Fernando Haddad expôs o papel de Lula com racionalidade
em São Paulo e soberba em Curitiba
Elio Gaspari, Correio do Povo
Para quem joga numa eleição radicalizada, Fernando Haddad
foi um colaborador impecável ao deixar a carceragem de Curitiba depois de
visitar Lula. Ele definiu o papel do ex-presidente no governo que pretende
fazer:
“Temos total comunhão de propósitos em relação a ele e o
diagnóstico de que o Brasil precisa do nosso governo e precisa do Lula
orientando como um grande conselheiro. Ele é um interlocutor permanente de
todos os dirigentes do partido e nunca deixará de ser. Não temos nenhum
problema com isso. Enquanto os outros partidos escondem os seus dirigentes, nós
temos muito orgulho de ter o Lula como dirigente.”
Essa declaração poderia ter sido planejada pelo
estado-maior de Jair Bolsonaro ou pelos urubus golpistas que pretendem
deslegitimar uma eventual vitória da chapa petista.
Horas antes, em São Paulo, durante a sabatina da
Folha/SBT/UOL, Haddad dissera algo racional, sem a soberba do comissariado:
“O presidente Lula, sem sombra de dúvida, na opinião da
maioria dos brasileiros, foi o maior presidente da história deste país. Ele é
um grande conselheiro e terá um papel destacado em aconselhamento, em falar de
sua experiência. Jamais dispensaria a experiência do presidente Lula.”
Uma coisa é elogiar Lula e seus oito anos de governo. Bem
outra é dizer que “não temos problema com isso”. Deviam ter, pois Lula está na
cadeia, condenado por corrupção.
Milhões de eleitores estão dispostos a votar em Haddad porque
ele é o candidato de Lula, mas quando se dá a um detento a condição de pai da
pátria, estimula-se a dúvida em quem espera de uma vitória de Haddad a volta
dos “bons tempos”, mas também teme que ela traga de volta o que há de pior no
comissariado.
O consulado petista teve duas faces, a do progresso com
Lula, e a do regresso com Dilma Rousseff, a da atenção para o andar de baixo e
a das roubalheiras com o andar de cima. Oferecer as duas ao eleitorado num
combo rancoroso é soberba.
Não se pode saber de onde está saindo o rancor petista.
Pode ser que venha da inconformidade de Lula, ou ainda do interesse radical de
uma parte do PT. Venha de onde vier, tornou-se um veneno que produz dois
efeitos. O primeiro é o estreitamento da base eleitoral de Haddad, mas sempre
se poderá dizer que uma eventual vitória transformará esse erro em asterisco.
No seu segundo efeito, o modelo do “conselheiro” reforça as ameaças à
sobrevivência das instituições democráticas. Não é preciso ser um gênio para se
perceber que há um farfalhar golpista no ar. Bolsonaro, como Donald Trump, diz
que teme uma fraude na contagem eletrônica dos votos. (Trump ganhou e não tocou
mais no assunto.) O general Hamilton Mourão sonha com uma nova Constituição,
redigida por sábios e sagrada num plebiscito. Coisa parecida, recente e
próxima, só em 2007, na Venezuela.
Se houver um segundo turno entre Haddad e Bolsonaro, e o
capitão reformado vier a prevalecer, será o jogo jogado. Se Haddad sair
vencedor, a tese da vitória sem legitimidade irá para a mesa. A teoria do
“conselheiro” serve à sua retórica.
As vivandeiras civis associadas à anarquia militar
contestaram a legitimidade eleitoral em 1889 e em 1930 (com sucesso), em 1950
(fracassando até 1954, quando Getúlio Vargas matou-se) e em 1955 (com a teoria
da falta de maioria absoluta de Juscelino Kubitschek). Coisa do século passado?
Em 2014, Aécio Neves contestou a vitória de Dilma Rousseff. Depois, contou que
a iniciativa foi uma “molecagem”, para “encher o saco”. Vá lá.