Acórdão do TJ do RS

O recurso em sentido estrito. tentativaS de homicídio QUALIFICADO. pronúncia. disparos contra policiais durante perseguição. animus necandi. ausência.
Demonstrado, pelas circunstâncias do fato como narradas pelos policiais ofendidos, que os tiros foram efetuados durante perseguição e com intuito específico de evitar a prisão em flagrante, ausente mira contra os policiais, resta afastado o animus necandi e, como consequência, impositiva a desclassificação da imputação, excluída a competência do Tribunal do Júri. Parecer da Procuradoria de Justiça pelo desprovimento do recurso. Decisão mantida.
RECURSO DESPROVIDO.

Recurso em Sentido Estrito

Terceira Câmara Criminal
Nº 70080364839 (Nº CNJ: 0008392-55.2019.8.21.7000)

Comarca de Porto Alegre
MINISTERIO PUBLICO

RECORRENTE
DIONATHAN DE MORAES CAMARA

RECORRIDO

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos.
Acordam os Desembargadores integrantes da Terceira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado, à unanimidade, em negar provimento ao recurso.
Custas na forma da lei.
Participaram do julgamento, além do signatário, os eminentes Senhores Des. Diógenes Vicente Hassan Ribeiro (Presidente) e Des. Rinez da Trindade.
Porto Alegre, 23 de maio de 2019.


DES. SÉRGIO MIGUEL ACHUTTI BLATTES,
Relator.

RELATÓRIO
Des. Sérgio Miguel Achutti Blattes (RELATOR)
Adoto o relatório da decisão recorrida (fls. 181-181v):
RELATÓRIO
Dionathan de Moraes Camara, já qualificado nos autos, foi denunciado pelo Ministério Público pelo crime de:
(a) homicídio tentado contra Gelson Doralino Fraga Reis, policial militar, fato ocorrido no dia 17 de junho de 2016, por volta das 14h30min, na Rua Dois, Bairro Jardim Carvalho, nesta Capital;
(b) homicídio tentado contra Adriano Pereira dos Santos, policial militar, nas mesmas condições de tempo e lugar antes descritas;
(c) receptação do automóvel FORD/EcoSport, XLS 1.6, flex, cor prata, placas IPA 8713, no período compreendido entre os dias 05 e 17 de junho de 2016, em circunstâncias não esclarecidas.
(d) porte de arma de fogo, no dia 17 de junho de 2016, por volta das 14h30min, na Rua Dois B, n° 1557, Bairro Jardim Carvalho, Porto Alegre/RS.
O acusado foi preso em flagrante (fl. 16). O APF foi homologado e a prisão em flagrante convertida em preventiva (fl. 49).
A denúncia foi recebida em 13/07/2016 (fl. 110).
O réu foi citado (fl. 143), apresentando resposta à acusação (fls. 212/214).
Em audiência, foram inquiridas as vítimas e uma testemunha (fls. 239/244-v e 261/262) e, por fim, interrogado o réu (fls. 262/264).
Encerrada a instrução, o Ministério Público, oralmente, postulou a procedência da ação penal nesta fase e a consequente pronúncia dos réu, na forma da inicial (fls. 267/290). A defesa do réu, por sua vez, postulou a impronúncia do acusado ou, subsidiariamente, o a desclassificação do delito (fls. 270/279).
[...].

