O Brasil adota o sistema de foro por prerrogativa de
função, mais conhecido como foro privilegiado, para os que exercem determinados
cargos públicos. Em outras palavras: ações penais contra determinadas
autoridades tramitam nos tribunais, e não nos juízos de primeira instância.
Segundo Júlio Fabbrini Mirabete, “há pessoas que exercem
cargos e funções de especial relevância para o Estado e, em atenção a eles, é
necessário que sejam processados por órgãos superiores, de instância mais
elevada”[1]. Em síntese: órgãos superiores da Justiça teriam maior
independência para julgar altas autoridades.
Assim, por exemplo, ao Supremo Tribunal Federal cabe
julgar o presidente da República, o vice-presidente, os membros do Congresso
Nacional, seus próprios ministros e o procurador-geral da República nos crimes
comuns e, nas infrações penais comuns e nos crimes de responsabilidade, os
ministros de Estado, os membros dos tribunais superiores, do Tribunal de Contas
da União e chefes de missão diplomática de caráter permanente (CF, artigo 102,
I, “b” e “c”). Aos tribunais de Justiça cabe o julgamento dos prefeitos (CF,
artigo 29, VIII), dos juízes de Direito e promotores de Justiça, secretários de
Estado e outras autoridades, conforme previsão nas Constituições estaduais.
Ocorre que as chamadas ações penais originárias estão
muito longe de serem eficientes, terminando, quase sempre, em prescrição.
Exceção à regra foi o processo criminal conhecido por mensalão, que tramitou no
STF e acabou resultando na condenação de vários políticos e empresários. Porém,
aí o grande mérito foi do ministro Joaquim Barbosa, que, com tenacidade, levou
a ação penal até o fim. Algo excepcional, sem dúvida.
No entanto, como os cargos que dão direito ao foro por
prerrogativa de função sujeitam-se a serem providos e desprovidos, na dinâmica
própria da vida, sucede que muitas vezes a competência muda ao início ou
durante a ação penal, de acordo com o interesse do réu.
O deputado federal Renato Azeredo (PSDB) renunciou ao
mandato em 2014, fazendo com que a ação penal que respondia no STF, sob a
acusação de desvio de dinheiro público durante as eleições para governador de
Minas Gerais em 1998, fosse remetida para a Justiça Federal em Belo Horizonte.
O deputado estadual do Paraná Fernando Ribas Carli Filho (PSB), acusado de ter
matado dois jovens dirigindo embriagado, renunciou ao cargo em 2009 para não
ser julgado no Tribunal de Justiça, sendo a ação penal remetida à comarca de
Curitiba.
Quando um réu de ação penal originária renuncia ao seu
cargo, nada pode ser feito. É um direito seu, ao qual ninguém pode se opor,
pois não há lei que obrigue alguém a ficar no cargo. E a Constituição diz no
artigo 5º, inciso II que ninguém é obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma
coisa, senão em virtude de lei.
Porém, pode suceder o oposto, ou seja, alguém acusado da
prática de um delito é convidado a ocupar um cargo que lhe dê foro especial,
isto é, dê-lhe a possibilidade de livrar-se da Justiça de primeira instância e
de responder em um tribunal. Isso pode ocorrer no Poder Executivo e no
Legislativo, onde há uma grande quantidade de cargos em comissão. Por exemplo,
um vereador está sendo investigado por crime de pedofilia e consegue nomeação
para o cargo de secretário de Estado, subtraindo-se da ação do promotor da comarca
e sujeitando-se a uma ação no Tribunal de Justiça, onde o processo andará mais
lentamente.
Em caso como o do exemplo citado, é preciso verificar se
a finalidade do ato administrativo de nomeação foi deturpada, a fim de atingir
objetivo diverso do simulado. Odete Medauar é clara ao dizer que “o fim de
interesse público vincula a atuação do agente, impedindo a intenção
pessoal”[2]. Se os motivos forem apenas aparentes, porque o fim desejado é
outro, ocorrerá desvio de finalidade. É o caso, por exemplo, da remoção de um
policial sob o argumento de que dele se necessita em outro município, quando,
na verdade, o objetivo é afastá-lo da investigação de determinado caso.
