guerrilheiro que teve o pescoço
serrado enquanto ainda agonizava e o da guerrilheira que foi enterrada viva,
sem falar na tortura e nas execuções sumárias de 22 prisioneiros.
Nesta entrevista, Hugo Studart lamenta que o Brasil ainda
continue refém da mentalidade daquela época: “Boa parte das esquerdas se recusa
a fazer autocrítica e radicaliza o discurso em torno de um líder messiânico
condenado”, afirma. “De outro lado, parcela equivalente da sociedade alinha-se
a um candidato radical de direita que tenta se fazer líder messiânico ou, pior,
uma parcela que prega a volta da ditadura militar. Vejo esses dois fenômenos
como as faces de uma mesma moeda.”
A quem seu livro “Borboletas e lobisomens” irá desagradar
mais? Aos comunistas ou aos militares?
HUGO STUDART: Desagrada aos dois lados, pois busco
escrever história, ainda que para tal precise revelar segredos incômodos.
Difícil avaliar a quem vou desagradar mais. Sobre os militares, revelo em
detalhes a opção por abandonar as Leis da Guerra e as Convenções de Genebra,
aderindo às leis da selva. Em muitos momentos, aprovando a barbárie pura e
simples, com a decapitação de guerrilheiros e a execução de 22 prisioneiros.
Revelo ainda os nomes de todos os oficiais superiores que consegui identificar,
com suas respectivas funções e atos no Araguaia. Por outro lado, acabei por
descrever os erros identificados dos guerrilheiros e do partido, que batizei
sob a alegoria de “uivo dos lobisomens”.
Descrevo episódios polêmicos, como a de induzir as
guerrilheiras a fazerem sexo com até cinco companheiros para aliviar as
necessidades dos guerrilheiros machos, ou o recrutamento de adolescentes de até
13 anos para pegar em armas, ou ainda a deserção de três dos principais
comandantes guerrilheiros. Acredito, contudo, que a parte que mais vai
desagradar aos comunistas seja o fato de mostrar, ao longo da narrativa, que os
chefes do partido deixaram aqueles garotos à própria sorte, cortando as linhas
de abastecimento, sem armas ou munições, proibindo que recuassem sob pena de
justiçamento [prática de julgamento e eliminação de pessoas consideradas
traidoras], um crime quase tão grande quanto o crime dos militares que os
exterminaram.
Em que medida a sociedade brasileira ainda continua presa
à mentalidade da época da guerrilha?
STUDART: O maniqueísmo vulgar, sem dúvida, de uns
tempos para cá retornou com toda a força, colocando vendas na razão de muita
gente. A ditadura militar e a luta armada no Brasil se deram em um período
singular da história da humanidade, o qual o historiador Eric Hobsbawm define
como “Era dos Extremos” e o pensador Isaiah Berlim chama de “século mais
terrível da nossa história”. Eram os tempos da Guerra Fria, de maniqueísmo e
radicalismo político, tanto dos militares quanto das esquerdas. Com a queda do
Muro de Berlim, parecia que esses tempos haviam terminado. Contudo, voltaram
com toda a força em alguns países da América Latina, onde o populismo de
esquerda ascendeu.
Em nosso Brasil de hoje, somos assolados por um
maniqueísmo vulgar perpetrado por coxinhas e mortadelas. De um lado, boa parte
das esquerdas se recusa a fazer autocrítica e radicaliza o discurso em torno de
um líder messiânico condenado. De outro lado, uma parcela equivalente da
sociedade, no oposto contraditório, alinha-se a um candidato radical de direita
que tenta se fazer líder messiânico ou, pior ainda, uma parcela prega a volta
da ditadura militar. Vejo esses dois fenômenos como as faces de uma mesma
moeda. Sobre nosso fenômeno atual, invoco uma frase do pensador Bertrand
Russell sobre a Guerra Fria: “Por que as coisas precisam ser angelicamente
brancas ou diabolicamente negras”?
