“Que obra-prima é o homem! Como é nobre em sua razão! Que capacidade infinita! Como é preciso e bem-feito em forma e movimento! Um anjo na ação! Um deus no entendimento, paradigma dos animais, maravilha do mundo. Contudo, pra mim, é apenas a quintessência do pó. O homem não me satisfaz; não, nem a mulher também, se sorri por causa disso.” (Shakespeare, Hamlet)
O leitor tem consciência de que somos maus? Bem, se discorda, pode ao menos admitir que, em geral, não somos tão bons como muitas vezes pensamos ser? Que não raro somos contraditórios, mentirosos, manipuladores, acusadores, intolerantes, inflexíveis, inclementes, irascíveis, cruéis, impiedosos... e outras tantas características reprováveis que o leitor mesmo pode completar mentalmente? Que muitas vezes colocamos os nossos interesses acima de qualquer outra coisa (ou outrem)?
Daí que de vez em quando me pego pensando em como os esquerdistas conseguem conceber, diante de tantas evidências de nossas idiossincrasias, de nossos defeitos, a ideia de que, de acordo com as boas intenções de suas teorias e um planejamento político baseado em teorizações, será possível fazer surgir, “em lugar da antiga sociedade burguesa, com suas classes e antagonismos de classes [...], uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”, como profetizaram Marx e Engels em seu Manifesto.
Como alcançar a igualdade pretendida se é evidentíssimo que os seres humanos são naturalmente desiguais?
Não compreendo como, baseados não em evidências ou em análises de experiências passadas – que, no caso do socialismo, deram tão errado que obrigaram seus defensores contemporâneos a, muitas vezes, dizerem que houve um desvirtuamento das intenções iniciais e que tais experiências não são o socialismo real –, mas somente em projeções intelectuais, se possa, com segurança, alcançar os objetivos pretendidos. Como alcançar a igualdade pretendida se é evidentíssimo que os seres humanos são naturalmente desiguais? E que somente com incentivos que sejam vantajosos aos indivíduos ou grupos é possível fazê-los seguir um planejamento coletivo?
Marx enumera, em seu manifesto, medidas radicais para a consolidação do processo revolucionário, tais como: “expropriação da propriedade fundiária e emprego da renda da terra para despesas do Estado; confisco da propriedade de todos os emigrados e rebeldes; centralização do crédito nas mãos do Estado por meio de um banco nacional com capital do Estado e com monopólio exclusivo; centralização de todos os meios de comunicação e transporte nas mãos do Estado; unificação do trabalho obrigatório para todos, organização de exércitos industriais, particularmente para a agricultura; educação pública e gratuita a todas as crianças; abolição do trabalho das crianças nas fábricas, tal como é praticado hoje” [notem esse maroto “tal como é praticado hoje”] e outras ousadias. E é óbvio que a participação nesse processo será compulsória e ele jamais será conduzido pela totalidade da chamada classe trabalhadora.
Não há dúvidas de que sempre haverá lideranças a conduzirem esses processos e que somente à força será possível fazer cumprir medidas tão draconianas – para dizer o mínimo. Quando Marx, ao defender a abolição da propriedade, diz que “em vossa sociedade a propriedade privada está suprimida para nove décimos de seus membros. E é precisamente porque não existe para esses nove décimos que ela existe para vós”, ele o diz como se a realidade daquele momento fosse perene. No Brasil atual, por exemplo, 20,9% da população não possui uma casa própria. Óbvio que os números variam por região, mas isso justifica uma expropriação geral?
Eric Voegelin, no volume VIII de sua História das Ideias Políticas, é preciso em sua crítica, ao dizer:
“Marx, como Bakunin, está a par do perigo que subjaz nas tentativas levianas de dar conteúdo à visão do futuro pela elaboração de um catálogo de exigências concretas que não podem ser nada senão negações dos males presentes. O comunismo não é uma reforma institucional; é, na verdade, uma mudança da natureza do homem. Com este perigo em vista, Marx distinguiu cuidadosamente entre ʻcomunismo toscoʼ (roher Kommunismus) e ʻcomunismo verdadeiroʼ ou socialismo. O comunismo tosco é a ʻexpressão positivaʼ da propriedade privada abolida; estabelece a ʻpropriedade privada geralʼ; é apenas uma generalização e perfeição da propriedade privadaʼ. O domínio da propriedade nas coisas é tão enorme que o comunismo tosco quer aniquilar tudo que não possa ser possuído como propriedade privada por todo o mundo. Considera a propriedade imediata, física, o único propósito de vida. A existência do trabalhador não é abolida, mas estendida a todo o mundo; quer destruir pela violência todo talento diferenciador. [...] Tal abolição da propriedade privada não é sua apropriação verdadeira; nega a civilização por seu retorno a uma simplicidade não natural de pessoas pobres que não estão para além da propriedade privada, mas que ainda não chegaram a ela. Daí a comunidade do comunismo tosco não ser nada senão uma comunidade de trabalho e de igualdade de salário pago pela comunidade como o capitalista geral. O comunismo verdadeiro é o retorno do homem a si mesmo como homem social ʻdentro de toda a riqueza do desenvolvimento humano até este pontoʼ. É um naturalismo humanista completado, ʻa solução verdadeira do conflito entre o homem e a naturezaʼ. É o enigma resolvido da história e conhece a si mesmo como a solução. A sociedade comunista ʻé a ressurreição verdadeira da natureza, o naturalismo concretizado do homem e o humanismo concretizado da naturezaʼ.”
A citação é longa, mas dá o tom do delírio. No fundo, como diz Voegelin, “na raiz da ideia marxista encontramos a doença espiritual, a revolta gnóstica. Não se dirá muito a seu respeito. [...] A alma de Marx está demoniacamente fechada à realidade transcendental. Na situação pós-hegeliana, crítica, ele não consegue desenredar-se das dificuldades, pelo retorno à liberdade do espírito. Sua impotência espiritual não deixa nenhuma saída senão o descarrilamento no ativismo gnóstico”. Ao ignorar a realidade transcendente, Marx julga-se capaz de consertar a realidade por uma mera reorganização socioeconômica materialista. E quer que confiemos em sua “revolta gnóstica”, em sua tentativa de, mediante um conhecimento da sociedade revelado somente à sua inteligência prodigiosa, alcançarmos o paraíso na Terra.
Há quem confie piamente nisso. Eu não..
Link da coluna:
https://www.gazetadopovo.com.br/vozes/paulo-cruz/maldito-o-homem-que-confia-no-homem-karl-marx-comunismo/