Artigo, Fernando Gabeira, O Globo - Embargo do embargo


Nesse momento em que vejo a vida como um milagre, o fato mais previsível do mundo é alguém condenado pela Justiça ser preso

Gostaria de estar à altura do nível dramático desta semana no Brasil. No entanto, aconteceu algo que me deixou frio e calmo. Viajávamos para Serafina Correa (RS) e, na altura de um lugar que se chama Encantado, um carro perdeu a direção, cruzou a estrada e bateu violentamente no nosso. Em meio à fumaça, lembro-me de ter dito apenas: sobrevivemos.

Quando se vê a morte tão de perto e se escapa dela, pelo menos no primeiro momento tudo fica mais simples.

Horas depois conseguimos um novo carro, o outro teve perda total, e voltamos a ouvir os longos votos dos ministros do Supremo sobre o habeas corpus de Lula. Sinceramente, talvez influenciado pela alegria de sobreviver, não via o fim de tudo se o STF derrubasse a prisão em segunda instância.

O velho mecanismo de corrupção seria de novo azeitado e, para nos impressionar, de vez em quando prenderiam um ancião e criariam um vaivém de cadeiras de rodas no presídio. Como somos sentimentais, aceitaríamos que os anciões fossem libertados logo para cumprir prisão domiciliar.

O único problema dessa opção: a Justiça no Brasil deixaria de funcionar em nome do belo princípio de presunção da inocência. As vítimas dos crimes continuariam desemparadas.

Mas a recusa do habeas corpus também não me parece um drama. É apenas a continuidade do bem-sucedido processo da Lava-Jato e da política do STF desde 2015.

Quando Lula foi condenado na segunda instância, não entendia os repórteres que diziam: o destino de Lula é incerto. Destino incerto é o meu e de todos que estão em liberdade. Lula será preso.

Infelizmente, com a calma dos sobreviventes, não consigo entender a agitação da imprensa. Há sempre alguém falando de um recurso, de um embargo do embargo, dando a falsa impressão de que as coisas vão mudar. Uma pessoa que vê a imprensa à distância pode supor que produzir tantas tramas artificiais é algo feito para ajudar Lula. Mas não é o caso. As pessoas precisam de emoção, de criar tramas que mantenham o interesse. Nesse filme, o ator não pode morrer no princípio, pois seria um anticlímax.

Nesse momento em que vejo a vida como um milagre, pouco me importam as pancadas, mas devo dizer que o fato mais previsível do mundo quando alguém é condenado pela Justiça, caso não fuja, é ser preso.

Todo esse miolo dramático, todas essas tramas que se criam entre a definição da Justiça e o momento da prisão são apenas tentativa de alongar o interesse pelo caso. Somos novelistas, criando enredos secundários.

Naturalmente, para o PT e seus aliados, as manobras e as constantes dúvidas mantêm a chama e podem ser de interesse político. Mesmo nesse caso, duvido da eficácia do cálculo. Se estivessem de olho no futuro, talvez escolhessem outra tática.

Toda essa interpretação talvez seja resultado da visão esquisita que tomou conta de mim desde o acidente em Encantado. Nada mais tedioso de quem supõe que conhece todo o enredo e subestima os lances emocionantes das tramas que eletrizam a imprensa.

Espero me curar disso, na próxima semana. Ou então deixar de escrever, pois, realmente, eu me sinto numa outra galáxia. Num lugar onde a lei vale para todos, as pessoas são condenadas e o fato mais banal é sua prisão.

A cidade onde nos acidentamos chama-se Encantado. Ao contrário do que seu nome sugere, foi ali que o Brasil finalmente se desencantou para mim.

Precisaria voltar a viver todas essas emoções, como um ateu que recupera sua fé. E voltar a acreditar em embargos dos embargos e em toda essa conversa.

Artigo, Ascânio Seleme, O Globo - Os aloprados perderam


O fato é que não houve mobilização popular em favor de Lula

No dia mais importante da história recente do Brasil, os aloprados perderam e o bom senso, o respeito às leis e às instituições prevaleceu. Por alguns momentos desde a emissão da ordem de prisão contra Lula, temeu-se o pior. Os conhecidos revoltados do PT e dos partidos e dos movimentos que circulam o PT como satélites cerraram os punhos e sustentaram que Lula não sairia da sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC para a cadeia.

O líder do MTST Guilherme Boulos conclamou sua turma a resistir “em trincheira" contra a prisão de Lula. A amigos escreveu, na noite de quinta-feira, que havia um pacto para que Lula não se entregasse, e pediu que a militância ocupasse pelo menos 30 quarteirões em torno do sindicato. Gilberto Carvalho pediu que a militância fizesse uma barreira humana para impedir a entrada da polícia. Desenhava-se uma tragédia.