Depois de tantas obras já publicadas sobre a guerrilha do
Araguaia – incluindo “A lei da selva”, de sua autoria – o que seu livro traz de
novo?
STUDART: A Guerrilha do Araguaia é de fato um dos
episódios mais comentados da nossa história, mas, paradoxalmente, é dos menos
conhecidos. Nesta obra, busquei relatar as vidas daqueles jovens que, movidos
essencialmente por sonhos e esperança de influir na construção de um país mais
igualitário, se instalaram no coração das selvas amazônicas, sem armas ou
provisões, a fim de deflagrar uma revolução absolutamente impossível de ser
vencida.
Uma das questões que me intrigam é por qual razão os
guerrilheiros permaneceram na área, mesmo depois de constatada a derrota no
campo militar? Por que não tentaram se reorganizar em outro local quando as
Forças Armadas os cercaram? E, mesmo quando descobriram que o Exército estava
executando os prisioneiros, por que, afinal, muitos deles ofereceram-se à
imolação certa? Acredito que esse seja o ponto nevrálgico do livro: tentar
compreender o lado humano daqueles jovens, incluindo suas fraquezas e erros.
Como consequência, a pesquisa consegue descortinar as circunstâncias das mortes
da maior parte deles.
Que mitos você derruba e que segredos revela?
STUDART: Cada um dos 21 capítulos é um susto, tomado
por revelações. Eu mesmo, quando releio, me surpreendo com a quantidade de
informações inéditas, segredos incômodos que tanto os militares quanto os
comunistas vêm tentando manter ocultos. Desde a revelação de episódios de
barbárie, como um guerrilheiro que teve o pescoço serrado enquanto ainda estava
vivo, uma guerrilheira enterrada viva, ou ainda a descrição das execuções de 22
prisioneiros. O livro apresenta o nome de todos os comandantes militares, com
as respectivas cadeias de comando de cada campanha. Surpreendeu-me, por
exemplo, descobrir que o ex-deputado Sebastião Curió aparece como o 47º na
hierarquia dos que combateram no Araguaia. Mas talvez a revelação mais polêmica
seja o detalhamento da Operação Mortos Vivos, na qual sete guerrilheiros
fizeram delação premiada e trocaram de identidade dentro do programa de
proteção às testemunhas.
Afinal, os guerrilheiros do Araguaia lutavam para
restaurar a democracia ou para instituir um regime comunista no Brasil?
STUDART: Lutavam para instaurar a ditadura do
proletariado, um regime tal qual aquele preconizado pelo ditador soviético
Josef Stalin. Disseco esse assunto em um capítulo, “O racha do movimento
comunista”. Lembrando que, em 1955, depois da morte de Stalin, o novo líder
soviético, Nikita Kruschev, denunciou os crimes do antecessor, renegou as
revoluções armadas e anunciou uma nova estratégia de luta, a pacífica, dentro
das instituições públicas. O movimento comunista rachou no mundo inteiro,
inclusive no Brasil. O tradicional Partido Comunista Brasileiro, o PCB, fundado
em 1922 e que estava sob a liderança de Luiz Carlos Prestes, manteve-se sob a
batuta de Moscou e adotou a luta pacífica. Um grupo de dissidentes do Comitê
Central abandonou o PCB e fundo o Partido Comunista do Brasil, PCdoB,
alinhando-se com a China de Mao Tsé-Tung. Desde seu manifesto de fundação, em
1962, a nova organização preconizava a revolução armada como único caminho de
atingir a ditadura do proletariado. Em fevereiro de 1964, em pleno governo
democrático de João Goulart, os primeiros militantes embarcaram para o curso de
guerrilhas na Academia Militar de Pequim. No retorno, já sob a ditadura
militar, começaram a se instalar na região do Araguaia. Registro ainda que o
PCdoB só começou a aceitar a luta pacífica, dentro da atual democracia
representativa brasileira, a partir de 1996. Ainda assim, até hoje não renegou
oficialmente o stalinismo ou teceu autocrítica sobre o caminho da luta armada
ou da ditadura.
