O antissemitismo não é a expressão de preconceito e ódio
irracionais. Ele pode ser acompanhado por manifestações psicóticas e paranoides,
mas existe porque faz sentido em contextos históricos.
Fez sentido na época medieval europeia dominada pela
Igreja, porque os judeus não aceitaram os evangelhos e permaneceram apegados à
uma revelação superada na perspectiva cristã. Além disto, sobre eles pesava a
acusação mais abominável, a de deicídio. Ao longo dos séculos, essa alteridade
negativa e incontornável justificou o seu isolamento moral e legal, expulsões e
massacres.
Fez sentido para iluministas do século XVIII, como
Voltaire, que dedicou, em seu famoso Dicionário Filosófico, de 1756, 38 dos 118
artigos aos judeus, segundo ele, os nossos mestres e inimigos, em quem
acreditamos e a quem detestamos. Mestres do cristianismo, que Voltaire
criticava, Os iluministas eram anti-clericais e deístas. No lugar da revelação
das escrituras situavam a Razão, como meio de conhecer a Deus. Não havia
sentido, para eles, na existência de um povo apegado ao que eles chamavam de
superstições arcaicas.
Kant se referia a eles como “os palestinos entre nós”. Fichte
apregoava a expulsão dos judeus para a Ásia, lugar a que pertenciam. Outros
pregavam que o único modo de lidar com o judaísmo - uma religião, como dizia
Hegel, ossificada -, era a completa assimilação dos judeus e a extinção do
judaísmo. Já os românticos alemães advogavam a impossibilidade da assimilação,
porque o problema não era religioso, mas nacional, ou seja, era possível aos
judeus converterem-se ao protestantismo ou ao catolicismo, mas eles jamais
poderiam se tornar alemães.
Fez sentido para os primeiros socialistas do século XIX,
que viam no dinheiro e no comércio o maior mal da humanidade. Fourier, Proudon,
Toussenel odiavam os judeus identificados com o comércio e a usura. O mesmo
vale para os comunistas. Marx, em 1843, escreveu o ensaio a “Questão Judaica”,
no qual dizia, que a humanidade deve se emancipar do judaísmo. Para ele, o
judaísmo real, não a sua ilusória forma espiritual, era o comércio. O Deus dos
judeus é o dinheiro, dizia ele.
Fez sentido para os nazistas, porque os judeus eram uma
minoria desarmada. A eles foi atribuída a culpa pela derrota na 1ª Guerra
Mundial, pela crise econômica, pelo comunismo, pelo capitalismo e pela
degeneração moral alemã. Em sua versão do judeu como bode expiatório, Hitler
pode mobilizar os alemães para desapropriá-los dos bens para confiscar sua
nacionalidade, depois sua humanidade e, ao fim, sua vida.
Fez sentido para o bolchevismo, em especial para o
stalinismo, um tipo de credo de pretensão universalista cujo grande adversário
é a singularidade, que se traduz em diferença nacional, dissensão, livre
arbítrio, rebeldia, espírito crítico, individualismo e ausência de disciplina.
Esses são os sete desvios revisionistas segundo a doutrina do Partido
Comunista. Note-se que o marxismo-leninismo sabia ser impossível, pelo menos
num horizonte discernível, extinguir as nacionalidades. Por isso pretendeu
integrá-las, subordinando-as ao conceito mais amplo de classe trabalhadora
internacional.
O surgimento do sionismo ocorre em paralelo com o
surgimento do comunismo na Rússia. Um povo sem terra, com experiência milenar
de discriminação, havia finalmente criado seu movimento de emancipação
nacional, concomitante à onda nacionalista que agitou a Europa na véspera e na
esteira da dissolução dos impérios Austro-húngaro, Alemão, Czarista e Otomano.
Mas os judeus não possuíam direitos nacionais para os comunistas. A Revolução
de Outubro de 1917 confrontou o judeu russo com um ultimatum: integrar-se ou
assumir-se enquanto uma espécie de apóstata, algo muito semelhante ao que
aconteceu na Idade Média, principalmente durante a Inquisição, A “questão
judaica” permanecia sem solução para a pátria soviética. Aos judeus foi
oferecida mais uma vez a assimilação, com a consequente perda da identidade
cultural, e religiosa. O Bund, a União dos Trabalhadores Judeus da Lituânia,
Polônia e Rússia, criado em 1897, o movimento socialista que pregava a
autonomia dos judeus, por razões culturais, foi dissolvido em 1921, no partido
bolchevique.
