Um homem é assassinado por seguranças de um supermercado, após uma discussão banal. Essa teria de ser a manchete da manhã de sexta-feira, 20 de novembro de 2020, que deveria ter-nos indignado; sem qualquer referência à cor da pele da vítima ou de seus assassinos.
As circunstâncias do fato, a data simbólica em que ocorreu; o momento político do país, e a força das narrativas impostas por grupos sedentos por uma morte conveniente; desviam-nos da principal pergunta a ser feita, ante tamanha brutalidade: por que se mata e se morre no Brasil?
As pessoas não são mortas no Brasil pela cor da sua pele, mas por sermos um país submerso na desigualdade social e econômica, falta de oportunidades, injustiça, ignorância e, sobretudo, desapreço absurdo pela vida humana.
O “brasileiro cordial” não existe. É um mito atrás do qual se esconde um indivíduo no limite da brutalidade, e mergulhado na violência.
Este país apenas não explodiu em uma revolução armada avassaladora, a um custo incalculável de vidas, por termos a violência cotidiana como válvula de escape para as nossas tensões, ódios e rancores.
Ao invés de matar ou morrer atrás de barricadas, justificando a mortandade por algum questionável objetivo, o que por si exige um mínimo de coesão em torno de uma causa, algo que também não temos; prefere-se fazer isso cotidianamente; num assalto em uma sinaleira, dentro de um ônibus ou numa rua qualquer; na periferia, numa zona nobre ou nas áreas rurais.
Sem justificativa ideológica, mata-se para roubar um tênis, um relógio, uma pasta escolar, uma carteira com mísera quantia dentro, ou objetos sem valor; numa discussão doméstica, no trânsito, no bar; ou numa prosaica noite de compras num supermercado de subúrbio.
Aproximadamente 60 mil pessoas morrem assassinadas no Brasil todos os anos, pelos mais variados motivos, geralmente fúteis; mas todos eles como fruto de todas essas características citadas. E morrem brancos, negros, índios e todas as variedades étnicas decorrentes de um povo absolutamente miscigenado.
Fala-se muito da prevalência de assassinatos na população negra sobre os demais grupos, para apontar esse dado como prova de motivações raciais para esses crimes. A verdade que não se reconhece, é que esse grupo morre mais por ser, em primeiro lugar, vítima da pobreza e da desigualdade social; e não pela cor da sua pele.
Ao apontar o racismo como causa dessas mortes, a culpa é jogada para a sociedade, e se retira a responsabilidade daqueles que deveriam apontar alternativas para reduzir o abismo social existente no Brasil, não o fizeram após décadas no poder, e hoje bradam pelas ruas que “vidas negras importam”, estando eles próprios entre seus algozes.
Não temos aqui uma sociedade WASP (White, Anglo-Saxon and Protestant), a exemplo da americana; conceitual e estruturalmente racista. O racismo, no Brasil, é fruto de posturas e condutas individuais; e a discriminação tem menos a ver com a cor da pele, e mais com a condição econômica do indivíduo; o que não quer dizer que elas não se alimentem uma da outra.
A nossa discriminação é sem cor; por mais que busquem dar uma a ela grupos que, com discursos ideológicos, fortalecem a divisão, o conflito e a violência; aos quais não combatem, mas disseminam; e da permanência da miséria e ignorância, da qual sobrevivem.
Não se diga que essa é uma confortável, e previsível, opinião de um branco (tão branco como possa se considerar um latino-americano); que até os 13 anos foi criado por uma família negra; teve a infância embalada por canções em Língua Iorubá, cresceu no “Areal da Baronesa”, área quilombola de Porto Alegre; e que conhece a realidade do seu povo negro, podendo dizer que não é diferente da que já viu em outros lugares do país; onde a discriminação se dá pela pobreza, e não pela cor.
E, assim como em todo o Brasil, na capital dos gaúchos não se morre ou se mata pela cor da pele, mas porque a vida humana passou a não ter nenhum valor.
Essa é a verdade inconveniente.
A outra, que deveria nos mover, é de que todas as vidas importam.
E isso os brasileiros parecem cada vez mais, e tristemente, esquecer.
*Advogado em Brasília/DF.