Artigo, Alan Feuwerker - Os riscos para o Brasil na crise venezuelana. E uma lembrança da Guerra do Paraguai


Artigo, Alan Feuwerker - Os riscos para o Brasil na crise venezuelana. E uma lembrança da Guerra do Paraguai

Cada um vê o imbroglio venezuelano conforme as lentes da ideologia, e esse é um direito inalienável. Há poucas coisas mais inúteis em política internacional do que discutir “quem tem razão”. Costuma ter razão quem tem a força para impor seu desejo. Os propagandistas entram na história para dar um trato na cena, fazer a limpeza e o embelezamento. Como aquele sujeito em Pulp Fiction. Não viu o filme? Veja.

Quem “tem razão” na Venezuela ? Depende. Se você defende que o melhor para a América do Sul agora é estancar a penetração russa e chinesa, e quem sabe iraniana, e de quebra varrer a esquerda que apoia o chavismo, faz sentido apoiar as pressões contra o governo de Nicolás Maduro. Se você acha que o mais importante é conter a tentativa americana de retomar a região como esfera de influência, fique do outro lado.

Mas se você é movido por teses como a defesa dos direitos humanos, da autodeterminação dos povos e do respeito irrestrito à separação dos poderes numa democracia que permita a alternância real no governo, aí talvez seja o caso de cautela. Porque a cada acusação contra o chavismo nesses temas há pelo menos um caso de país amigo dos Estados Unidos, e agora do Brasil, onde isso é deixado para lá. Então deixemos para lá.

A Venezuela é o país da hora onde enfrentam-se as potências que disputam a hegemonia planetária. Os Estados Unidos têm força militar suficiente para tentar resistir à perda de protagonismo para a economia da China. E a Rússia parece ter retomado o poderio militar para conter o declínio deflagrado pela dissolução da União Soviética. Por que a Venezuela? Tem muito petróleo e a América do Sul é um celeiro de commodities.

Está em curso portanto um movimento baseado na interpretação mais crua da Doutrina Monroe, “A América para os americanos”. E no princípio da projeção de poder (militar). Se a Ucrânia, a Síria e a Coreia do Norte são muito longe dos Estados Unidos, a Venezuela é muito longe da China e da Rússia. O recado de Trump é claro: se longe de casa precisamos negociar e aceitar acordos, aqui nas redondezas fazemos o que dá na telha.

E o Brasil? Se o plano de uma derrubada “limpa” do chavismo der certo, com as Forças Armadas dali coesas degolando o governo sem maiores reações e conseguindo estabilidade social e militar, e eventualmente política, tudo bem. O bolsonarismo celebrará a queda de mais um desafeto e vida que segue. Quem sabe até com oportunidades econômicas, com o Brasil entrando de sócio minoritário no desmonte da PDVSA.

Mas, e se der errado? Um risco para o Brasil é a disputa política na Venezuela enveredar para a guerra civil, coisa de que o continente parecia ter se livrado com o acordo de paz na Colômbia. E já que o Brasil decidiu ser protagonista na “guerra pela Venezuela”, será difícil simplesmente voltar para casa e dizer “virem-se, não temos nada a ver com isso”. Até porque nossa fronteira norte é extensa, porosa e cheia de povos indígenas.

Povos para os quais a fronteira e as nacionalidades produzidas após a ocupação hispano-portuguesa têm importância apenas relativa. Em miúdos, gente para quem ser da tribo é mais importante do que ser “brasileiro” ou “venezuelano”. Em tempo de paz, isso tem sido um desafio latente para o Brasil, particularmente para nossas Forças Armadas. Como ficaria a coisa em tempo de guerra? Especialmente se ela transbordar para cá?

Isso traria um conflito bélico para dentro de nossas fronteiras pela primeira vez desde a Guerra do Paraguai. Ela deu na Abolição e na República.

alon.feuerwerker@fsb.com.br

Marcia de Holanda Montenegro, Estadão - O fim da cegueira


Autoridades nem sequer enxergavam a ponta do iceberg da criminalidade organizada no Brasil

