Mandado coletivo, uma falsa polêmica - RAUL JUNGMANN
O Globo - 22/02
Tome-se por hipótese que uma investigação policial
identificou em determinado prédio residencial o cativeiro em que sequestradores
mantêm reféns. A polícia, no entanto, não sabe em que apartamento estão o
bandido e suas vítimas. Pede, então, ao juiz um mandado que lhe permita
vistoriar todo o prédio para localizar o esconderijo e salvar vidas.
Esse é o fundamento de um mandado coletivo de busca e
apreensão, que tanta celeuma causa há dias, apesar de ser utilizado desde 2012,
ainda que não tenha produzido jurisprudência específica. O recurso pode ser
essencial em algumas circunstâncias para a conclusão de um trabalho de
inteligência e investigação, depende de concessão judicial e não constitui
regra, mas exceção. Não obstante, é alvo de questionamentos que o condenam por
antecipação, na suposição de que será utilizado ao bel-prazer da autoridade
policial, quando e onde bem entender.
Antes de mais nada, é preciso enfrentar a hipocrisia
intelectual que, à semelhança dos traficantes nas favelas, coloca os inocentes
como escudo de suas teses para aparentemente defendê-los (sem mandato para tal)
de um instrumento que os favorece e que só pode ser utilizado com autorização
judicial, caso a caso. Valem-se da topografia carioca, de morros e asfalto,
para condenar os mandados em comunidades cuja característica é de habitação
geminada, comumente utilizada pelos traficantes — não raro à força — para
esconder seus arsenais de armas e drogas, dificultando a ação da polícia.
Outros argumentam que a intervenção federal, pelo fato de
ser exercida por um general, ameaça os direitos humanos e, mesmo, as vidas de
inocentes, pobres e oprimidos em ambiente em que só o traficante é livre.
Como se a intervenção já não configure uma reação máxima
do governo federal a um cenário de violência fora de controle, em que milhares
de inocentes morrem — agora até mesmo no útero, agravando estatísticas maiores
que as de guerras em curso no mundo.
E como se os milhões de habitantes que vivem em
comunidades sob o controle do tráfico não estejam espoliados nos seus direitos
constitucionais mais elementares, entre os quais o de ir e vir e o de votar
livremente.
A intervenção veio resgatar a ordem democrática, e sua
decretação cumpriu os preceitos constitucionais que a regem — e dentro deles se
manterá.
Foi uma decisão político-administrativa, amplamente
aprovada pelo Congresso Nacional e restrita ao aparelho de segurança estadual.
Sabe-se que o Rio não centraliza as preocupações apenas
por suas estatísticas de violência, mas pela dominação de territórios pelo
crime que faz vigorar suas próprias “Constituições”, inclusive determinando
quais candidatos podem ali fazer suas campanhas.
Tem-se aí um Estado paralelo com representação
parlamentar e, portanto, com prerrogativa para indicações políticas na
estrutura pública, porta de passagem da criminalidade para o Estado.
Entre outros objetivos, a intervenção visa a romper as
cadeias de transmissão entre áreas do setor público com o crime organizado,
sendo o mandado judicial um entre tantos instrumentos legais para legitimar as
ações policiais em qualquer área — e não só nas comunidades mais pobres.
Tratar instrumento judicial como demofobia, para além da
rima, pode soar uma demagogia que nos aprisiona em uma falsa polêmica.
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