Dias Toffoli: ‘O STF deve oferecer soluções em períodos
de crise’
Em entrevista exclusiva, ministro fala sobre a pauta
explosiva do Supremo até o fim do ano, o papel moderador da Corte e os excessos
da Lava JatoPor Policarpo Junior e Laryssa Borgesaccess
Dependendo do observador, a imagem acima pode ter vários
significados. Para o ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal
Federal (STF), ela retrata o triunfo da pacificação, um exemplo de como o poder
moderador do Judiciário pode agir para evitar rupturas e preservar a
estabilidade da democracia. Em entrevista a VEJA, o ministro confirmou que o
Brasil esteve à beira de uma crise institucional entre os meses de abril e maio
— e disse que sua atuação foi fundamental para pôr panos quentes numa
insatisfação que se avolumava. Toffoli não deu muitos detalhes, mas a
combinação explosiva envolvia uma rejeição dos setores político e empresarial e
até de militares ao presidente Jair Bolsonaro. O cenário, de fato, era
preocupante naquele momento. No Congresso, a reforma da Previdência, a
principal e mais importante bandeira econômica da atual administração, não
avançava. O governo, por sua vez, acusava os deputados de querer trocar votos
por cargos e verbas públicas. O impasse aumentou quando um grupo de
parlamentares resolveu tirar da gaveta um projeto que previa a implantação do
parlamentarismo. Se aprovado, Bolsonaro seria transformado numa figura
meramente decorativa, um presidente sem poder. Em paralelo, vazamentos
atribuídos ao Ministério Público mostravam que a investigação sobre o senador
Flávio Bolsonaro, o Zero Um, tinha potencial para gerar mais constrangimentos e
desgastes do que se supunha no início. A família presidencial teria se
beneficiado da chamada “rachadinha”, um artifício ilegal empregado por
políticos para embolsar parte dos salários de seus funcionários.
Simultaneamente, uma ala do Exército começou a discutir a incapacidade do
presidente de governar, enquanto outra, mais radical e formada por militares de
baixa patente, falava em uma sublevação contra as “instituições corruptas”. Um
dos generais próximos ao presidente chegou a consultar um ministro do Supremo
para saber se estaria correta a sua interpretação da Constituição segundo a
qual o Exército, em caso de necessidade, poderia lançar mão das tropas para
garantir “a lei e a ordem”. Em outras palavras, o general queria saber se, na
hipótese de uma convulsão, teria autonomia para usar os soldados
independentemente de autorização presidencial.
Longe de Brasília, a insatisfação também era grande.
Empresários do setor industrial incomodados com a paralisia da pauta econômica
discutiam a possibilidade de um impeachment de Bolsonaro. O ideal, diziam, era
que houvesse uma brecha jurídica que permitisse a convocação de novas eleições.
Foram informados de que não havia brecha. Em caso de impedimento, assumiria o
vice-presidente, o general Hamilton Mourão. “Se é para trocar, melhor que seja
logo”, pregavam. Na época, Carlos Bolsonaro, o filho Zero Dois, afirmou que
estaria em andamento uma conspiração golpista, apontando o dedo em direção aos
militares que despacham no Palácio do Planalto, mas sem citar nomes.
Nas redes sociais, a pregação radical contra o STF também
se intensificou. Grupos defendiam desde ações violentas até o afastamento de
magistrados que supostamente estariam impedindo o governo de implementar
projetos. Os ministros tinham a convicção de que os ataques eram insuflados pelo
governo. No Senado, com o aval de lideranças partidárias, foram colhidas
assinaturas para a criação da chamada “CPI da Lava-Toga”, cujo objetivo seria
averiguar suspeitas de corrupção no Judiciário. O clima entre os poderes era de
conflagração. O ponto de ebulição da crise tinha até data para acontecer: 10 de
abril, dia em que o STF julgaria a legalidade das prisões em segunda instância,
o que poderia resultar na libertação do ex-presidente Lula.
Quando o caldo ameaçou transbordar, o presidente
Bolsonaro, o ministro Dias Toffoli, o deputado Rodrigo Maia, presidente da
Câmara, e o senador Davi Alcolumbre, presidente do Senado, além de autoridades
militares, se reuniram separadamente mais de três dezenas de vezes para
resolver o problema. Convencidos de que a situação caminhava em uma direção
muito perigosa, costuraram um pacto que foi negociado em vários encontros.