Hely Lopes Meirelles, com a clareza que marcou suas
obras, ensina que “odesvio de finalidade ou de poder se verifica
quando a autoridade, embora atuando nos limites de sua competência, pratica o
ato por motivos ou com fins diversos dos objetivados pela lei ou exigidos pelo
interesse público”[3]. Celso Antonio Bandeira de Mello enfatiza que, “a
propósito do uso de um ato para alcançar finalidade diversa da que lhe é
própria, costuma se falar em ‘desvio de poder’ ou ‘desvio de finalidade’”[4].
A consequência dessa deturpação do objetivo, que na
realidade administrativa brasileira não é rara, é a nulidade do ato. Lucas
Rocha Furtado, de forma objetiva, observa que, “independentemente de qualquer
outro vício, se o ato foi praticado contrariando a finalidade legal que
justificou a outorga de competência para a prática do ato, ele é nulo”[5].
Para arrematar, a Lei da Ação Popular, 4.717, de 1965,
afirma que é nulo o ato administrativo praticado com desvio de finalidade e no
artigo 2º, parágrafo único, alínea “e” explicita que:
e) o desvio de finalidade se verifica quando o agente
pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou
implicitamente, na regra de competência.
Se assim é, conforme ensinamento uniforme da melhor
doutrina, resta apenas saber como, no caso concreto, se concluirá pela
existência ou não de dissimulação. Evidentemente, o ato sempre será editado com
base em premissas falsas, aparentemente verdadeiras.
A resposta está na análise das circunstâncias. Por
exemplo, imagine-se que um médico renomado, portador de títulos acadêmicos,
seja convidado para assumir a Secretaria de Saúde do Estado e que responda, no
Juizado Especial Criminal, pelo crime de lesões corporais leves, em virtude de
um soco desferido em seu vizinho em meio a uma acalorada discussão em
assembleia de condomínio. Seria ridículo imaginar que a indicação de seu nome
visava subtrair do JEC a competência para processá-lo, passando-a ao Tribunal
de Justiça.
No entanto, diversa será a situação se a indicação for
feita a um dentista envolvido em graves acusações de estupro de pacientes para
ocupar o cargo de ministro dos Transportes, no momento exato em que o Tribunal
de Justiça julgará apelação contra sentença que o condenou a 20 anos de
reclusão. Aí o objetivo será flagrantemente o de evitar o julgamento pelo TJ e
a manutenção da sentença condenatória e a sua execução imediata, transferindo o
caso para o Supremo Tribunal Federal. O ato administrativo será nulo por
evidente desvio de finalidade.
A ocorrência desse tipo de desvio de conduta sujeitará a
autoridade administrativa, seja ela membro do Poder Legislativo, prefeito,
governador, presidente da República ou outra do segundo escalão do Executivo, a
ação popular e, ainda, ação ordinária de nulidade do ato, junto com a União,
que poderá ser proposta no foro federal do domicílio do autor.
Na verdade, as práticas administrativas passam, no
Brasil, por um flagrante processo de mudança. Basta ver a obrigatoriedade atual
da transparência dos atos administrativos, inimaginável há duas ou três
décadas. Assim, os administradores, seja qual for o nível ou o Poder de Estado
a que pertençam, devem se acautelar na condução de seus atos, pois, em boa
hora, ficou para trás o tempo do “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
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[1] MIRABETE, Julio Fabbrine. Processo
Penal, 2ª ed., Atlas, p. 181.
[2] MEDAUAR, Odete. Direito Administrativo
Moderno, 17. ed. São Paulo: RT, 2013, p. 157.
[3] MEIRELLES, Hely Lopes. Direito
Administrativo Brasileiro, 14. ed. São Paulo: RT, 1989, p. 92.
[4] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio, Elementos
de Direito Administrativo. São Paulo: RT, 1987, p. 47.
[5] FURTADO, Lucas Rocha. Curso de Direito
Administrativo. Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 303.
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