Você escreve que muitos guerrilheiros pousaram na mata
como borboletas, movidos pelo sonho de um Brasil mais justo e igualitário, e
acabaram se transformando em lobisomens...
STUDART: Para tecer a narrativa, optei por partir de
dois guerrilheiros que, quando os combates apertaram, acabaram por assumir a
liderança da guerrilha: Dinalva Conceição Teixeira, a Dina, e Osvaldo Orlando
Costa, o Osvaldão. Reza a lenda, entre os moradores da região do Araguaia, que
Dina virava borboleta e Osvaldão lobisomem. Mais do que personagens da história,
ou mitos populares, Dina e Osvaldão se transformaram naquilo que a psicologia
chama de arquétipos. A borboleta Dina representa a guerrilheira sonhadora,
miúda e bondosa, mas extremamente corajosa. Em qualquer outra cultura, a
borboleta simboliza a utopia da transmutação, ou da revolução, de buscar
superar o mundo rasteiro para, depois de um período de gestação em crisálida,
despontar rumo ao céu. Na alegoria em questão, rumo a uma sociedade mais justa
e igualitária.
Já o lobisomem Osvaldão, a representação do gigante
carismático, inexpugnável, implacável. Em qualquer cultura, o lobisomem
representa o homem dual, um cidadão cujo destino traiçoeiro o transforma em
homem-fera, quando perde as estribeiras, fica violento e deixa aflorar seus
instintos ancestrais e sua sede de sangue. Construo a narrativa a partir da
metáfora da borboleta, desde o período no qual aqueles jovens eram apenas
lagartas nas cidades, sonhando com um mundo melhor, até que renascem como
borboletas quando os militares chegam e a luta tem início. Em determinado
momento, quando instauram o Tribunal Revolucionário e começam a executar
camponeses suspeitos de colaboração com os militares, transformam-se em
lobisomens. Chegam a executar um companheiro, naquele que é um dos episódios
mais polêmicos do livro. Essa parte, o período dos lobisomens na floresta, é
aquele no qual o Partido Comunista vem há quatro décadas tentando esconder.
Uma das revelações do livro é que uma guerrilheira
manteve uma longa relação amorosa com seu torturador. Foi um caso de
"Síndrome de Estocolmo"?
STUDART: Relato esse episódio no capítulo “O Judas
do Evangelho”, que discute a busca obsessiva dos dirigentes do partido por
encontrar um “traidor”, um “delator” da guerrilha. Busquei mostrar que os
guerrilheiros que caíram presos, a começar por José Genoíno, não podem ser
apontados como traidores por conta das informações que foram extraídas pelos
militares. Ao contrário, são vítimas da mesma história. Nesse contexto, relato
o caso de uma guerrilheira, Criméia Almeida, codinome Alice, que também caiu
prisioneira. Ela acabou mantendo um caso amoroso por muitos anos com o militar
que a interrogou, um sargento do Exército que usava o codinome de Ivan. Há
muito que seus amigos e familiares sabem que ela manteve um caso com um militar,
mas não sabiam quem.
A questão mais delicada é que Alice levou o amante aos
sítios de camponeses aliados da guerrilha. Semanas depois, os militares mataram
cinco guerrilheiros justamente nos locais apontados pela guerrilheira. Entre os
mortos, o guerrilheiro André Grabois, codinome Zé Carlos, pai do filho dela.
Descrevo esse episódio em detalhes, com testemunhas. É muito comum a tal
Síndrome de Estocolmo, na qual prisioneiros se envolvem emocionalmente com
carcereiros. Pode ter acontecido isso entre Alice e Ivan. O problema maior é
que Alice, hoje sob a verdadeira identidade de Criméia, tornou-se a
personificação de Torquemada, uma caçadora de supostos traidores, implacável em
acusações contra os próprios companheiros que teriam feito revelações a militares
tentando sobreviver. Ressalto, contudo, que esse episódio é relatado com a
maior serenidade possível, dentro de um contexto maior. Nesse capítulo, acabei
sendo duro somente com os dois comandantes que desertaram, abandonando os
companheiros à própria morte, Ângelo Arroyo e João Amazonas.
