- Valor Econômico / Eu &Fim de Semana
Historicamente, no Brasil, ignorância é um juízo de valor
e manifestação de poder de quem, em posição de mando, não se considera
ignorante. Era a definição que os poucos escolarizados davam aos muitos não
escolarizados nas primeiras décadas do século passado. Estes, considerados
socialmente inferiores, porque trabalhadores, mestiços ou descendentes de
escravos, gente ao longo das gerações condenada ao trabalho braçal,
supostamente vazio de trabalho intelectual.
No entanto, seja na lavoura, no artesanato, no trabalho
doméstico, havia e há sistemas complexos de conhecimento, modos de fazer e de
pensar que a maioria dos críticos da ignorância ignora. Aliás, analfabeto não
quer dizer ignorante. Os estudos antropológicos nas áreas das etnociências
mostram que o conhecimento popular tem elaborações e peculiaridades lógicas que
indicam um labor cognitivo que não é antagônico ao da ciência e ao da arte.
Ao ignorar essa cultura, em vez de uma ponte de diálogo
criativo e de aprendizado, a escola preferiu o abismo que a separa daqueles que
pretende educar. Raramente nos lembramos de que a escola é um poder e
instrumento de poder. Foi esse poder que decretou que aqueles aos quais o
trabalho impediu a escolarização fossem definidos como ignorantes.
Ignorância é um rótulo, um dos conceitos de nossa cultura
de preconceitos. A ignorância muda com o tempo, a circunstância e a mentalidade
dominante. Ignorantes de hoje, na classe média e mesmo na elite, passaram pela
escola e até mesmo pela universidade. Apesar de terem opinião sobre todos os
assuntos, quando muito dominam apenas uma área do saber. Fora de sua área, são
ignorantes pela especialização, pelo raciocínio estereotipado e desvinculado do
pensamento crítico.
No plano das condutas e da visibilidade da ignorância, há
meio século, os ignorantes já sabiam o motivo pelo qual eram assim definidos.
Desenvolveram formas de dissimulação de sua ignorância para enfrentar as
adversidades numa sociedade em que ser ignorante tornara-se motivo de
discriminação e vergonha. A ignorância expressava-se não só na fala e nos
simplismos, mas na apresentação pessoal, no uso impróprio de coisas e modos do
que Erving Goffman define como equipamento de identificação.
Uma técnica tem sido a de copiar formas de expressão e de
apresentação pessoal em público, prestar muita atenção no que os outros fazem e
dizem e tentar imitá-los. Imita-se na fala, no traje, nos gestos. Mas a
dissimulação da ignorância tinha e tem limites. Não raramente, gestos, palavras
e trajes impróprios denunciam que a pessoa desconhece o que é apropriado para
assegurar a eficácia da imitação. É ignorante.
Mas a concepção de que é socialmente mais decisivo
parecer do que ser se difundiu, criou uma cultura, definiu valores e regras de
penosos esforços de apresentação e de conduta. A forma aparente incluiu
socialmente os excluídos. A superficialidade tornou-se democrática e, mesmo,
decisiva, para incluir enganosamente o ignorante. Há uma função terapêutica no
uso desses recursos numa sociedade que enfrenta, cada vez mais, limites no
acesso à cultura erudita e que, cada vez mais, oferece recursos de dissimulação
da ignorância. A sabedoria popular foi confrontada com a frágil sabedoria de
ocasião.
Nos anos 1960, a difusão da leitura dinâmica, de ler
apenas uma de cada duas palavras, ou de cada três, permitia "ler" um
livro na metade do tempo da leitura normal. Não era ler para saber, era para
que o "leitor" fizesse de conta que o havia lido, para simular
conhecimento. O importante não era e não é deixar de ser ignorante. Importante é
fingir não ser ignorante. Uma nova forma social de ignorância estava nascendo.
Nos anos 1970, as chamadas classes populares emergiram no
cenário político brasileiro. Em alguns anos elegeriam um presidente da
República. A intelectualidade dos movimentos populares produziu racionalizações
que na essência asseguravam que o ignorante é sábio, na contramão dos valores
da própria classe trabalhadora que, desde sua constituição entre nós, sempre
valorizou a escola. Ignorância e poder se encontraram. Difundiu-se aqui a raiva
como fundamento dos confrontos sociais, uma concepção antipolítica da luta de
classes. O novo saber superficial e manipulável amalgamou-se com a raiva
política, a incultura tornou-se prepotente. Durante quase um século a
consciência da ignorância levou à busca da escola, à valorização da escola.
Agora, a nova ignorância elegeu a escola como inimiga.
Da universidade ao palanque e do palanque ao botequim, o
ignorante perdeu a consciência da ignorância, ao ponto de questionar o
conhecimento erudito e minimizar e afrontar os profissionais do saber.
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José de Souza Martins é sociólogo. Membro da Academia
Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “O Coração da Pauliceia Ainda
Bate” (Ed. Unesp/Imprensa Oficial)
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