Jornal VAlor, 09/04/2024
A escalada do empresário americano Elon Musk, dono da rede social X, contra o Judiciário brasileiro deu-se em um contexto de insatisfação das “big techs” com as normas da Resolução 23.732, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para as eleições municipais deste ano. A resolução, publicada em 27 de fevereiro, determinou em seu artigo 9-E a responsabilidade solidária civil e administrativa das plataformas quando não removerem conteúdo nos “casos de risco”.
O dispositivo tornará as plataformas corresponsáveis, ao lado dos autores, dos conteúdos que venham a ser considerados ilícitos pela Justiça Eleitoral ao longo do processo das disputas municipais. O propósito da norma foi induzir os provedores a reforçarem a moderação das suas publicações. É exatamente o oposto do que Musk faz à frente do X. Desde que assumiu o comando da rede social Twitter, o empresário não apenas a rebatizou como afrouxou drasticamente a moderação da rede.
Para o professor de direito Ricardo Campos, da Universidade de Frankfurt, a resolução permitiu ao TSE suprir, mesmo que de forma precária, a falta da votação pelo Congresso Nacional de um novo marco regulador paras redes sociais. Um dos pontos do projeto de lei 2630, parado na Câmara dos Deputados, é o que permite a remoção de conteúdo sem a obrigação de ordem judicial.
“Este é o modelo que está em vigor desde o ano passado na União Europeia. Elon Musk chegou a anunciar que ia se retirar da Europa, mas não só não o fez como está cumprindo a legislação”, afirmou.
Musk evitou o confronto na Europa, mas o contexto de enfrentamento no Brasil é maior, desde que o presidente Jair Bolsonaro passou a buscar uma ruptura institucional atacando o sistema eleitoral, processo que culminou na declaração de sua inelegibilidade no ano passado e na sua inclusão em um inquérito sobre tentativa de um golpe de Estado. O X é um dos pilares da estratégia de comunicação do bolsonarismo. Musk encontrou-se com Bolsonaro durante a campanha e é um aberto admirador de outros líderes extremistas como o ex-presidente Donald Trump.
“Tem havido uma demanda da direita brasileira para que Musk intervenha no debate”, afirma o especialista em redes sociais Pablo Ortellado, para quem não está claro o motivo pelo qual o empresário de origem sul-africana chegou ao extremo de anunciar sua disposição de não cumprir decisões judiciais. “Ele é um falastrão que muitas vezes não leva a cabo suas ameaças”, diz. O que para Ortellado está claro é que é cada vez mais provável que o Judiciário brasileiro tome a decisão mais extrema que a legislação permite, que é o banimento da rede do país.
Esta possibilidade é prevista expressamente no Artigo 12 do Marco Civil da Internet, de 2014. Para Ortellado, a medida teria repercussão mundial e provocaria uma deterioração do quadro institucional brasileiro. “Aprofundaria o processo de polarização no país, com reforços na argumentação de que o Judiciário age de maneira autoritária e de que as redes sociais apostam na ruptura”.
Por outro lado, segundo o especialista, se Musk de fato descumprir decisões judiciais, acionaria “um alerta para o Judiciário do mundo inteiro, sobretudo o da Europa” sobre a falta de compromisso do empresário com a institucionalidade. “O que se sabia até agora é apenas que ele encara qualquer tipo de regulação como cerceamento à liberdade da expressão, mas não se estabeleceu uma relação direta”, afirmou ao Valor Ortellado.
Em publicação na própria rede social de Musk, Ortellado escreveu que a proibição de contas inteiras, a seu ver, caracteriza censura prévia. “É impedimento de alguém publicar porque a Justiça entende que ela pode vir a cometer ilícito”, afirmou.
Ortellado também criticou o Judiciário por falta de transparência. “Até o momento não temos uma lista das contas suspensas. Não sabemos se foram 10 ou 500, como bolsonaristas alegam. A maioria dos inquéritos corre sob sigilo”, diz, em uma referência às suspensões determinadas por Moraes no contexto das investigações no inquérito de atividades antidemocráticas.
Segundo Ortellado, “algum endurecimento da Justiça certamente foi necessário para conter as ações antidemocráticas. Porém o 8 de Janeiro aconteceu há mais de um ano e as suspensões de conta permanecem, sem boa justificativa”.
A disposição de quem quer que seja em cruzar a linha da desobediência judicial indica uma ameaça direta à democracia, segundo o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal Carlos Ayres Britto, que foi presidente do STF em 2012, ano em que se aposentou.
“A liberdade de expressão é absoluta nos moldes de sua razão de ser, que é o da preservação da democracia”, disse o ex-ministro, para quem “a plataforma social é passível de regulação do poder público, do contrário corremos o risco de o direito ser afastado como norma de conduta, o que leva à autocracia”.
Para Ayres Britto, “a democracia não pode ter um encontro marcado com o seu próprio funeral”. O ex-ministro participou da audiência pública conduzidas pela ministra Cármen Lúcia que instruiu a elaboração das resoluções do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) para as eleições deste ano.
Na visão de Ayres Britto, o STF é guardião exclusivo da Constituição, que tem a democracia como “continente” e a liberdade de expressão como um dos conteúdos desse continente. “O Poder Judiciário está habilitado a dar a resposta a toda e qualquer ação que ameace a defesa do Estado e das instituições”, disse.
Ayres Britto reconhece, contudo, que “há uma zona de penumbra” na interpretação das normas. “O direito visto pela perspectiva dos seus princípios funciona como moldura semi-aberta. Cabe mais de uma interpretação”.