Artigo, Antonio Britto - Nós, os constituintes de 1988, fracassamos
O país onde a realidade é inacreditável esmerou-se em 72
horas, de 6ª feira a domingo (5 a 7 de outubro de 2018). O Brasil comemorou 30
anos da Constituição que implantou a democracia. Realizou eleições em que o
tema foi a fragilidade da mesma democracia. Escolheu como únicas opções para
fortalecê-la por meio de reformas (que exigem consenso) os maiores campeões em
rejeição.
É mais do que hora de aqueles que sonharam e construíram
o período democrático confessem seus erros e assumam seus fracassos.
Nós, os constituintes de 1988, erramos porque legislamos
para trás. Tudo o que fosse oposto à ditadura, nós aprovamos como bom ou
necessário. Para cada acerto em favor da sociedade e de mecanismos de controle
do Estado, constitucionalizamos a fragilização do setor público e sua submissão
às corporações.
Enfraquecemos o setor público, confundindo o Estado
autoritário (que mais do que nunca é necessário abominar) com o Estado
ineficiente e corrompível, também ele inimigo da democracia.
Nós, os democratas, permitimos que a expressão máxima do
regime das liberdades –eleições, partidos e Congresso Nacional– fossem em
grande parte transformados em estabelecimentos comerciais entregues a
frequentadores contumazes das páginas policiais. E a eles conferimos imunidade.
Nós, a alternativa respeitável da social-democracia,
transformamos o que poderia ter sido um grande, sério e confiável partido
nacional –o PSDB– em um camarim para a disputa de vaidades paulistas.
Silenciosas diante da corrupção. Covardes diante do governo Temer a ponto de
este ter feito o governo Dilma sumir do debate eleitoral dois anos depois de
seu histórico fracasso, como se nunca tivesse existido.
Nós, a alternativa de uma esquerda moderna e séria,
condenamos o que parecia ser um partido popular e transformador –o PT– a
tornar-se o maior gerador de corrupção da história do país. E, pior: acabamos
construindo um biombo de esquerda para a mais velha e reacionária das práticas
–um caudilhismo que também o país ainda não tinha vivido.
Nós, os liberais, por oportunismo ou medo, abandonamos a
pauta conservadora pela agenda do ódio. Passamos gradualmente a construir um
caminho de rejeição à primeira das regras democráticas: o respeito à
diversidade, o prazer na pluralidade e a convivência com as minorias.
Fizemos pior. Fechamos os olhos à inaceitável
proliferação e ao poder de algumas igrejas que, na verdade, são
estabelecimentos comerciais. Mais recentemente, concluímos a obra conservadora
fazendo com que o país voltasse a conhecer e discutir o nome de militares.
Nós, os que trabalhamos ou dependemos do Direito, tivemos
muito medo de dizer que caberia ao menos preservar o Judiciário, diante das
crises dos partidos, do Congresso e do Executivo.
Situado a metros do Congresso Nacional e do Palácio do
Planalto, o Supremo Tribunal Federal decidiu que a harmonia dos Poderes
aconselhava solidariedade no pior. E igualou-se no descrédito.
Passamos os 30 anos comemorados na 6ª feira construindo o
resultado de ontem. Não faltarão agora os que buscarão na miséria de grande
parte dos brasileiros (sem emprego e saúde) e na insegurança da outra parte
(diante da violência e da falta de eficiência dos governos) a explicação para o
que aconteceu. Como se deles fosse a responsabilidade pelo dia de ontem.
Será mais um –e o pior erro de quem é democrata. Os
brasileiros, de forma repetitiva, quase monótona, aprovam a democracia, exigem
a liberdade, mas querem governos que funcionem gerando o básico. Voltam-se ao
populismo em busca de comida. Ou deslizam para o autoritarismo em busca de
segurança.
Já sabemos o que esperar de quem vencer nesse 2º turno. E
não parece nada bom. Mas o que esperar de quem perdeu ontem, foi humilhado
pelas urnas e condenado pelos 30 últimos anos, não importa o partido?
Há um sabor extremamente amargo deixado por esse domingo
para todos que tenham bom senso. Cabe agora esperar que as três próximas
semanas, de forma quase milagrosa, desmintam os maus presságios. E cabe cobrar
com veemência que os expulsos da vida política ontem façam com atraso o
reconhecimento do quanto erraram, surdos diante de um sentimento que se
explodiu ontem e que vinha sendo construído lentamente ao longo desses últimos
anos.
Antônio Britto
Antônio Britto Filho, 66 anos, é jornalista, executivo e
político brasileiro. Foi deputado federal, ministro da Previdência Social e
governador do Estado do Rio Grande do Sul. Atualmente é presidente do Conselho
Consultivo da Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa).