Artigo, Consultor Jurídico - HC 166.373: uma nova posição jurídica para os "delatores" e "delatados"


Por Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch e Felipe Fernandes de Carvalho

No âmbito do julgamento do habeas corpus nº 157.627, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal declarou nulos os atos de uma ação penal na qual os colaboradores premiados apresentaram alegações finais concomitantemente ao acusado que foi por ele “delatado”. Liderada pelo substancioso voto do Ministro Ricardo Lewandowski, a maioria do órgão colegiado compreendeu que a manifestação de um “delator” possui conteúdo acusatório, de modo a influenciar a ordem dos atos praticados sob o prisma do direito ao contraditório e à ampla defesa do “delatado”.
Na sessão de julgamento marcada para a data de hoje, 25/09/2019, a mesma discussão deve ser realizada no âmbito do habeas corpus n˚ 166.373, agora perante o Plenário da Suprema Corte. Mais do que aferir a regularidade de diversos atos processuais em um caso concreto, a decisão a ser proferida pelo Plenário terá o condão de externar a condição processual do colaborador premiado, bem como posicionar o conteúdo do direito fundamental ao contraditório à luz desse estamento.
A principal discussão posta perante a Suprema Corte reside na ausência de encerramento da celeuma jurídica do colaborador premiado após a celebração de seu acordo. Com efeito, pelas disposições da Lei n˚ 12.850/2013, assim como em razão do arcabouço constitucional brasileiro e da dogmática penal, cabe ao Magistrado indicar a sanção in concreto que deve ser cumprida pelo colaborador. Deve este, portanto, participar ativamente dos atos processuais da persecução penal, a qual, por sua vez, pode ter sido instaurada a partir de relatos por ele prestados, para, ao cabo da persecução, demonstrada a efetividade da colaboração, gozar de benefícios processuais.
No ponto, existe uma distinção entre o modelo brasileiro e o estadunidense, o qual, em grande medida, influencia o direito penal premial. Nos Estados Unidos, é possível que uma declaração do acusado – qual seja, a plea guilty – consubstancie uma verdadeira conviction, tal como o veredito de um júri. Após a plea guilty, caberá ao juízo apenas proferir a sentença que convalide essa situação jurídica.[1] Com efeito, a plea guilty, que pode ser derivada de um processo de barganha, retira o acusado da discussão processual – o que não ocorre com um colaborador premiado no Brasil.
Especificamente quanto a esse tema, a colaboração premiada, tal como conformada no direito pátrio, aproxima-se da declaração conhecida no direito estadunidense como plea of nolo contendere. Nesse tipo de declaração, o acusado declara que não deseja contestar a sua culpabilidade ou declarar a sua inocência.[2] De outra sorte, é uma declaração de admissão dos fatos contidos no indictment ou na information – formas de veiculação da acusação –, os quais ainda deverão ser demonstrados em juízo.[3] Assim, quando feita uma declaração de nolo contendere, a discussão processual com relação ao acusado que realizou a plea of nolo contendere persiste ao longo do procedimento instaurado.
A compreensão de que o instituto da colaboração premiada aproxima-se, especificamente nesse particular, da declaração de nolo contendere, demanda a fixação dos direitos de cada uma das partes processuais. O “delator” e o “delatado” conviverão dentro do mesmo processo e, assim, a atribuição de direitos específicos a cada um deles e a delimitação do escopo desses direitos devem ser clarificadas – tarefa de incumbência do Supremo Tribunal Federal na sessão plenária de 25/09/2019.
No que concerne ao objeto de discussão do julgamento de referidos habeas corpus, a compreensão do direito ao contraditório, tal como lecionado por Antônio Magalhães Gomes Filho[4], envolve o binômio ciência da acusação e possibilidade de influenciar em seu resultado. Como consectário desse direito, confere-se a inafastável prerrogativa do acusado de falar por último dentro de uma persecução penal.
É nesse sentido que está a sabedoria do voto proferido pelo Ministro Lewandowski no âmbito do habeas corpus nº 157.627, quando apreciado pela Segunda Turma do STF. A abordagem da questão jurídica em seu voto foi erigida não sob a ótica dos regramentos legais e infraconstitucionais, mas da máxima eficácia do direito fundamental ao contraditório. A hermenêutica constitucional demanda que a interpretação sistemática dos regramentos seja feita com base nos direitos fundamentais. Nessa perspectiva, os consectários do direito ao contraditório apenas estão presentes no caso concreto quando observada a ordem de manifestação daqueles que veiculam teses acusatórias. À luz dessa leitura constitucional da questão penal, o voto proferido pelo Ministro Lewandowski possui estrutura muito sólida.
Sem embargo, a compreensão de que a posição do “delator” aproxima-se da do órgão acusatório não reverbera efeitos apenas para a fase de apresentação de alegações finais. Ao se conferir esse contorno à figura processual do “delator”, deve-se impor que este se manifeste antes do “delatado” ao longo de toda a persecução penal – da mesma forma como ocorre com o Ministério Público e o acusado e com o Querelante e o Querelado.
Em sendo fixada essa posição jurídica ao “delator”, a consequência lógica não pode se restringir à sedimentação de ordem para apresentação de alegações finais, devendo-se expandir para a ordem de apresentação de resposta à acusação, de oitiva de testemunhas e, de uma forma geral, para todas as outras manifestações processuais.
Mais do que isso, a demanda posta sob julgamento na data de hoje, 25/09/2019, exigirá o escorreito enquadramento das demais situações em que os acusados veiculam pretensões acusatórias, e não apenas às situações dos colaboradores premiados formais. A casuística em que um corréu, sem a formalização de um acordo público, realiza confissão atribuindo fatos a terceiros, expressando a vontade do corpo acusatório, revela faceta ainda mais complexa de violação aos já mencionados corolários do direito ao contraditório, dada a imprevisibilidade de o “delatado” estruturar defesa a esse propósito.
O tamanho do desafio do Supremo Tribunal Federal seria menos expressivo se o instituto da colaboração premiada fosse mais bem estruturado no ordenamento jurídico brasileiro. A ausência de digressões legais a respeito da posição jurídica do “delator”, em especial daquele que é colaborador premiado, dificulta a interpretação de casuísticas complexas. O julgamento de hoje exige da Suprema Corte a conformação de instituto novo no direito brasileiro e de tradição anglo-saxã à luz da ordem constitucional vigente e da dogmática penal.

[1] Em Kercheval v. United States, apontou-se que “A plea of guilty differs in purpose and effect from a mere admission or an extrajudicial confession; it is itself a conviction. Like a veredict of a jury, it is conclusive. More is not required; the court has nothing to do but give judgment and sentence.”
[2] Em United States v. Wolfson, de 1971, foi consignado que a declaração de não contestação significa literalmente “I will no contest it” ou “I do no wish to contend”.
[3] GARCÍA, Nícolas Rodríguez. La Justicia Penal Negociada, experiencias de derecho comparado. Ediciones Universidad de Salamanca, 1997, p. 37-38.
[4] GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A motivação das decisões penais. 2. ed. rev. e atual. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2013, p. 35.
Rodrigo de Bittencourt Mudrovitsch é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e mestre em Direito Constitucional pela Universidade de Brasília (UnB).
Felipe Fernandes de Carvalho é sócio do Mudrovitsch Advogados, mestrando em Direito Penal pela Universidade de São Paulo (USP), especialista em Corrupção e Crime Organizado pela Universidad de Salamanca (Espanha), bacharel em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e membro do Instituto de Cooperação Jurídica Internacional.

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