No dia 13 de junho, o Supremo Tribunal Federal deverá
retomar e, provavelmente, concluir o julgamento do Mandado de Injunção 4.733 e
da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão 26, ambos destinados a
criminalizar a homofobia. Um julgamento, aliás, que nem deveria ter continuado,
já que tramita no Senado o Projeto de Lei 672/2019, aprovado em primeira
votação na Comissão de Constituição e Justiça da casa; a segunda votação deve
ocorrer na próxima semana, após novas emendas terem sido protocoladas. Ou seja,
a “omissão” que o Supremo tem enxergado como pretexto para avançar sobre as
prerrogativas do Poder Legislativo não existe. O fato de a tramitação de leis
ser, muitas vezes, um processo lento não autoriza o Judiciário a legislar,
especialmente um Judiciário que também se especializou na lentidão.
Isso não significa, no entanto, que o projeto em análise
no Senado seja bom – na verdade, está muito longe de sê-lo. A versão mais
recente, o substitutivo do senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), comete o
erro de fundo que já comentamos extensivamente em março deste ano, após os
quatro primeiros votos proferidos no STF: o de simplesmente inserir a homofobia
dentro da Lei do Racismo (7.716/89), criando uma situação sem precedentes na
história da liberdade de expressão no país.
O grande problema da equiparação pura e simples é ignorar
a diferença entre agredir uma pessoa por ela ser quem é – o caso do racismo e
de vários atos de homofobia – e criticar o seu comportamento, ainda que se
trate de uma crítica infundada. Além de combater o preconceito e a violência
contra os indivíduos homossexuais ou transexuais, essa equiparação ainda
estabeleceria um tipo de “crime de opinião” que inexiste em democracias sérias.
Mesmo que algumas das emendas apresentadas ao substitutivo atenuem parte dos
efeitos daninhos dessa equiparação, o vício original persiste, e por isso não
temos como considerar aceitável uma criminalização da homofobia realizada
nestes termos.
É preciso punir o preconceito real, mas preservar o
debate democrático sobre comportamentos
Mas, se o preconceito e a violência contra a população
LGBT precisam ser devidamente coibidos e punidos, como fazê-lo de forma
correta, sem que no processo acabem atropeladas liberdades básicas, como a de
expressão e a religiosa? Tendo oferecido a crítica à maneira como Supremo (e,
agora, o Senado) vem tentando lidar com o tema, propomo-nos, agora, a oferecer
uma contribuição ao debate legislativo.
Em primeiro lugar, é óbvio que uma criminalização da
homofobia precisa envolver os crimes mais graves cometidos contra a população
LGBT. Assim como ocorreu com o feminicídio, é perfeitamente razoável que o
Código Penal seja emendado para aumentar a punição no caso de crimes motivados
única e exclusivamente pela condição da vítima homossexual ou transexual. A
inserção de agravantes nos crimes de homicídio, lesão corporal e injúria
contemplaria essa situação. Também poderia ser considerada a introdução de uma
agravante no artigo 286, que trata da incitação ao crime, quando houver o
estímulo a agressões contra homossexuais motivadas por sua orientação sexual.
E, por mais que consideremos inadequada a simples
inserção da homofobia na Lei do Racismo, há, sim, dispositivos da Lei 7.716 que
poderiam ser aproveitados em uma segunda parte de uma eventual “Lei da
Homofobia”. Faz sentido que sejam punidas atitudes como a de negar matrículas,
emprego, ou recusar atendimento em estabelecimentos pelo simples fato de alguém
ser homossexual ou transexual. São ações de discriminação que não têm lugar em
uma sociedade civilizada e pautada na tolerância.
Mas, uma vez estabelecido o que são os crimes de
homofobia, um bom projeto de lei sobre o tema também deve definir com muita
precisão as condutas que não são crime, para salvaguardar as liberdades de
expressão e religiosa. Para bem entender tais salvaguardas, temos de recuperar
a diferenciação necessária entre o ataque “ontológico” a uma pessoa com a
inclinação homossexual e a crítica a um comportamento, um ato livre realizado
por essa pessoa.
Boa parte do debate sobre a inadequação do PL 672/2019
tem se centrado apenas na proteção do discurso religioso, mas este é um recorte
incompleto. Há diversas considerações que envolvem este tema e que prescindem
de conotação religiosa, baseando-se em argumentos filosóficos, antropológicos
ou biológicos – independentemente do acerto ou não desses argumentos. Por isso,
uma crítica à equiparação da união homoafetiva ao casamento, ou à participação
de atletas transexuais em competições femininas, para ficar apenas em alguns
casos, tem de ser protegida porque sua classificação como “discurso de ódio”
viola, em primeiro lugar, a liberdade de expressão – e só depois a liberdade
religiosa, naqueles casos em que a crítica tem viés religioso, baseando-se, por
exemplo, em textos sagrados ou dogmas de alguma crença.
A distinção feita acima exige, também, que os prestadores
de serviço tenham garantido o seu direito à objeção de consciência diante de
situações às quais se opõem, independentemente de concordarmos ou não com suas
convicções. Do contrário, veremos a repetição, no Brasil, de casos ocorridos
nos Estados Unidos, como o do confeiteiro Jack Phillips ou de Barronelle
Stutzman, proprietária da floricultura Arlene’s Flowers. Ambos, cristãos, se
recusaram a oferecer seus serviços para cerimônias de união homoafetiva e foram
processados e punidos – a Suprema Corte reverteu a condenação de Phillips, mas
não estabeleceu um precedente que proteja a objeção de consciência em novos
casos.
Há uma diferença fundamental entre o ataque “ontológico”
a uma pessoa com a inclinação homossexual e a crítica a um comportamento, um
ato livre realizado por essa pessoa
Ressalte-se que, aqui, estamos falando apenas da
prestação de serviços para atos dos quais se discorda; analogamente, podemos
perfeitamente defender o direito de um confeiteiro ou fotógrafo de esquerda
recusar um contrato para trabalhar, por exemplo, em uma festa de um partido
político de direita em que o homenageado seria o presidente Jair Bolsonaro.
Situação diferente seria a de negar o atendimento a um homossexual em qualquer
outra circunstância – um bolo de aniversário ou um buquê para o Dia dos
Namorados –, o que efetivamente configuraria preconceito. Aliás, nos dois casos
em tela, é importante mencionar que a dupla que processou a Arlene’s Flowers
tinha sido cliente da floricultura por nove anos sem nenhum problema, e que
Phillips ofereceu bolos já prontos e que estavam à venda em sua confeitaria.
Isso não os impediu de terem de responder à Justiça, uma perseguição que
lideranças LGBT no Brasil já consideraram acertada por vê-la como um meio de
“combate à discriminação”.
Agravantes para os casos de agressão, definição das
situações que constituem preconceito, salvaguardas para que a liberdade de
expressão, a liberdade religiosa e a objeção de consciência não sejam
aniquiladas: essas são as três linhas-mestras que deveriam orientar um bom
projeto contra a homofobia, que pune o preconceito real enquanto permite o
debate democrático sobre comportamentos, sem criar tabus e sem impor mordaças à
sociedade."