*Denis Lerrer Rosenfield, O Estado de S. Paulo
Engana-se quem pensa que o Brasil enfrenta apenas um
problema do governo Temer ao defrontar-se com a reforma da Previdência. A
questão é muito maior, por dizer respeito ao Brasil, acima de qualquer
interesse corporativo e partidário-eleitoral. O atual governo não terá
dificuldades em fechar suas contas no corrente ano, mas o próximo se debaterá
com esse grave problema desde o início. Se a reforma da Previdência não for
feita agora, terá necessariamente de ser realizada pelo próximo mandatário,
queira ele ou não.
Qualquer partido ou governante deverá curvar-se à dureza
dos fatos e das contas públicas. A ficção tem limites.
O que estamos presenciando são subterfúgios estamentais,
ideológicos e eleitorais que procuram escamotear e velar a urgência de uma
reforma necessária. O ruído é tanto que termina relegada a questão central do
que é melhor para o Brasil, embora os contendores encham a boca com a suposta
defesa que fazem da justiça social, quando, na verdade, pensam exclusivamente em
seus privilégios. Partidos políticos e corporações do Estado perseguem os
mesmos objetivos ao sabotarem a reforma da Previdência, cada personagem
centrado em seus interesses próprios.
Do ponto de vista partidário-eleitoral, essa reforma está
sendo vista no quadro imediato das eleições deste ano, como se sua aprovação ou
não beneficiasse tal ou qual partido ou candidato. Os que temem a eventual
reeleição do presidente Michel Temer são contra a reforma por estimarem que, se
aprovada, ele se tornaria um candidato viável. Candidate-se ou não, o
presidente já tem em seu ativo as reformas empreendidas e a consequente melhora
das condições econômicas e sociais, que logo se farão sentir mais
concretamente. Poderia até articular uma saída estratégica, deixando o problema
da Previdência para o próximo governo. O dele prescinde da aprovação imediata
dessa reforma, o mesmo não se pode dizer do que lhe sucederá. Ao fazerem o jogo
da dubiedade e dos seus interesses eleitorais, partidos e candidatos estão, de
fato, apostando contra o Brasil.
Os que procuram se apresentar como candidatos
utilizando-se da tergiversação e da mentira no que diz respeito ao estado das
contas públicas, por sua vez, estão fazendo o jogo da irresponsabilidade, como
se o destino do Brasil coubesse num teatro de marionetes. São supostos
estrategistas, em cujo cálculo estão presentes o descalabro das finanças
públicas e um País insolvente, com graves problemas sociais nos próximos anos.
Agem como Marie Antoinette, só que não oferecerão brioches, mas contas a pagar
e dinheiros falsos.
A cacofonia é grande, com os diferentes atores
partidários dizendo uma coisa em público e outra em privado, ao sabor das
conveniências e circunstâncias. O Brasil passa ao largo de suas preocupações,
como se tudo se esgotasse num mero cálculo eleitoral.
Os discursos dos presidenciáveis relegam a segundo, se
não a último plano qualquer compromisso com a verdade. Contam com a
mistificação e um processo midiático de convencimento no curto prazo como se
não houvesse um projeto nacional que devesse ser levado prioritariamente em
consideração. Dançam na beira do abismo!
Do ponto de vista corporativo, estamentos do Estado,
tanto nos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário como no Ministério
Público, com destaque para os dois últimos, estão se aproveitando da situação
para defenderem os seus privilégios. Chegamos ao absurdo de termos decisões
judiciais, patrocinadas pelo Ministério Público, que proibiram que o governo
federal esclarecesse a necessidade da reforma da Previdência, dando livre
curso, porém, a todas as campanhas que a denegriam. Cada vez mais estamos
observando o Ministério Público e o Judiciário avançando nas prerrogativas dos
outros Poderes, criando problemas de ordem institucional. A questão da
soberania, a de quem decide, vem, mesmo, a recolocar-se como central.
A aplicação da lei, conduzida por promotores e juízes
contra a corrupção, com amplo respaldo da sociedade e da opinião pública, fez
com que esses atores ganhassem uma conotação propriamente política, embora não
exerçam politicamente nenhuma representação. São agentes, em certo sentido, não
democráticos, na medida em que agem como políticos mesmo não tendo sido
escolhidos, eleitos, para o exercício dessa função. Passaram por concurso,
fizeram carreira no Judiciário e no Ministério Público e se acostumaram com
decisões monocráticas.
Vieram, dessa maneira, a ocupar posições no Estado que,
graças à legitimidade conquistada, não deveriam ser as deles. Juízes e
promotores não mais falam somente nos autos, mas para a opinião pública. Emitem
opiniões alheias ao cargo que ocupam. Ministros do Supremo Tribunal e o
ex-procurador-geral Rodrigo Janot perderam o recato da discrição e falam como
se políticos fossem, amparados nas regalias das funções que exercem. Procuram
conformar o Estado ao que defendem abstratamente como sendo moralidade pública.
Essas corporações do Estado passaram a atuar efetivamente
como estamentos que defendem prioritariamente os seus privilégios, como se os
recursos públicos estivessem à sua mercê. Proclamam a moralidade para os
outros, para os políticos, porém não a seguem para si, são tenazes na defesa de
seus interesses particulares. O Estado veio a ser, então, capturado por seus
estamentos, como se devesse responder às suas demandas, e não às da
coletividade a que deveriam servir.
Partidos e corporações terminam, assim, irmanados num
mesmo projeto de recusa da reforma da Previdência, cujo projeto visa o futuro;
a atração recíproca entre esses agentes públicos é dada por interesses
imediatos e particulares de uns e outros. Apesar de distintos, têm em comum a
visão de curto prazo e a preservação dos privilégios, esses “direitos” que só
valem para alguns.
*PROFESSOR DE FILOSOFIA NA UFRGS;
E-MAIL: DENISROSENFIELD@TERRA.COM.BR