Na época de Stalin, o apelo ao antissemitismo denunciou a
degradação da utopia comunista. Os judeus foram expurgados do Partido Comunista
e passaram a ser designados pelo epíteto de cosmopolitas e sionistas. Na era
pós-stalinista, a propaganda soviética recorreu a estereótipos clássicos dos
judeus e a uma, terminologia antissemita que adquiriu cidadania no Partido para
designar a sua falta de patriotismo.
Faz sentido hoje porque depois da Grande Desilusão, o
colapso da URSS em 1991, a esquerda transferiu a luta contra o capitalismo e
imperialismo para o terreno do anti-americanismo, do qual o antissionismo,
torna-se objetiva e conceitualmente dependente. O ódio aos EUA tomou o lugar da
crítica marxista ao capitalismo. O declínio do marxismo teórico e sua
destituição do papel orientador que exercia em relação a práxis das
organizações de esquerda devem-se, em grande medida, a três fracassos, dois
econômicas e um político-moral:
(a) O primeiro, o fracasso de sua previsão célebre,
segundo a qual a economia de mercado seria atingida por uma crise fatal em virtude
de suas contradições internas, a partir do antagonismo entre a maximização da
taxa de lucro (a acrescente acumulação de capital pela burguesia) e a crescente
pauperização da população (o proletariado). Nada disso ocorreu. O capitalismo
mostrou, ao contrário do que os marxistas clássicos previam, ser muito mais
complexo em suas relações de produção e consumo, em sua capacidade de
distribuição de riqueza e na sua constante renovação tecnológica, de forma a
propiciar uma gradativa elevação nas condições de vida dos trabalhadores,
especialmente nos países desenvolvidos, nos quais Marx dizia que as
contradições eram mais agudas e a implantação socialista ocorreria
inevitavelmete.
(b) O segundo fracasso foi a aplicação da economia
planificada e coletivista, na qual a produção é prévia e racionalmente
planejada por especialistas e os meios de produção são propriedade do Estado;
Neste modelo, a atividade econômica é controlada por uma autoridade central que
estabelece metas de produção e distribui as matérias-primas para as unidades de
produção. A economia planificada caracterizou-se pelo surgimento de uma grande
burocracia estatal e pela falta de inovação. Nela,houve uma discrepância colossal
entre a produção de bens de capital (máquinas e equipamentos) e de bens de
consumo, criando um enorme desequilíbrio entre a falta de oferta de bens e a
demanda. Decorreu daí o constante empobrecimento da população, o surgimento de
um mercado negro quase institucional e a corrupção da nomenclatura, os membros
do partido e da burocracia
(c) O fracasso político-moral dos países comunistas nos
quais o socialismo real não promoveu nem a liberdade nem a igualdade, como se
sabe. Ao longo do século XX, o comunismo implantou-se na forma de ditaduras
opressivas, que praticaram extermínio e genocídio.
A esquerda ocidental, alinhada à URSS e depois do colapso
soviético e do fim da Guerra Fria, entrou em desabalado desespero. Foi preciso
reorientar sua ideologia de modo a ocultar os fracassos. A luta de classes foi
sobreposta ao esquema do conflito entre o imperialismo dos EUA e os povos
oprimidos da Ásia, África e América Latina e à globalização. O colapso do
socialismo real poderia ter o mesmo efeito para a esquerda, que a derrota do
nazifascismo teve para a ultradireita. Mas isto não aconteceu. A esquerda, além
da sólida base intelectual conferida pelo marxismo, sempre se dividiu em
diversas correntes, algumas delas independentes do regime soviético. Lideranças
sindicais, a presença nas universidades, a força eleitoral, os cargos na
administração pública ocupados por esquerdistas, a chefia de editorias
internacionais na mídia, as ONGs humanitárias, todas essas entidades e funções
ocupam um significativo número de pessoas e de seus seguidores. A conservação
do espaço conquistado depende da credibilidade da ideologia mater, que alimenta
a vasta ramificação do campo progressista. Uma grande causa internacional
contribui fortemente para promover a união interna, devolver a convicção
perdida e manter a marca do humanismo socialista.