O projeto de lei apresentado pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, veio ao encontro dos anseios da população e, ao citar pelo nome as organizações criminosas que atuam no Brasil, a todos surpreendeu.
Por seguidos anos, autoridades com expressiva fatia de poder cometeram o grave e imperdoável erro de ignorar, negar ou minimizar a presença do crime organizado no País. Sem diagnóstico não há médico que cure. O câncer lançou metástases e se espalhou pelo País e pelo exterior.
Nesse cenário, propalou-se que a diminuição paulatina do número de homicídios registrados até o ano de 2018 no Estado de São Paulo se deveria a avanços da política de segurança pública. Não. Essa redução coube ao Primeiro Comando da Capital (PCC), que, ao aqui crescer, fez decrescer o número de homicídios.
Foi-se a época das seguidas e numerosas mortes entre grupos de criminosos pela liderança e demarcação de território. Finda a rivalidade, acalmaram-se presídios, favelas e bairros da periferia. Não existe explicação plausível para que a política de segurança pública de São Paulo tivesse conseguido conter homicídios e não, em igual proporção, roubos e latrocínios.
O homicídio atinge o bem maior do ser humano, a vida. O roubo, ainda que tenha como finalidade a subtração da coisa alheia, pelos elementos que o compõem - a violência e a grave ameaça - traz ínsito o risco potencial de morte, que, ao se concretizar, transforma a conduta num dos mais graves crimes hediondos, o latrocínio. Ao pôr em risco indistintamente toda a coletividade em qualquer lugar público ou privado, o roubo expõe à morte um número bem maior de pessoas do que o homicídio. Enquanto o roubador age pelo desejo de possuir a coisa alheia, o homicida, ao exibir comumente laços com a vítima (afetivos, de parentesco, amizade ou desafeição), move-se por questões pessoais ou íntimas. Por isso grande parte dos homicídios tem como palco locais fechados, como o recôndito dos lares, festas, bares ou áreas ermas e desabitadas, que favorecem emboscadas e o sucesso da ação criminosa. Essas peculiaridades conferem natureza especial a esse crime, a dificultar a prevenção pela polícia - ao contrário dos roubos e latrocínios, cuja redução está diretamente ligada à eficiência da política de segurança pública do Estado.
À parte os costumeiros homicídios previstos no Código Penal de 1940, surgiram os nem sequer imaginados pelo então legislador: os resultantes de batalhas que compõem verdadeiras guerras entre grupos, gangues e facções. A que levou o terror ao Ceará teve por objetivo desestabilizar o Estado; as que decorreram em 2017 no Rio Grande do Norte e as rotineiras no Rio de Janeiro mostram nítida a luta pelo poder - consolidado há tempos no Estado fluminense pela hegemonia da facção paulista. A dominância dessa facção exibe outra face: a que responde por súbitos aumentos do número de homicídios, como se viu nos ataques do ano de 2006. Coube à mídia nacional, à repercussão internacional e ao clamor público, no ano de 2017, o alerta às autoridades, que nem ao menos enxergavam a ponta do iceberg da criminalidade organizada no Brasil.
Ao lado do pacote anticrime, o plano do governo estadual para enfrentar os males do sistema prisional noticiado neste jornal em 19 de janeiro dá vida ao esgarçado fio de esperança que resta aos cidadãos paulistas. Neste Estado, um presídio de segurança máxima serviu de berço à facção criminosa que, ao cooptar de forma sistemática novos integrantes presos, tranquiliza unidades prisionais e mantém a hegemonia. A proposta do governo de São Paulo para a construção de estabelecimentos para abrigar condenados sem antecedentes e primários, não familiarizados com o crime organizado e que, a par disso, exibem periculosidade é um passo decisivo para o fim do recrutamento de presos e da superlotação dos presídios. A medida, contudo, demanda tempo; outras, prementes e paralelas, exigem ser concretizadas.
O desmonte das escolas do crime e o fim do comando de ações criminosas do interior de presídios se fazem por transferências como as recentes e pela rígida separação e fiscalização dos presos - jamais pelo esvaziamento do cárcere, como sugerem alguns. Ao menos neste Estado, o regime inicial fechado é fixado para aqueles cuja segregação se faz efetivamente necessária.
Oportuna, assim, a visita de representante do governo estadual a presídios nos Estados Unidos, como registra a mesma matéria. No ano de 1995, em visita a penitenciárias federais naquele país, notamos que os presos, numa delas, exibiam semelhante e robusto porte físico. No curso da visita ficou clara a razão: imensa área abrigava variados equipamentos de musculação. Como reconhece a medicina, endorfina e serotonina, liberadas em atividades físicas, são os hormônios do bem-estar.
Anos depois, nesta capital, em visita de correição a uma delegacia de polícia, presenciamos a rotina da unidade alterada pelas visitas íntimas que se iniciaram na carceragem, atrás de improvisado biombo montado com lençol e sob a coordenação de servidores públicos. Afora o trabalhoso aparato para a organização, é ponte de transmissão de informações preciosas e ingresso de drogas, apreendidas não raras vezes na posse de visitantes, ocultas nos órgãos íntimos.
Parcela significativa de ações para conter a criminalidade também cabe ao Legislativo federal. Não há sequer figuras penais adequadas e penas à altura das barbáries que vêm sendo perpetradas no Brasil. Como a lei está sempre passos atrás do criminoso, é essencial um Legislativo atento, sensível e célere.
O caminho a trilhar é longo e o êxito muito está a depender da sintonia entre os três Poderes da República.
*MARCIA DE HOLANDA MONTENEGRO É PROCURADORA DE JUSTIÇA DO MINISTÉRIO PÚBICO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Artigo, Renato Sant'Ana - A inconstitucionalidade do guardião da Constituição Federal


