Mandado coletivo é necessário - FÁBIO MEDINA OSÓRIO
O GLOBO - 23/02
Serve para adentrar residências em busca de armamentos ou
mesmo na perseguição a criminosos foragidos, sem falar na busca de produtos de
crimes
Alguém tem dúvida de que a residência é local inviolável,
nos termos do artigo 5º, capítulo 11, da Constituição Federal? As exceções são
as hipóteses previstas de prévia ordem judicial, flagrante delito ou desastre,
e para se prestar socorro.
Tratemos, então, da prévia ordem judicial, que remete ao
mandado de busca e apreensão, disciplinado no artigo 243 do Código Processual
Penal. Esse dispositivo estabelece que se deve indicar “o mais precisamente
possível a casa em que será realizada a diligência e o nome do respectivo
proprietário ou morador”.
Os mandados de busca servem para adentrar residências em
busca de armamentos ou mesmo na perseguição a criminosos foragidos, sem falar
na busca de produtos de crimes. O que significa o mais precisamente possível
quando estamos a cuidar de territórios inteiros dominados pelo crime
organizado? O direito de propriedade sobre os imóveis situados nesses
territórios fica bastante fragilizado. E a finalidade a que se destina um
mandado de busca resultaria esvaziada, se houvesse uma visão restritiva dessa
regra — o que enfraqueceria os direitos dos próprios ocupantes desses imóveis,
que se veriam expostos à ação de quem domina aquele território.
Em áreas ocupadas pelo crime organizado, como ocorre nas
favelas cariocas, em que os próprios moradores vivem sob o império do medo e do
controle por parte dos delinquentes, não se pode estabelecer os mesmos
parâmetros do mandado de busca destinado a uma área sob controle do Estado.
Analiso tal quadro pela perspectiva dos direitos dos
próprios titulares da propriedade ou posse dos imóveis. A característica
central do crime organizado no Rio é a territorialidade ocupada em detrimento
do Estado. A autoridade territorial nessas comunidades não é o Estado, mas sim
o detentor do poder paralelo. Vale dizer, esses personagens integrantes das
organizações criminosas garantem os direitos dos moradores, incluindo o direito
de propriedade. São eles que detêm o monopólio da violência, não o Estado. É
exatamente na caracterização de uma grave desordem pública que se justifica a
intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro, conforme está assegurado no
decreto presidencial.
Por essa linha de raciocínio, mandados de busca coletivos
seriam uma garantia de que os criminosos não conseguiriam invadir domicílios
alheios para buscar abrigo contra legítimas ações do poder público.
Ao contrário do que muitos juristas afirmam, os mandados
coletivos resguardam os direitos dos próprios moradores dessas comunidades, na
medida em que lhes permitem o acesso das Forças Armadas às suas casas, e assim
impedem que seus imóveis sejam ocupados pelas organizações criminosas.
Impressiona o discurso, encampado até mesmo por
respeitados juristas, que presume que as autoridades policiais e Forças Armadas
sejam o “lado mau” nesse embate que se travará em áreas ocupadas no Rio há
muitos anos pelo crime organizado.
Pode-se discutir se a intervenção foi ou não oportuna, se
foi ou não bem planejada, se poderá ou não funcionar, se teve ou não fins
políticos. Porém, para que produza resultados minimamente satisfatórios, as
Forças Armadas necessitam dispor dos meios adequados. A deterioração dos
espaços públicos nas favelas ocorreu por abandono do Estado, por ineficiência
endêmica, por corrupção.
Houve falhas estruturais na gestão da segurança pública,
e lamentavelmente essa não é uma realidade apenas do Rio de Janeiro. Porém, em
tal estado, a característica da ocupação territorial pelo crime organizado é
peculiar. A (re) ocupação do território pelo Estado exige, sim, mandados de
busca coletivos, circunscritos a determinadas áreas, com especificações que
assegurem a lisura das operações, seus objetivos, suas finalidades, e as razões
em que se alicerçam.
Fábio Medina Osório é jurista e foi ministro da
Advocacia-Geral da União
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