Aí entra a luta contra o sionismo, na qual vale tudo para
caracterizar Israel como sendo uma nação racista, que pratica o apartheid
contra os árabes que vivem dentro de suas fronteiras, que oprime os árabes
palestinos com uma ocupação militar, que, ao longo de sua história, adotou e
adota práticas nazistas e chega mesmo a praticar o genocídio contra uma
população desamparada.
Os fundamentos desta ideologia são três mitos:
1. O mito de que os judeus compraram ou roubaram a terra
dos camponeses árabes durante as décadas que antecederam a Partilha. Entre
outros, Joan Peters, no livro “De Tempos imemoriais- A origem do conflito
árabe-judeu sobre a Palestina”, de 1984, demonstrou, de forma detalhada e com
rigor analítico notável, que se deu o inverso. A ocupação de terras por colonos
judeus se deu em terras devolutas, desocupadas. E a população árabe da
Palestina quintuplicou em quase cinquenta anos. Isto não se deveu ao
crescimento vegetativo, mas a um forte movimento migratório por terra de árabes
do Líbano, Síria, Jordânia e Egito, atraídos pela oferta de melhores condições
de vida e trabalho decorrentes de implantação de infraestrutura, da
revitalização agrícola e industrial provocadas pelo afluxo de judeus. A
oposição a este afluxo era conduzida pelos oligarcas árabes locais cujos
interesses econômicos colidiam com os da modernização da região levada acabo
pelos judeus.
2. A expulsão da população árabe durante a Guerra de
Independência de Israel. Jamais o governo israelense desenvolveu uma política
de remoção populacional. O deslocamento dos árabes deveu-se ao medo do que
aconteceria a eles na guerra, porque a cultura árabe da região, apregoada pelas
lideranças que invadiram o recém-criado estado judeu, era a de exterminar o
inimigo. Além disso essas mesmas lideranças estimularam a fuga dos árabes, com
a promessa de que eles voltariam e seriam beneficiários dos despojos de guerra.
Mais um motivo. Os árabes da Palestina acorreram para países com os quais
mantinham laços estreitos, inclusive familiares.
3. O mito da ocupação dos territórios depois de 1967.
De 1948 até 1967, a Cisjordânia e a Faixa de Gaza foram
ocupadas pela Jordânia e Egito, respectivamente. Tratava-se, neste período, de
simplesmente criar um estado árabe independente nestes territórios, sem
qualquer consulta a Israel. Isto não só não foi feito como, ao contrário,
Jordânia e Egito utilizaram-se destes territórios como bases de infiltração
terrorista. O objetivo do mundo árabe e da OLP, criada em 1964, era destruir
Israel. Este objetivo somente foi formalmente abandonado pelo Egito, em 1979 e
pela OLP, em 1993, nos Acordos de Oslo.
Deste mito faz parte a tese atual de que os assentamentos
judeus na Cisjordânia – cerca de 400 mil colonos - impedem a implementação a
paz entre israelenses e palestinos. Não é verdade. Em 2000, o então
primeiro=ministro de Israel ofereceu a Yasser Arafat 97 por cento da
Cisjordânia e o controle sobre Jerusalém Oriental em troca de um tratado de
paz. A questão dos assentamentos não obstaculizou as negociações, mas sim a
exigência, feita por Arafat, de que os refugiados palestinos nos países árabes
retornassem a Israel.
Além disso, os assentamentos formam um cordão de
segurança na linha de defesa mais frágil de Israel e, por isso, cumprem um
função estratégica. Mais ainda, foram erguidos em terras devolutas, sem que
fosse deslocado ou expulso um árabe sequer der suas terras ou moradias. E
causaram uma forte transformação econômica na região, que favoreceu os
palestinos ampliando a oferta de eletricidade, rede de água estradas e
trabalho. Mais ainda. Os judeus dos assentamentos podem, num futuro acordo de
paz, permanecer onde estão sob soberania do estado pretendido pelos árabes
palestinos. Mas o que se advoga é a sua remoção, o que caracterizaria um
processo de limpeza étnica, semelhante ao que ocorreu no mundo árabe da década
de 50, quando cerca de 800 mil judeus, do Marrocos ao Yêmen, foram expulsos de
seus lares em represália à criação do estado judeu.
Os três mitos constituem a base para todos os ataques que
a esquerda lança contra Israel e adquiriram, na grande mídia o status de estado
da arte