       Diante das mazelas da pátria, Tom Jobim tinha certo desalento, mas nunca perdia o bom humor. E costumava dizer que o Brasil é um "país de cabeça pra baixo". E recomendava olhar o mapa e ver "aquela coisa enorme, tentando se equilibrar numa pontinha fina." E era fácil imaginar o gigante que, desafiando a lei da gravidade, se permite a bizarrice de plantar bananeira.
          Pois os sofistas do Supremo Tribunal Federal (STF) "recepcionam" a alegoria de Tom Jobim, promovendo cambalhotas jurídicas. Com o costumeiro malabarismo retórico, uma vez mais estão a rasgar a Constituição Federal (CF), ultrapassando as suas prerrogativas e atropelando o Poder Legislativo.
          Para entender, imaginemos um hipotético movimento pela criminalização do não comparecimento ao culto religioso. E, porque o Congresso Nacional nunca pautou a discussão da matéria, ativistas pediriam ao STF a declaração de que não ir ao templo aos domingos é crime.
          Parece bizarro? Mas é rigorosamente o que acontece quando se requer ao Supremo Tribunal Federal (STF) a decretação de que uma tal conduta é crime, como acaba de ocorrer em relação à "homofobia". Por quê?
          Ora, em matéria criminal, vigora o "princípio da reserva legal": é prerrogativa exclusiva do Congresso Nacional (Poder Legislativo) fixar, mediante rigorosa obediência aos princípios legislativos previstos na CF, quais condutas são crimes e a que penas estão elas sujeitas. Ou seja, é reservado somente ao Congresso Nacional estabelecer o que é crime. É matéria incontroversa da CF, que, aliás, diz peremptoriamente que "não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal", art. 5º, XXXIX.
          Entretanto, não decidir é uma forma de decisão, em se tratando de legislar! Se o Congresso Nacional achar que é tolice discutir o "crime de não ir à igreja" (como no exemplo hipotético), poderá decidir simplesmente abster-se de discuti-lo. É uma forma de dizer "não é crime". E acabou.
          Por outro lado, vigora no Brasil a separação dos poderes: o Poder Judiciário não tem a prerrogativa de obrigar o Poder Legislativo a seguir este ou aquele caminho. E se o fizer, estará estuprando a Constituição! Não venham com sofismas!
          A sociedade, sim, pode insurgir-se - por meios legais, frise-se - contra qualquer ato do Poder Legislativo. Se quiser acusar omissão, terá legitimidade para fazê-lo!
          Agora, porque "homofobia" (neologismo esdrúxulo) é assunto assediado pelo politicamente correto, porque cada voto no tribunal é um espetáculo televisivo, e talvez porque suas excelências queiram parecer fofas, a Suprema Corte, balizada pelo voto de Celso de Mello, pretende dar uma ordem ao Congresso Nacional, obrigando-o a instituir o crime de homofobia, ou seja, dizer-lhe como conduzir-se num cenário que é de seu privativo manejo.
          A questão não é se homofobia deve ou não ser crime, mas a inexistência de norma programática determinando a sua criminalização. Logo, não há como alegar desleixo do legislador, o que tornaria cabível provocar uma declaração do STF. Desobriga-se, pois, o Congresso Nacional de considerar o que venha a ser decidido, ficando o efeito da acrobacia jurídica para futuras decisões "inovadoras" de magistrados pós-modernos.
          Em conclusão, o STF não tem legitimidade para criar norma penal nem para mandar o Congresso Nacional Fazê-lo. Antes, é sua obrigação respeitar a separação dos poderes em obediência à CF. Ao atropelar o parlamento, violando o princípio da reserva legal, o STF põe o ordenamento jurídico de pernas para cima e garante a atualidade da ironia de Tom Jobim.

Renato Sant'Ana é Psicólogo e Advogado.