Resultado: no Congresso, o projeto do parlamentarismo voltou à gaveta, a CPI da
Lava-Toga foi arquivada e a reforma da Previdência se destravou. No Planalto,
o vice-presidente Hamilton Mourão reduziu suas barulhentas aparições públicas,
e o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ministro-chefe da Secretaria de
Governo, um dos alvos das suspeitas de Carlos Bolsonaro, foi demitido. No
Supremo, Dias Toffoli pôs a polícia nos calcanhares de grupos que pregavam
ações violentas contra os ministros, adiou o julgamento que poderia soltar Lula
e concedeu uma liminar que paralisava as investigações sobre o senador Flávio
Bolsonaro. A Praça dos Três Poderes ficou, ao menos momentaneamente,
pacificada.
Dependendo do observador, a fotografia que abriu esta
reportagem também poderia retratar a preocupação do ministro Dias Toffoli com o
que está por vir. Por tudo o que se viu nos primeiros seis meses de governo
Bolsonaro, não é exagero dizer que os cerca de 300 metros que separam o
Planalto, o Congresso e o Supremo ainda são um campo minado. Neste segundo
semestre, o STF será protagonista de uma agenda capaz de elevar a temperatura
política a níveis de alta octanagem. De acordo com o que decidirem os ministros,
o ex-presidente Lula poderá ser solto, o ex-juiz Sergio Moro ser considerado
suspeito e processos que envolvem corruptos de vários matizes acabar anulados.
Isso para falar apenas de três casos relacionados à Operação Lava-Jato. O STF
também vai definir, entre outros assuntos delicados, o destino da investigação
sobre o senador Flávio Bolsonaro e concluir o julgamento que pode resultar na
descriminalização de drogas como a maconha.
Dias Toffoli terá a responsabilidade de conduzir essa
agenda inflamável. Como guardião da lei, cabe ao Supremo o juízo final sobre
qualquer assunto — goste-se ou não do veredicto. Em tempos de radicalismo
extremo, manter o equilíbrio é uma tarefa complicada. Na entrevista a VEJA, o
ministro fala da importância desse papel moderador da Corte em cenários assim,
afirma que não há mais preocupação com rupturas institucionais e que “as
melancias” soltas do governo Bolsonaro já caíram. Leia a seguir as respostas de
Dias Toffoli.
CRISE INSTITUCIONAL
Nos primeiros seis meses de governo, Dias Toffoli esteve
dez vezes com Bolsonaro. Para mediar a crise que se avolumava, o ministro teve
mais de 120 encontros com parlamentares, empresários e militares de alta
patente — alguns, importantes e influentes, que questionavam a autoridade do presidente
e pregavam seu afastamento. Dias Toffoli não revela o nome desses
interlocutores
“Não é incomum que a autoridade de um presidente da
República seja posta em xeque, testada logo no início do governo. E foi o que
aconteceu. O presidente Bolsonaro também recorreu às ruas para reafirmar sua
autoridade. Isso causou algum tipo de estranhamento. Tive várias conversas com
parlamentares e meu foco foi sempre reforçar que o presidente foi legitimamente
eleito, tem a respeitabilidade de quem recebeu 57 milhões de votos e seus
projetos e programas precisam ser vistos com esse potencial. Foi uma mudança
radical de perfil. Imagine o governo como um caminhão transportando melancias.
Tem melancia que rola para a direita, outras para o lado esquerdo e algumas vão
cair do caminhão. Aliás, já caíram. Isso acontece em todo início de governo.”
O PACTO PELA DEMOCRACIA
O pacto entre os poderes foi anunciado no dia 28 de maio.
Era uma sinalização política. Os setores envolvidos já haviam sido convencidos
das consequências deletérias de um processo de impeachment ou mesmo de alguma
medida que reduzisse os poderes do presidente
“O Supremo deve ter esse papel moderador, oferecer
soluções em momentos de crise. Estávamos em uma situação de muita pressão, com
uma insatisfação generalizada. Mas o pacto funcionou. A reforma da Previdência
foi aprovada, as instituições estão firmes. Agora o grande desafio é o país
voltar a crescer. O Supremo estará atento para que julgamentos não impeçam ou
atrapalhem o projeto de desenvolvimento econômico, que é tão necessário. O
Estado de direito, a repartição dos poderes e a democracia são uma construção
cultural que precisa ser sempre regada e preservada.”
