Dica de literatura - Trocando em miúdos

Alfredo desligou o telefone, sorriu, fechou o livro, trocou de óculos, levantou-se e, ainda sorrindo, foi escolher um vinho. 


No caminho entre a poltrona e a adega, como se falasse com uma pequena platéia de pessoas sentadas ao seu redor, adaptou a primeira frase de Ana Karenina ao telefonema: 


– Todos os homens descasados e felizes se parecem entre si; os infelizes são infelizes cada um à sua maneira. – Recitou, olhando em direção às cadeiras vazias.


O telefonema havia sido curto: 


– Alfredo?

– Sim, quem fala?

– Breno… Breno “da Bateria”, meu amigo…

– Ô Breno! Quanto tempo!? Que surpresa… Tudo bem contigo?

– Tudo bem, tudo bem… Tocando a vida… 

– Maravilha…

– Olha só, estou na corrida, e fora do Brasil; volto na sexta. Right to the point: lembra da Carolina? Lá da escola? Quem não lembra, né? Pois então… Sábado tem uma recepção na casa dela e você está intimado. Amanhã eu passo o endereço direitinho.

– Sábado? É a turma da escola?

– Não. Da escola, só nós e a Carolina, eu acho. Descasados e solteiros! Ela que está organizando tudo. Aliás, ela que perguntou se você aceitaria. Eu nem sabia que você tinha se separado!

– Há dois anos que retomei a leitura dos clássicos, meu amigo!

– É… ela até mencionou algo sobre um livro, não entendi direito… irmão, preciso desligar. Amanhã mando o endereço, ok?

– Claro! Bom falar contigo – concluiu Alfredo, começando a sorrir.


No sábado, traído por um incurável mau hábito, Alfredo chegou quando todos já falavam um pouco mais alto. Carolina, que nos tempos de colégio era inacessivelmente bela e rica, agora, ainda bela, e, a julgar pela casa, ainda mais rica, veio receber o convidado.


Primeiro, na porta, a troca de amabilidades pessoais. Depois, com Alfredo sendo guiado pela mão até onde estava o grupo, uma apresentação geral:


– Pessoal, este é o Alfredo – disse, elevando a voz sobre as conversas, enquanto desviava dois passos para apanhar um velho exemplar de Veinte poemas de amor y una canción desesperada, em uma prateleira. 


Com o livro de Neruda em mãos, Carolina prosseguiu apresentando o novo convidado:


– Foi o Alfredo quem primeiro me incentivou a ler poesia e quem me deu, lá nos tempos do colégio, este exemplar. Alfredo, seja bem-vindo e saiba, desde já, que a pauta da nossa próxima “Noite em Verso” será a obra do poeta Ricardo Eliécer Neftalí Reyes Basoalto, mais conhecido como Pablo Neruda – finalizou.


Alfredo foi saudado com uma salva de palmas, gritos de incentivo e uma discreta piscadela de seu amigo Bruno.


A festa transcorreu como tinha que ser. Apenas Alfredo, um pouco preocupado, não conseguia parar de cantarolar Trocando em Miúdos - como nos versos do Chico, ele também nunca tinha lido Neruda.

Artigo, Astor Wartchow - O medo

Advogado

Desde a identificação do problema, ainda em solo chinês, e a notificação pública - pela Organização Mundial da Saúde-OMS - de que estávamos diante de uma pandemia, transcorreu um conturbado debate mundial.

Recuperadas as memórias de enfermidades graves do passado, e por analogia, prosperaram modos tradicionais para prevenção sanitária e tratamento do vírus.

Mas, concomitantemente, também surgiram varias pregações médico-sanitárias divergentes acerca das possíveis e adequadas providências individuais e coletivas.

Mais frequentes no decurso do tempo, essas hipóteses passaram a ser objeto de polítização, de ideologização e, inevitavelmente, de "caça às bruxas". "Sem comprovação científica!", o mantra e resposta que se lhes atribuia, com ironia e desdém.  

