A democracia
Minha formação democrática me impede gestos
autoritários. Não os praticarei
Michel Temer
09 Agosto 2016 | 03h01
É incrível a vocação centralizadora e autoritária da
nossa cultura política. Todos acham que se o Poder Executivo apresentar um projeto
de lei não poderá ele ser trabalhado com o Poder Legislativo. Quantas vezes
tenho lido e ouvido, ao mandar projeto ao Legislativo e ajustar os seus termos,
que o “governo recuou”. Grande engano.
Vivemos numa democracia. Isso significa que o Legislativo,
assim como o Judiciário também governam. O Legislativo não é mero chancelador
dos atos do Executivo. Ao contrário. Propõe, sugere, acrescenta, modifica. Nos
últimos tempos temos procurado chegar a um consenso sobre a proposta de texto
legal com as duas Casas congressuais, a Câmara e o Senado. Estabelecemos
diálogo na convicção de que assim se exerce o poder popular descrito na
Constituição federal. O exercício do poder unitário, unipessoal só é
encontrável nas ditaduras.
Mas compreendo, sociologicamente, a nossa vocação
centralizadora. Basta apanhar a História do Brasil desde os tempos da colônia.
Primeiro, ganhamos as capitanias hereditárias, depois, o governo geral. Em
seguida veio o Império, com o Estado unitário. Depois, na República, tivemos um
ciclo de 20 a 30 anos de aparente descentralização, seguido de 20 anos de
concentração. Foi assim de 1891 a 1930, de 1930 a 1945, de 1945 a 1964 e daí
até 1988.
Esses ciclos históricos revelam que a tendência
centralizadora absoluta é marca da nossa concepção política. As pessoas sempre
almejam que a União cuide de tudo e de todos e, na União, o Executivo (sempre
identificado como governo) tudo controle. Trata-se, aliás, da tendência de
considerar o Poder Executivo como salvador da Pátria, supridor das demandas da
sociedade, a cujo “poder da caneta” os outros Poderes sempre recorrem, buscando
apoio e, sobretudo, recursos. Cientistas sociais, como Maurice Duverger, chegam
a apontar a alta concentração do poder nas mãos do comando do Executivo como
uma característica da América Latina, tradição que vem desde os tempos da
colonização e da cultura ibérica.
Nos colonizadores concentrava-se toda a força e essa
condição de certa forma se enraizou no presidencialismo, como podemos
identificar entre nós, quando a República tomou o lugar do Império. Tornou-se
bastante comum por aqui o recorrente conceito sobre o “presidencialismo” de
cunho imperial com que se procura caracterizar a força do nosso sistema de
governo, situação que deixaria em desequilíbrio a tríade de Poderes arquitetada
por Montesquieu.
É fato, entretanto, que a democracia, entendida como
governo de todos (afinal, o poder emana do povo), é exercida pelos Poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário. Mas é dificilmente compreendida. Volto a
registrar que a ideia reinante é de que o Executivo produz e o Legislativo deve
simplesmente aprovar. Um contrassenso. Não é nem deve ser assim. De igual
maneira, a Federação. Nela União e Estados são autônomos. A União não pode
interferir nas competências dos Estados sob pena de inconstitucionalidade. A
eles, Estados, cabem as chamadas competências residuais. Ou seja: cabe-lhes o
resíduo, o resto, do que não foi expressamente conferido à União e aos
municípios. Entre as residuais, a principal delas é a competência para dispor
sobre sua administração interna. A organização, a estrutura, os direitos e
deveres dos seus servidores constituem o núcleo da sua competência residual. É
tão grave a eventual incursão da lei federal sobre as competências dos Estados
que a Constituição federal chega a registrar o impedimento de emenda
constitucional que vise a abolir a Federação. Ou seja, é preciso preservar a
competência dos Estados (artigo 60, § 4.º, I).
Por outro lado, a mesma Constituição prevê a
intocabilidade da separação de Poderes (artigo 60, § 4.º, III).
Faço essas afirmações para pré-concluir: 1) é
indisfarçável a nossa tendência à concentração; 2) a nossa História assim o
registra; 3) as nossas instituições estão funcionando regularmente, sem
interferência de um Poder em outro; 4) temos, agora, a oportunidade de romper
com esse ciclo histórico de agressão à separação de Poderes e à Federação,
suportes de uma democracia.
Também me expresso dessa maneira a propósito de projeto
de lei que estabelece a repactuação da dívida dos Estados com a União,
embutindo nela um teto de gastos para os Estados. Trata-se de teto geral,
passível de revisão anual apenas pelo índice de inflação. Tal, aliás, como
estamos fazendo com os limites de gastos da União. No primeiro momento, o
projeto continha regras referentes à Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Chegando à Câmara dos Deputados, dialogamos, conversamos, negociamos e fizemos,
por acordo, o projeto manter-se nos parâmetros constitucionais para apresentar,
logo em seguida, atualização da LRF. Tudo em consonância com a Constituição
federal, artigo 169, que autoriza que lei complementar estabeleça limites para
o pessoal ativo e inativo. No caso, o limite de despesas primárias correntes
está limitado à variação da inflação. É quanto basta. Se os Estados decidirem
criar despesas em algumas áreas, no exercício de sua autonomia, deverão retirar
esses valores de outros gastos. Importa obedecer ao limite de gastos previsto
no projeto, respaldado pelo artigo 169 da Constituição federal.
Este escrito se destina a evidenciar que minha conduta se
respalda na Constituição federal. Digo mais: minha formação democrática me
impede gestos autoritários. Não os praticarei. Esse é o caminho para a
consolidação de um sistema participativo que nos levará ao ajuste fiscal
necessário, ao crescimento, com o combate ao desemprego, ao desenvolvimento e à
paz social, tão desejada pela imensa maioria do povo brasileiro.
Cabe aos críticos do governo, àqueles que aludem a
“recuos”, escolher a via que desejam: o autoritarismo, quando não há diálogo,
ou a democracia. A minha escolha já está feita. Dela não me desviarei.
*Michel Temer é presidente da República em exercício
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