Hugo Studart (Foto: Divulgação)
Fale sobre a pesquisa que resultou no livro.
STUDART: O livro é resultado da minha tese de
doutorado em História pela Universidade de Brasília, cujo título original é “As
memórias dos guerrilheiros do Araguaia”. Foram nove anos de pesquisa e escrita,
na qual tive acesso a cerca de 15 mil páginas de documentos secretos da
ditadura. Também acessei as memórias dos guerrilheiros sobreviventes, de
militares e de mais de 100 camponeses que participaram do episódio. A tese
ficou com mais de 600 páginas e 998 notas de rodapé, algo absurdo. Para
publicá-la em livro, passei dois anos reescrevendo tudo, retirando ao máximo o
academicismo, acrescentando novos episódios e buscando tecer uma trama com narrativa
a mais literária possível. Acredito que tenha conseguido.
Que resistências você enfrentou, como teve acesso aos
arquivos e quais foram as suas descobertas mais importantes?
STUDART: Desde 1998 venho formando um acervo pessoal
sobre a luta armada no Brasil, sobretudo a rural. Busco os documentos
principalmente com militares na reserva, que há décadas resguardam informações
relevantes em seus baús. Aliás, registro que quase totalidade das revelações
sobre aquele período emergiram de militares, que desde 1996 vêm dialogando com
jornalistas ou historiadores. Mas os serviços de inteligência das três Forças
Armadas jamais aceitaram abrir seus arquivos. A partir de 2011, passei a fazer
parte, na condição de representante da Universidade de Brasília, do Grupo de
Trabalho da Presidência que buscou os corpos dos desaparecidos do Araguaia. Foi
nessa condição que o então ministro da Defesa, Nelson Jobim, autorizou os
pesquisadores do grupo a acessarem os acervos dos extintos SNI e dos Centro de
Informações de Segurança da Aeronáutica, CISA. Há muitos documentos
interessantes nesses arquivos. O mais revelador, verdadeira Pedra de Roseta, é
um levantamento da Agência Central do SNI, de 1996, que aponta o destino da
maior parte dos guerrilheiros. Melhor: aponta para os números dos documentos
originais e onde estão arquivados. Sobre os documentos, relevante registrar que
há muito mito sobre os mesmos. Os militares brasileiros sempre evitavam
registrar em papel informações essenciais. O melhor ficou resguardado nas memórias
daqueles que participaram da repressão.
Dos guerrilheiros do grupo original, 13 ainda estão
vivos, mas nunca foram convidados a registrar suas lembranças da guerrilha. Por
quê?
STUDART: Dos 79 militantes comunistas que
participaram de alguma forma do episódio, 20 sobreviveram e 13 ainda estão
vivos. Paradoxalmente, ainda não haviam sido convidados a contar suas
histórias. O PC do B vem contando sua história com destaque especial aos seus
comandantes. Os militares também, ainda que façam opção muito mais por
silêncios, por hiatos e pelo oculto do que por revelações de fato relevantes.
Os trabalhos jornalísticos, por sua vez, reportagens ou livros, têm dado
destaque quase absoluto às violações dos direitos humanos perpetradas pelos
militares. E quanto às histórias protagonizadas por aquele punhado de jovens? O
que pensavam? O que sonhavam? Por qual razão deixaram suas vidas na cidade e
foram para lá? Como viviam? Onde estavam suas dores? E quanto a seus amores?
Mesmo os 13 sobreviventes jamais tiveram a oportunidade de abrir suas
lembranças e revelar suas histórias de forma organizada ou estruturada. O PCdoB
nunca os convidou a falar. Tampouco foram chamados a fazer depoimentos orais a
instituições de pesquisa. Não narraram a visão que têm sobre o grupo que
ajudaram a formar, ou suas trajetórias como sujeitos. Quando no Araguaia, todos
eles estavam à sombra dos heróis. E na penumbra permanecem.