LAVA-JATO
Desde que foi deflagrada, em março de 2014, a operação
resultou em acusações criminais contra 438 pessoas apenas em Curitiba, e 159
réus foram condenados. No Supremo, onde tramitam os processos de políticos com
foro privilegiado, apenas um ex-deputado foi julgado até hoje — e ainda nem
está atrás das grades. Isso está na raiz de críticas e ataques ao Supremo
“A Operação Lava-Jato e o combate à corrupção só existem
porque os poderes constituídos, principalmente o Judiciário, fizeram dois
pactos republicanos, um em 2004 e o outro em 2009. Toda a legislação que
permitiu a colaboração premiada e a Lei de Organizações Criminosas estava
descrita nesses pactos. A Lava-Jato é um produto dessa institucionalidade. Em
determinado momento, alguns agentes e apoiadores da Lava-Jato começaram a
atacar a institucionalidade porque integrantes do Parlamento ou do Executivo
tiveram algum tipo de envolvimento em corrupção, em desvios, em caixa dois. Aí
parecia que havia uma institucionalidade corrompida e outra pura. Não é nem uma
coisa nem outra. Aliás, a Lava-Jato não pode ser vista como uma instituição,
porque ela é produto dos poderes. É bom reforçar que, sem esses marcos
regulatórios aprovados pelo Congresso Nacional, sugeridos pelo Judiciário e
sancionados inclusive pelo presidente que foi condenado em razão da própria lei
por ele defendida no passado, não haveria Operação Lava-Jato.”
EXCESSOS DA OPERAÇÃO
O Supremo decidiu que é inconstitucional obrigar alguém a
comparecer perante os investigadores para prestar depoimento. A derrubada das
conduções coercitivas foi um duro golpe nos métodos de investigação do esquema
de corrupção na Petrobras. Neste segundo semestre, os ministros devem se
debruçar sobre delações premiadas e prisões preventivas mais longas — pilares
do sucesso da operação. A continuidade da Lava-Jato, por isso, estaria ameaçada
“Não se pode afirmar que uma discussão no Parlamento ou
uma decisão no STF seja contra a Lava-Jato. Não se podem pegar decisões
pontuais e daí dizer que o Supremo é contra a Lava-Jato, que existem juízes
bons e juízes maus. Isso não tem nenhum fundamento. O combate à corrupção é
extremamente necessário, mas o controle judicial serve exatamente para impedir
os excessos. Os excessos que vierem a ser cometidos na Lava-Jato, seja pela
polícia, seja pelo Ministério Público, seja pelo próprio Judiciário, serão
também declarados ilegais pelo STF. Estão completamente erradas as avaliações
de que a Lava-Jato está sob ameaça. O combate à corrupção tem de persistir, mas
precisa ser feito dentro dos limites constitucionais, até para que não haja uma
anulação futura.”
ABUSO DA RECEITA
Esposa de Dias Toffoli, a advogada Roberta Rangel foi
investigada secretamente pela Receita Federal em uma operação suspensa por
ordem do STF. As investigações atingiram centenas de pessoas, entre elas o
ministro Gilmar Mendes e todos os seus familiares, incluindo a mãe dele, já
falecida
“Parece que a Receita Federal extrapolou suas
prerrogativas. Fui o relator da transferência de informações, desde que fossem
globais, entre os agentes investigativos. O Supremo agiu muito mais
favoravelmente aos meios de persecução que contrariamente. Mas não podemos
admitir os excessos que saem e agridem os direitos e garantias individuais. Não
podemos deixar que exista no país um Estado policialesco, um Estado sem limites
de direitos e garantias individuais. Essa não é a garantia para quem cometeu
ilícito, essa é a garantia de todo cidadão, inclusive o cidadão que jamais
cometeu um ilícito, para não ser perseguido pelo guarda da esquina.”
SUSPEIÇÃO DE MORO
Mensagens obtidas ilegalmente dos telefones dos
procuradores da força-tarefa revelaram que o atual ministro da Justiça
interferia nas investigações da Lava-Jato e as orientava, o que é ilegal. O STF
vai julgar uma ação que pede a suspeição do ex-juiz. Dependendo da decisão,
processos já julgados, incluindo o do ex-presidente Lula, podem até ser
anulados. VEJA questionou Dias Toffoli sobre a atuação de Sergio Moro
“Ele é ministro da Justiça (VEJA então insistiu para que
o ministro comentasse exclusivamente a atuação de Moro como juiz). Ele não é
mais juiz. Qualquer opinião que eu der aqui a respeito do juiz Sergio Moro
poderá ser confundida com a minha opinião sobre o ministro Sergio Moro.”
