Voo cego
Coluna publicada em VEJA de 8 de novembro de 2017, edição
nº 2555
O Brasil, do jeito que estão hoje quase todas as
propostas de combate à corrupção, a começar pelas mais agressivas e mais
atraentes para o público, pode estar a caminho de se transformar num país onde
um cidadão que pratica o senso comum, a honestidade comum e a decência comum acabará
se tornando inelegível para cargos
públicos de qualquer natureza. Já está muito difícil, na situação atual,
encontrar gente boa disposta a entrar na vida pública; portadores de uma taxa
moderada de integridade pessoal afastam-se de tudo o que cheira a “governo”
como quem se afasta de uma zona infestada por radiação nuclear. Se tudo
continuar assim, os brasileiros podem esquecer qualquer esperança de viver um
dia num país de nota 5 para cima. É bem possível que continue, aliás: o
criador, gerente e beneficiário dos dois governos mais corruptos da história do
Brasil é apontado pelos institutos de pesquisa como o candidato mais forte para
as eleições presidenciais do ano que vem. Mas, se forem feitas as mudanças
exigidas hoje para enfrentar a roubalheira desesperada dos últimos anos, aí
sim, a desgraça chegará a um estágio de perfeição. Tudo foi feito e nada mudou
— esperar o quê, então?
Não é nem um pouco complicado de entender. Todas as
providências exigidas até agora pelos responsáveis por combater a corrupção vão
cegamente na mesma direção: mais leis, mais regras, mais portarias contra a
corrupção; mais punições, mais rigor, “mais cadeia” para os corruptos. Mas
nossos investigadores, procuradores, promotores, juízes, militantes de
organizações antirroubo etc. só pensam em assustar os ladrões — e nunca em
mudar a sério, para valer, o Estado brasileiro, que está desenhado, montado e
planejado para produzir esses mesmos ladrões 24 horas por dia. É impossível,
com essa conversa, mudar alguma coisa. Não se rouba neste país porque as penas
são baixas, ou porque as leis permitem que a Justiça seja uma mãe gentil para
os criminosos que mandam em alguma coisa. Isso tudo ajuda, é óbvio; é até um
incentivo. Qual o bandido que não se enche de fé num país onde o Supremo
Tribunal Federal tem um ministro como Gilmar Mendes? Mas as pessoas roubam,
acima de qualquer outra razão, porque o poder público lhes oferece, e oferece
cada vez mais, todas as oportunidades possíveis de ficar ricas usando a seu
favor a máquina do governo. Não roubariam se não conseguissem roubar — ou
roubariam apenas onde houvesse algo para ser roubado. O governo, em si, não sai
andando por aí para corromper as pessoas. São as pessoas que corrompem o
governo — e só podem corromper aquilo que o governo possui ou controla. Os
projetos dos nossos vigilantes da moral pública querem mudar a natureza humana,
coisa que não podem. Aquilo que podem, que é mudar o Estado, não querem.
O que poderia ser mudado? Quase tudo. É um fato acima de
qualquer argumento, por exemplo, que os políticos e os seus sistemas de
operação só podem roubar uma empresa estatal se houver uma empresa estatal para
ser roubada. Feche-se ou venda-se uma estatal, qualquer uma — ali não se
roubará mais nem um tostão. Os ladrões terão de procurar outra; quanto menos
estatais houver, portanto, menos se roubará. Será tão simples assim?
Perfeitamente; é o que pode haver em matéria de simplicidade. A Petrobras, a
estatal número 1, foi mais roubada pelos governos do PT do que em todos os seus
64 anos de vida; roubou-se tanto que até hoje ninguém sabe exatamente quanto se
roubou. Cerca de 20 bilhões de reais, como estimam os procuradores da
Lava-Jato? Mais? É certo, de qualquer forma, que os processos por corrupção na
Petrobras já têm 116 condenados, na maioria confessos, e quase 300 réus. Dá
para ter uma ideia, não? Nunca houve nada de parecido na história da República
— para não falar do Império e da Colônia. Imagine-se agora, por um minuto, que
não existisse Petrobras, ou que ela não fosse propriedade do Estado — ou, para
falar mais claro, dos que mandam no palácio, como se viu nos governos
Lula-Dilma. Ninguém teria roubado nada do público, da mesma forma que não houve
mais roubo na fabricação do aço depois que o governo parou de fabricar aço, ou
nos bancos estaduais depois que acabaram os bancos estaduais. Enfim: acabe-se a
licença, e você não poderá mais vender a licença.
Os sonhos de extermínio da corrupção serão apenas isso,
sonhos, enquanto os sonhadores continuarem de joelhos diante do Estado, rezando
para que os corruptos comecem a ter medo da lei. Seu “Estado forte” só
conseguirá tornar a ladroagem eterna.
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