Os olhos, ah, os olhos
Mario Sergio Conti
A crise é tão vertiginosa que apreender a sua verdade
parece inviável. O torvelinho destruidor pôs na roda economia e justiça,
política e polícia, passado e presente. Nada fica de pé na crise, inclusive a
sua análise. Qual energia desatou o furacão? Aonde vai ele?
Saíram dois livros que oferecem elementos para tatear
respostas. Como o turbilhão está a mil, eles não trazem teses acabadas, e sim
hipóteses. São coletâneas de artigos que, nos melhores momentos, dão o que
pensar. Nos piores, repetem clichês demagógicos.
Na primeira categoria está "Por Que Gritamos
Golpe?" (Boitempo, 174 págs.). No plano factual, o destaque é uma
reportagem que rastreia as fontes financeiras do Movimento Brasil Livre. Marina
Amaral investiga os vínculos do grupo com fundações cacifadas pelos irmãos
Koch, dois bilionários americanos que insuflam grupos de extrema-direita mundo
afora.
No terreno da pesquisa, o grupo capitaneado pelo
professor Pablo Ortellato aplicou questionários nos protestos pró e
anti-impeachment. Fez o mesmo em marchas de secundaristas e pela legalização da
maconha. E chegou a descobertas contraintuitivas.
Nas duas últimas passeatas, por exemplo, os participantes
eram mais jovens, tinham renda menor e repudiavam com maior vigor a política do
que os das duas primeiras. Como os pró-impeachment, eles acham que o PT é
corrupto. Mas, à semelhança dos manifestantes favoráveis a Dilma, pensam que os
ganhos sociais na era petista foram significativos.
Há lacunas na compilação. Só Michel Löwy trata da
situação internacional. Apenas Leda Paulani se demora na economia. Existe certa
tendência, entre os 30 articulistas, a minimizar o papel da corrupção na
derrocada da presidente.
Ou então se reclama que a caça aos corruptos se concentra
no PT –o que pode ser incorreto, caso Cunha, Renan, Sarney, Aécio e
intermináveis eteceteras venham de fato a ser incriminados.
Não é feita uma investigação profunda da política de
Dilma depois da reeleição. Há talvez pudor em responsabilizá-la agora, quando,
meio fantasmagórica, ela aguarda o veredito do Senado. No segundo livro,
"A Resistência ao Golpe de 2016" (Canal 6 Editora, 425 págs.), a
disposição contemporizadora fica caricata.
Na maioria dos 103 artigos, tudo é resolvido de antemão:
o imperialismo americano usou os reacionários locais para golpear mulheres,
negros e gays, e assim impediu que o Florão da América desabrochasse.
Dado o rebanho que ora faz mééé em torno de Temer, a
afirmativa pode ter o seu sal de verdade. Mas daí a erigi-la em motor da crise,
sem qualquer elemento comprobatório prévio, é história para boi dormir. E só se
o boi for politicamente correto.
A caricatura aparece num ensaio que sataniza Sergio Moro.
O autor tem a risível audácia de comparar o juiz paranaense ao paranoico
clássico, analisado por Freud, Daniel Schreber –aquele que, ao comer, jurava
que engolia pedaços da língua...
O bestialógico fulgura num texto que relata a saída da
presidente do Planalto. Como não se lê um algo tão lancinante todo dia, vale
citá-lo extensamente:
"A testa, altiva, passava a imagem dos que não
desistem. Os olhos, ah, os olhos. Estavam mergulhados em um lago de lágrimas
que escorriam para dentro e os deixavam mais redondos, como o globo térreo a
boiar no espaço".
Com esses olhos não se vê nada. O lago de lágrimas da
cafonice afoga qualquer resistência.
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