Artigo, Guilherme Baumhardt, Correio do Povo - O caso Ford

A decisão da montadora norte-americana Ford de encerrar as atividades nas fábricas brasileiras só surpreendeu aqueles que não acompanham o mercado da indústria automotiva. Ao longo dos últimos anos, a empresa fechou unidades na Austrália, França, Bélgica, entre outros países. Além disso, se desfez de marcas tradicionais, como Volvo e Jaguar, vendidas para grupos da China e Índia. Para completar, em anos recentes, em decisões de difícil compreensão, optou por encerrar a linha de produção de carros consagrados no mundo, como Fusion e Focus, para concentrar esforços nos chamados utilitários esportivos – os chamados SUVs. Pode ser uma tacada genial, mas pode passar a impressão de uma empresa sem rumo.


De qualquer forma, a decisão serviu para reacender o debate sobre os incentivos fiscais, que durante anos foram combustível da disputa entre os Estados do país na atração de investimentos. Enquanto a guerra fiscal existiu havia dois caminhos possíveis: ou entrar na briga e atrair grandes empresas, ou ficar de fora e ver empregos, renda e oportunidades desembarcarem em outras regiões. Até 1998, o Rio Grande do Sul esteve no primeiro grupo e a implantação da General Motors, em Gravataí, é fruto disso. Com a chegada do PT ao Palácio Piratini, em 1999, houve uma guinada e a consequente perda da Ford, que desembarcou em Camaçari, na Bahia.


Após o anúncio da montadora muitos resolveram revisitar o passado e conferir ao ex-governador Olívio Dutra uma espécie de talento profético. “Viram como são essas empresas? Ainda bem que o bigode avisou!”, dispararam nas redes sociais, como se para os baianos as duas décadas de fábrica funcionando fossem uma tragédia. Óbvio que não. Ruim é agora, com a decisão de encerrar as atividades e deixar milhares de pessoas desempregadas e famílias sem renda. Mas esperar raciocínio lógico da turma talvez seja pedir demais.



A guerra fiscal é boa? Seguramente, não. Mas ela escancara e deixa evidentes alguns problemas. O primeiro deles é o nosso “manicômio tributário”, expressão que certamente passa longe do politicamente correto, mas que resume de maneira perfeita o nosso sistema de impostos, um cipoal que desafia os profissionais da área contábil, tamanho o emaranhado de regras, alíquotas e atualizações pouco compreensíveis promovidas diariamente – sem exageros. O problema, porém, não fica restrito à simplificação. Existem outros gargalos que, se não forem resolvidos, farão o filme Ford se repetir com alguma frequência. A reforma trabalhista aprovada durante a gestão Michel Temer foi bem-vinda, mas é insuficiente. Empregar no Brasil ainda é pouco convidativo. Assinar uma carteira de trabalho ainda causa calafrios no empreendedor, especialmente micro e pequenos empresários. Não deveria ser assim.



Enquanto não encararmos estes dois pontos de frente, a política de incentivos fiscais será a compensação para distorções na outra ponta. Se em uma das mãos o país oferece ao empreendedor um sem-fim de dificuldades na hora de pagar impostos e contratar mão-de-obra, a outra mão oferece vantagens tributárias como contrapartida aos infortúnios que parecem enraizados no nosso ambiente de negócios. Não é preciso ser empresário ou um gênio para concluir que à medida que a torneira do incentivo se fecha, naturalmente os outros problemas crescem e se transformam em um desestímulo à permanência de qualquer empresa em solo brasileiro. O caso Ford tem outros elementos, inerentes à gestão da própria empresa, de decisões equivocadas e erros administrativos, mas serve de alerta: ou melhoramos o ambiente de negócios, ou veremos outras empresas desistindo do país.


Rodrigo Zeidan - O Brasil está quebrado, mas não falido

Professor da New York University Shangai (China) e da Fundação Dom Cabral. É doutor em economia pela UFRJ


Pela primeira vez em pouco mais de dois anos, o presidente acertou: o Brasil está quebrado. Por causa disso, o ano de 2021 será mais um ano de desemprego e os preços em alta. Só há uma meta para o ano que se inicia: sobreviver ao vírus e à crise econômica.


É difícil quebrar um país, e, diferentemente do que insinua o presidente, não há como uma nação quebrar por causa de eventos externos. A bancarrota nacional é sempre endógena, resultado da incapacidade de um governo em articular a confiança necessária para renegociar dívidas internas ou externas.


Se o mercado para uma empresa desaparece, não há o que fazer a não ser liquidar ativos, pagar o que puder e fechar as portas.



 

Contudo, a maioria das falências não é causada por mudanças disruptivas de mercado, mas acontece em empresas teoricamente rentáveis, por incompetência gerencial em se adaptar a um choque qualquer. Isso gera desconfiança dos detentores de dívidas na capacidade da empresa em honrar suas dívidas e inviabiliza a continuação das atividades.


O Brasil está quebrado, mas não é por falta de recursos. Um governo, se bem gerido, tem algum controle sobre seus custos públicos, receitas (tributos) e até mesmo sobre a taxa de crescimento nominal de sua dívida (Selic). Assim, qualquer dívida pública, mesmo externa, pode ser rolada, from que a sociedade acredite no plano de refinanciamento.


O atual descalabro das contas públicas não é o resultado da pandemia e do teto de gastos. Todos os governos mundiais se endividaram para sustentar famílias e empresas afetadas pela pandemia, e, nos que há limites formais de gastos públicos, estes foram temporariamente suspensos.



 

O déficit dos EUA em 2020 foi de US $ 3,8 trilhões, 15% do PIB (Produto Interno Bruto), e a previsão é que o rombo das contas públicas seja de 6% ao ano, em média, até 2030.


Nos países emergentes, o déficit público foi, em média, de 10,6% do PIB em 2020, exatamente o mesmo valor que no Brasil (aqui, o déficit nominal, que inclui informações e juros, atingiu 15% do PIB).


O Orçamento russo para 2020, aprovado em 2019, previa um superávit de 0,8% nas contas públicas e teve que ser revisto para o governo não descumprisse como leis locais. O PIB na Índia, país muito mais pobre que o Brasil, caiu 9,5%, o déficit público explodiu e nem assim o governo local quebrou.


Choques externos aleijam, mas falta de credibilidade mata. Quem sobreviveu à década de 1980 passou por ciclos de promessas, desajustes e caos; cada vez que um plano econômico fracassava, um índice voltava mais forte.


O caso brasileiro lembra o da Turquia, onde as desavenças entre o presidente da República e o banco central foram o estopim da crise cambial de 2018. Com. Em alta e sem confiança, a economia turca continua patinando desde então.