Logo, sem que saibamos com precisão o que passa a ser ação, reação, ou o que é consequência de ambas, em moto contínuo neurótico, inúmeros e polêmicos procedimentos determinados por governos e comunidades científicas locais e internacionais "alimentam" a confusão.

Não à toa, quantas vezes ouvimos falas inconsistentes em torno da "curva, da projeção do pico, do pior já passou, do abre e fecha, do aglomera aceitável, de medicamentos e procedimentos, a segunda onda, a grande onda, o festival gaucho de bandeiras, etc.."? Ou, pasmem, as falas da OMS, desde o princípio e a cada dia com menos convicções e mais e mais dúvidas?

Embora verdadeira a ação da moléstia, a reação das autoridades estatais e científicas, entretanto, é insuficientemente clara, qualificada e uníssona, o que explica a propagação do medo como antídoto imediato.

Alicerces sociais e tradicionais, a exemplo de meios de comunicação, universidades, centros científicos, entre outros, foram contaminados paulatinamente pelos jogos de vaidade, interesses e poder. Pior: como se uma religião fosse, a ciência resultou dogmatizada!

Ouso dizer que duvido que um dia saibamos com exatidão o que foi feito, o que poderia ter sido feito, o que não deveria ter sido feito. Sejam quais forem as respostas possíveis e prováveis, uma é indiscutivel: o medo venceu.

O futuro dirá se seremos capazes de restaurar os sentimentos coletivos de coragem e de esperança, neste momento ambos cruelmente desidratados pelo poder do medo!.



1 anexo

José Paulo Cairoli - Não era só fluxo de caixa!

Meu pai sempre dizia que a pior verdade é melhor que uma mentira. Parece que alguém também acaba de dizer isso ao governador Eduardo Leite (PSDB). Enfim, nos últimos dias, ele deixou de tentar emplacar a narrativa de que a reforma tributária gaúcha era um esforço de modernidade e assumiu que é um projeto para manter a arrecadação no patamar atual. A defesa ficou mais bonita - mesmo que a proposta continue ruim.

Em movimento recente de aproximação com a imprensa, o governador redobrou a aposta no caos. Disse que, se a reforma simplesmente for rejeitada, ele enviará na sequência um novo projeto para prorrogar as alíquotas atuais de ICMS. Isentou-se da responsabilidade pelo que virá no futuro e jogou a responsabilidade toda no colo do Parlamento.

Porém, o governador continua esquecendo de tudo o que disse para vencer a eleição. Parece não lembrar da teoria de que a situação do Rio Grande do Sul se resolveria com um simples ajuste no fluxo de caixa. Esquece da promessa de reformas profundas no Estado em até dois anos, para que depois pudesse reduzir impostos. A verdade é que, na campanha, para vencer a eleição, o governador adotou um discurso macio, recheado com promessas vazias. Agora, quando os fatos cobram a conta, ele empurra a responsabilidade para o Parlamento e pede ao cidadão que pague a fatura.

Quem ainda não deu as caras foi a tal profunda reforma. A CEEE, a Sulgás e a CRM ainda não foram privatizadas. Da extinção de estatais e fundações, quase não se fala mais. O Regime de Recuperação Fiscal ainda não foi assinado. As concessões de estradas não decolaram. O número de secretarias aumentou, embora a qualidade dos serviços apresentados não tenha melhorado. Aliás, a pandemia mostrou que as áreas meio podem ser enxugadas ainda mais, sem prejuízo à saúde, à educação e à segurança - que devem ser as verdadeiras prioridades de um governo.

A solução para o RS é a redução do Estado. Não a taxação dos produtos da cesta básica e o aumento do IPVA. Para ter fluxo de caixa, é preciso ter dinheiro. E dinheiro só se consegue com desenvolvimento.

Engenheiro, produtor rural e ex-vice-governador do RS