LIBERTAÇÃO DE LULA
Como presidente do STF, Toffoli tem adotado a postura de
um jogador de xadrez, medindo a temperatura política do momento antes de
anunciar a deliberação de um tema suscetível de despertar turbulências. A
legalidade das prisões após condenações em segunda instância é um exemplo. O
assunto foi retirado de pauta em abril para evitar o acirramento de ânimos
políticos. Agora, será pautado de supetão, sem amplo aviso prévio, para tentar
minimizar eventuais manifestações contra o tribunal
“Penso que o julgamento da segunda instância não vai mais
provocar tumulto algum. É bom que se diga que não é o ex-presidente Lula que
está em julgamento, como muitos acham. O Supremo não vai decidir se solta ou
não o ex-presidente nesse processo. O que será analisado é uma questão
constitucional abstrata que vai dizer se é possível ou não prender alguém sem
justificativa após a condenação em segunda instância ou se devemos aguardar o
trânsito em julgado. Há um dispositivo constitucional que diz que ninguém
poderá ser considerado culpado até decisão transitada em julgado. É isso que
será decidido.”
POLÊMICA
- Resultado de julgamento pode ser o primeiro passo para a descriminalização de
drogas como a maconha
POLÊMICA - Resultado de julgamento pode ser o primeiro
passo para a descriminalização de drogas como a maconha (Lunae
Parracho/Reuters)
LIBERAÇÃO DAS DROGAS
Para além dos processos relativos à Lava-Jato, o STF vai
decidir se um usuário de drogas deve responder criminalmente pelo porte. Em
outras palavras, haveria a descriminalização, o primeiro passo para a
legalização, como defendem alguns ministros da Corte. O tema é polêmico. Se
dependesse exclusivamente de Toffoli, o caso não seria decidido pelo tribunal
“Eu particularmente tenho a preferência de respeitar a
competência do Congresso para essas soluções. A principal questão não é
descriminalizar ou não as drogas, e sim saber qual política pública o Estado
brasileiro tem para os usuários de drogas e para o combate ao narcotráfico. Daí
a minha dificuldade como juiz, já que o juiz julga um caso menor dentro de um
problema de dimensão muito maior. É a política que tem de resolver isso.”
AMEAÇAS AOS MINISTROS
Desde o início do governo Bolsonaro, Dias Toffoli se
mostrava incomodado com ameaças a integrantes do tribunal. Em março, ele
determinou a abertura de um inquérito para investigar a origem dos ataques que
ele e outros ministros vinham sofrendo e designou para conduzir o caso o
ministro Alexandre de Moraes — que gerou polêmica ao censurar uma notícia
publicada nos sites O Antagonista e Crusoé
“O inquérito já produziu um efeito extraordinário, com a
redução de mais de 80% dos ataques às pessoas, aos membros da Corte e à
instituição. Houve uma confusão em relação a esse inquérito, porque o que se
procurou passar é que o Supremo iria investigar, acusar e julgar. Não é nada
disso. Enquanto houver a necessidade de uma defesa institucional, o inquérito
vai continuar. São ataques contra a própria democracia. O objetivo é criar
instabilidade. Sobre a polêmica, aquilo ali não é censura. Censura sempre é
prévia. Se há uma matéria que não corresponde à verdade, ela pode ser retirada
do ar.”
O PASSADO E O PRESENTE
Aos 51 anos e prestes a completar dez como ministro do
STF, Dias Toffoli ainda é atacado por críticos por ter sido indicado ao cargo
pelo ex-presidente Lula e, antes disso, ter sido subordinado funcionalmente aos
petistas José Dirceu e José Genoino, ambos condenados e presos por corrupção
“Como eu disse na sabatina, uma vez juiz, a minha função
é cumprir a Constituição e as leis do país. É o que eu tenho feito. Tenho a
consciência tranquila. O estigma não incomodava e não incomoda. A origem da
indicação é uma página virada no momento em que você veste a toga. Trabalhei
para o Genoino e votei pela condenação dele no mensalão. Tenho uma atuação
independente e autônoma. Na presidência, tenho priorizado a defesa da
instituição e o diálogo com os colegas. No Conselho Nacional de Justiça,
estamos levando a alfabetização aos presídios, implantando projetos de formação
profissional e a biometrização. É isso que importa.”