O aloprado pai, João Pedro Stédile, do MST, chamou seus liderados para ocuparem as praças e as ruas de São Bernardo do Campo. “Vamos nos insurgir", bradou o líder. Não colou. As praças ficaram vazias e só mesmo as ruas ao redor do sindicato se encheram. Não aconteceu o “mar de gente" sonhado por outro ativista do caos, o senador petista Lindbergh Farias. Aparentemente, não houve tempo para Stédile arrumar ônibus e quentinhas e juntar o seu “exército”.

O fato é que não houve mobilização popular em favor de Lula. Talvez por isso tenha prevalecido o bom senso. Os discursos da inflamada presidente do PT, senadora Gleisi Hoffman, também não funcionaram. Desde a sentença de Moro, antes mesmo da sua confirmação no TRF-4, Gleisi falava de uma insurreição nacional. Imaginava que as ruas das cidades seriam tomadas por multidões em favor de Lula. Chegou a dizer que, para prender Lula, “vai ter que matar gente".

Ninguém matou, ninguém morreu.

Os advogados recomendaram fortemente a rendição de Lula. Argumentaram que uma desobediência à Justiça atrapalharia muito as próximas etapas do processo. Eles acreditam que, antes do final do ano, e, se derem sorte, bem antes mesmo da eleição de outubro, conseguirão colocar o ex-presidente em prisão domiciliar.

O próprio Lula, pragmático como é, preferiu seguir o bom senso. Apesar de ser incendiário no discurso, porque fala para uma plateia que espera isso dele, Lula sabia que o que estava em jogo ontem era, antes de tudo, a sua pele. Qualquer movimento errado poderia ter impacto negativo em sua vida pessoal. Na sua vida no cárcere, na duração da sua prisão, no seu futuro. Até a perda da cela especial guardada para ele na sede da PF em Curitiba entrou no seu raciocínio.

Também era difícil medir os resultados políticos que resultariam de uma resistência. Seus efeitos poderiam inclusive ser ruins para o PT. Por isso também os aloprados perderam. Enquanto a militância ouvia discursos enfáticos na frente do sindicato, lá dentro Lula e seus advogados negociavam com a Polícia Federal a forma em que se daria sua rendição. Lula será preso a qualquer momento, talvez depois da missa em homenagem a dona Marisa Letícia, que será realizada neste sábado no próprio sindicato. O acordo não ofendeu a Justiça, que foi sábia e deu a Lula a tranquilidade e o tempo que ele precisava para se entregar.

Editorial, Folha - Cumpra-se a lei


Como em outros processos, prisão de Lula se inscreve na plena normalidade republicana

Em meio às previsíveis manifestações de seus partidários mais inconformados, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) preferiu não cumprir o prazo que lhe foi concedido pelo juiz Sergio Moro para apresentar-se à sede da Polícia Federal em Curitiba.

Sem constituir desobediência a ordem judicial, sua atitude reflete um cálculo político que corresponde mais, nesta altura, à expectativa da militância petista do que ao efeito que possa ter no conjunto da opinião pública.

Ainda que sejam intensas e díspares as emoções que o fato suscita, a prisão de Lula segue um protocolo republicano que transcende as significações ideológicas e as paixões partidárias de que se tenta revesti-lo, com doses negligenciáveis de provocação.

Não se sustenta, é óbvio, a versão lulista de que tudo se reduz a uma perseguição política contra um líder de origem operária.

Também foram atingidos por decisões judiciais e ordens de prisão, nestes anos de Lava Jato, figuras como Paulo Maluf, Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Marcelo Odebrecht, Valdemar Costa Neto ou Geddel Vieira Lima, a quem não se podem atribuir compromissos históricos com a luta sindical ou a defesa dos excluídos.

Nem mesmo existe beneficiário claro, nos meios políticos mais tradicionais, das ondas de combate à corrupção que produziram, nos últimos anos, desalento e revolta no eleitorado nacional.

Tampouco é o caso de confundir a derrota judicial do ex-presidente —fundamentada em provas consistentes de corrupção, condenações em duas instâncias e habeas corpus negados nos tribunais superiores— com o julgamento dos valores ideológicos que ele representou com destaque indisputado.

De outro lado, o senso de irrealidade que se configura na atitude dos lulistas encontra paralelo na euforia persecutória, claramente seletiva, de setores que identificam nas bandeiras vermelhas e num fantasmagórico comunismo as únicas origens da indecência nos costumes políticos do país.

A disputa entre liberais e estatistas, entre redistributivismo e competitividade, entre dispêndio e austeridade, se dá —e continuará a dar-se, não importando os candidatos que se apresentem em outubro— num campo distinto do que, agora, ocupa as emoções gerais.

A democracia, o debate, a alternância de poder prosseguem e se aperfeiçoam quando a lei é respeitada e seus infratores, depois de exercerem seu pleno direito de defesa, são punidos.

Afora uma pequena parcela de militantes, tomados pelo inconformismo ou pelo ódio, a sociedade tem maturidade, e se mostra serena, para resolver os seus conflitos e problemas. A corrupção é um deles —e o progresso brasileiro, neste ponto, se confirma mais uma vez.