Dia 4 o Supremo vai se pronunciar. Resta saber como se
comportará o sujeito oculto da oração
A situação política atual, após o julgamento em 22 de
março no STF, revelou o desdobramento lógico da disposição de mudar a decisão
do plenário sobre a prisão após decisão condenatória de segunda instância. Não
que o STF estivesse proibido de mudar seu entendimento. Mas supõe-se que o
Tribunal Supremo, quando decide uma matéria que terá repercussão geral, seja
superiormente prudente para julgar antes se ela está madura para adquirir o
poder que por sua aprovação passará a ter.
Imagina-se que, não estando suficientemente madura a
matéria no entendimento dos juízes, o tribunal terá a sabedoria de evitar
decidir ou, então, limitar-se a aprovar decisões aplicáveis exclusivamente aos
casos concretos, diante de circunstâncias muito específicas. Assegura-se com
esses cuidados que a inevitável turbação da ordem jurídica se encontra
plenamente justificada; que suas consequências são necessárias, terapêuticas,
virtuosas e que sua aplicabilidade exige repercussão geral.
O que não é aconselhável, do ponto de vista da prudência
e legitimidade dos juízes e da instituição, é substituir o novo entendimento,
recém-adotado, por outro que lhe é oposto, dentro de espaço de tempo reduzido.
Nessas situações se estimulam cogitações que deveriam ser incogitáveis;
questionam-se intenções; trazem-se para o plenário do Supremo suspeitas que não
deviam transpor seus umbrais.
Como não imaginar que a decisão de revogação do
entendimento vigente há menos de dois anos atenderia ao interesse político do
ex-presidente Lula, quando se tratava de um habeas corpus preventivo por ele
impetrado após condenação em primeira e segunda instâncias e eram de
conhecimento público as declarações dele acusando os membros do tribunal de
acovardados? Quando se referiu a uma ministra de maneira totalmente reprovável
e desrespeitosa, como se fora uma devedora de quem se cobrava o voto pela
indicação, como já o fizera com a referência igualmente reprovável ao
ex-ministro Joaquim Barbosa, durante o mensalão?
Fragilizou-se assim a segurança jurídica, bem maior que a
sociedade entrega ao Poder Judiciário para tutelar e que a previsibilidade dos
comportamentos pretende agregar ao ordenamento jurídico. Como sói acontecer em
decisões sob pressão, há erros que, uma vez cometidos, tendem a exigir outros
para corrigi-los ou justificá-los, numa sequência entrópica de desfecho
autodestrutivo para a instituição e seus titulares.
Para obviar a suspeita de que essa onerosa disposição
ganhara corpo foi necessário recorrer a uma longa discussão sobre a preliminar
de conhecimento. Quando o relator propôs uma decisão prévia sobre o
conhecimento ou não do pedido de habeas corpus, a sessão arrastou-se numa
atmosfera de absoluta serenidade, densa erudição e mútuos elogios, marchando ao
passo de um bicho-preguiça cansado para um final sem julgamento do mérito.
Em má hora o ministro relator suscitara essa questão,
supondo uma deliberação breve, como indicou seu voto sucinto e seu antecipado
reconhecimento de que seria voto vencido. O que se seguiu foram longos votos
que iam esgotando o tempo útil sem que nem ministros nem a presidente
alertassem os colegas para – quando possível – reduzirem suas exposições e
declarassem seus votos com economia de tempo. A comprovar que o tempo útil não
era uma preocupação dos ministros, o próprio intervalo da sessão arrastou-se
muito além do que a presidente anunciara.
Para corrigir, ou ao menos amenizar suspeitas quanto ao
tempo dedicado a uma preliminar quase consensual, já mais bastava explicar-se,
era agora necessário buscar a ajuda de expedientes administrativos para
justificar um provável adiamento da decisão de mérito de um habeas corpus que
“passara a perna” em vários outros que já poderiam ser julgados no plenário.
Comunicada a decisão majoritária de conhecimento do
pedido e a convocação da próxima sessão para dia 4, o advogado de defesa
solicitou um salvo-conduto para o paciente, já que o paciente não era
responsável pela postergação por 13 dias do julgamento.
A solicitação foi imediatamente concedida, sem considerar
o efeito cascata que tal exigência trará. Os habeas corpus a partir desta
decisão ou serão negados de pronto pela autoridade judicial ou concedidos
também de imediato, se por qualquer razão aquela exigência de instantaneidade
não puder ser atendida. Cuidou-se assim do periculum in mora, mas foi-se
leniente com o fumus boni juris.
Toda essa constrangedora trajetória ainda não se tinha esgotado,
pois a presidente quis ouvir os ministros sobre a continuidade da sessão.
Alguns ministros, sem hesitar, argumentaram que não seria possível, por
esgotamento físico, continuar a sessão; outros tinham compromissos assumidos
que, objetivamente, se revelaram mais importantes do que decidir a matéria
pautada – um deles até tirou do bolso e expôs comprovante de voo que devia
fazer, como se a palavra de um ministro do STF precisasse ser corroborada por
um documento.
Esse o patético resultado de uma sessão do STF
estigmatizada por um erro inicial e pelo séquito dos erros subsequentes. Não se
tratou, contudo, de um erro jurídico. Foi um erro de descuido com a regra da
prudência, aquela virtude que é chamada por Tomás de Aquino “a mãe de todas as
virtudes”.
Foi a ausência da necessária prudência que empurrou o
tribunal para a sucessão de erros. O resultado dessa histórica sessão se viu
imediatamente nas as inúmeras manifestações de decepção, frustração e revolta
que desencadeou na sociedade brasileira. Tais sentimentos abalam a confiança
dos cidadãos no órgão supremo do Judiciário e na sua capacidade de garantir a
previsibilidade na interpretação do ordenamento jurídico.
Dia 4 de abril o STF vai se pronunciar. Suas decisões
terão força de lei. Resta saber como se comportará o sujeito oculto da oração,
o novo personagem que Montesquieu não previu: a opinião pública.
*PROFESSOR DE CIÊNCIA POLÍTICA, EX-REITOR DA UFRGS, É
CRIADOR E DIRETOR DO SITE ‘POLÍTICA PARA POLÍTICA
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