Certos intérpretes da História brasileira entendem que
nossa democracia é “jovem”. Remonta, quando muito, ao fim dos governos
militares, nos anos 1980. Os petistas tendem a vê-la como fruto da própria
fundação do partido, no final dos anos 70. Seja como for, a invocação de nossa
“juventude” democrática sempre aparece como justificativa das mazelas políticas
do País.
Outros intérpretes preferem enfatizar os avanços
ocorridos em nossa vida democrática desde o retorno ao regime civil. Estes
entendem que já temos no País uma democracia em avançado estágio de
consolidação, graças a um sem-número de aprimoramentos.
Da primeira tese podemos inferir sem temor a erro que a
formação do nosso regime democrático pode ser compreendida sem recurso à
História. O que aconteceu antes dos anos 80 não importa. A ideia de que a
democracia resulta de um demorado processo de construção institucional não
passa de especulação. No tocante ao sufrágio, por exemplo, instituímos o voto
feminino em 1933, antes de vários países europeus; na primeira metade dos anos
80, 60% da população já estava habilitada a votar. Mas tais precedentes seriam
insignificantes. Voltar à Independência e ao Império, então, nem falar. Ou
seja, a democracia teria surgido da noite para o dia, prontinha. Das trevas
medievais teríamos passado direto às luzes democráticas que hoje bem ou mal
possuímos.
Os que veem nossas instituições já na reta de chegada, em
franco processo de consolidação, têm argumentos mais interessantes. Destacam,
com toda a razão, que o regime como tal não sofreu rupturas, nem sequer ameaças
sérias, desde seu restabelecimento em 1985. As eleições foram realizadas
segundo as regras e os prazos previstos. Finda a guerra fria e a radicalização
ideológica do pré-1964, neutralizada a propensão intervencionista então
existente entre os militares e controlada a inflação – sem esquecer outras
reformas relevantes, como a do sistema financeiro, efetivada nos anos 90 –, o
tradicional pessimismo sobre as instituições ter-se-ia tornado simplesmente
descabido. Quer dizer, se a primeira tese peca por falta, a segunda peca por um
enorme excesso.
A esta altura da discussão, não podemos prescindir de um
ligeiro excurso conceitual. A que conceito de democracia nos estamos referindo?
Segundo um entendimento muito difundido, democrático é o país onde só acontecem
coisas boas. Pobreza não existe e a desigualdade é apenas residual. A riqueza
nacional é suficiente para assegurar o bem-estar e a felicidade de todos os
cidadãos. Numa sociedade tão pouco conflituosa, os processos políticos, quase
desnecessários, são tocados por indivíduos probos, altruístas e de alto
discernimento. Claro, assim concebida, a democracia é apenas um sonho. Não
aparece em nenhum mapa. Pode ser uma bela imagem no plano onírico, mas nada tem
que ver com a reflexão proposta neste artigo.
A noção de democracia hoje quase universalmente aceita é
a de um regime político historicamente existente. Como tal, podemos decompô-la
em dois elementos. Trata-se, por um lado, de um sistema político em que as
autoridades públicas são escolhidas mediante eleições limpas e livres, nas
quais a maior parte da população adulta esteja apta a participar. Segundo, uma
vez investidas em suas posições governativas, as referidas autoridades exercem
suas funções sob restrições e pressões incessantes, ou seja, sujeitas a um
processo de contínua fiscalização e, no limite, à possibilidade de serem
afastadas.
Quanto ao primeiro requisito – como passageiramente já
indiquei –, creio haver no Brasil um consenso bastante razoável. Em si mesmo, o
ato de votar não é objeto de maiores restrições, mas a engrenagem da
representação política – especialmente o sistema eleitoral e a organização
partidária - tem sido questionada, e não sem razão. Por exemplo: os 20 e tantos
partidos atualmente representados na Câmara dos Deputados evidenciam a saudável
presença do leque de legítimos interesses e opiniões existentes na sociedade,
ou, ao contrário, uma farsa monumental, uma pseudorrepresentação de tais
interesses e opiniões?
Mas nem precisamos ir tão longe. Em nosso sistema, as
autoridades realmente governam sob uma contínua e eficaz fiscalização? As
restrições aqui consideradas são, desde logo, as insculpidas na Constituição e
nas leis, cuja titularidade cabe em primeiro lugar ao Judiciário e à
Procuradoria-Geral da República. Em que pese a atuação altiva e enérgica do
juiz Sergio Moro, não há dúvida de que o Brasil é ainda regido por duas
Justiças, uma para os poderosos e outra para os batedores de carteira. A
diferença entre ambas é que a segunda funciona. Essa realidade é de tempos em
tempos reconhecida até por ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). E esse
ponto, de permanente importância, precisa ser complementado por outro de
natureza conjuntural. Oito dos 11 ministros ora em atividade no STF foram
nomeados por Lula e Dilma Rousseff. Só os muito crédulos atribuem pouca
importância a esse fato.
O enunciado “governar sob restrições incessantes e
eficazes” traz evidentemente à baila a questão da transparência e de seu
correlato, a accountability, ou seja, a possibilidade de responsabilizar
autoridades que eventualmente atuem em desacordo com suas atribuições. Mas o
BNDES, por exemplo, só agora, sob a presidência da doutora Maria Silvia Bastos,
está cumprindo sua inequívoca obrigação de facultar o acesso da Justiça aos
registros de suas operações. Como é público e notório, tais informações foram
sonegadas durante um longo período. Trata-se de uma singularidade, um caso isolado,
ou de uma síndrome totalmente antagônica ao que se deve esperar numa
democracia, ainda mais considerando o volume de recursos movimentado pelo banco
e a catadupa de subsídios por ele concedidos a empreendimentos privados?
*Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor da
Augurium Consultoria, e membro da Academia Paulista de Letras
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