Acresço que sobreveio decisão de desclassificar a imputação contida na denúncia para outra de competência do Juízo Comum, fulcro no artigo 419 do Código de Processo Penal (fls. 181-184v).
Assegurado o direito de recorrer em liberdade.
Decisão publicada em 02.03.2018 (fl. 185).
Partes intimadas (MP à fl. 185v, réu à fl. 204).
Recurso em Sentido Estrito interposto pelo Ministério Público (fl. 186).
Em suas razões, o Ministério Público postula o provimento do recurso, ao efeito de que seja definida a competência do Tribunal do Júri para julgar o processo em epígrafe. Refere que o acervo probatório dos autos é suficiente a demonstrar a atuação do réu com animus necandi, a materialidade, a autoria dos delitos imputados e qualificadoras. Analisa a prova oral produzida. Pugna, pois, pela admissão da pretensão acusatória formulada na denúncia e a pronúncia do réu (fls. 186-189).
Apresentadas as contrarrazões (fls. 190-198).
Decisão mantida em juízo de retratação (fl. 206).
Nesta instância, a Procuradoria de Justiça exara parecer pelo conhecimento e desprovimento do recurso ministerial (fls. 208-210).
Vêm os autos conclusos para julgamento.
É o relatório.
VOTOS
Des. Sérgio Miguel Achutti Blattes (RELATOR)
Eminentes colegas:
O Ministério Público interpõe recurso em sentido estrito em face de decisão que desclassificou as imputações de tentativas de homicídio qualificado (1º e 2º fatos) imputados ao recorrido, declinando da competência, como consequência, ao juízo criminal comum.
Satisfeitos os pressupostos de admissibilidade, conheço do recurso.
Inicialmente, rememoro que, no caso concreto, a denúncia imputa ao réu a prática de tentativas de homicídio contra policiais militares, em razão de disparos efetuados durante perseguição posterior à suposta prática de receptação de veículo. Segundo consta, o acusado, juntamente com outros indivíduos não identificados, pretendendo assegurar a impunidade da receptação do veículo automotor, teriam desferido tiros contra os policiais militares, sem, contudo, acertá-lo.
A fim de introduzir o exame do mérito, destaco os fundamentos da decisão recorrida, em relação à imputação de crime doloso contra a vida, in verbis:
[...]
2. A acusação
Quanto ao primeiro e segundo fato, descreve a denúncia que, no dia 17 de junho de 2016, por volta das 14h30min, na Rua Dois, Bairro Jardim Carvalho, nesta Capital, o acusado tentou matar Gelson Doralino Fraga Reis e Adriano Pereira dos Santos, todos policiais militares, sem contudo atingi-los.
Narra a denúncia que o referido delito foi praticado com emprego de meio que resultou perigo comum, já que desferiu disparos em via pública, em área habitada, com circulação de veículos e pedestres, podendo atingir as outras pessoas que lá se encontravam. Ademais, o crime teria sido praticado para assegurar a impunidade e vantagem do crime patrimonial envolvendo a camioneta Ford/EcoSport, SLS 1.6, FLEX, cor prata, placas IPA 8713. Por fim, o crime teria sido cometido contra agentes da Polícia Militar, no exercício da função e em decorrência dela.
Quanto ao terceiro fato, consta na denúncia que, no período compreendido entre os dias 05 e 17 de junho de 2016, em circunstâncias não esclarecidas, o acusado recebeu, de pessoa não identificada, em proveito próprio e alheio, o automóvel  Ford/EcoSport, SLS 1.6, FLEX, cor prata, placas IPA 8713, coisa que sabia ser produto de crime.
Por fim, com relação ao quarto fato, narra a exordial que,  no dia 17 de junho de 2016, por volta das 14h30min, na Rua Dois B, n° 1557, Bairro Jardim Carvalho, Porto Alegre/RS, o acusado portava uma pistola, calibre 9mm, sem marca aparente, bem como 23 cartuchos intactos do mesmo calibre, de uso permitido, sem autorização e em desacordo com determinação legal ou regulamentar.

3. Sumário da prova oral colhida
O réu, em seu interrogatório, negou que tenha efetuado disparos contra os policiais ou mesmo que estivesse armado. Disse que estava indo à casa da sua irmã quando os policiais entraram no pátio onde se encontrava, já atirando contra ele, atingindo-o no rosto e no peito (fls. 262/264).
O policial Gelson Doralino Fraga Reis (fls. 239/241-v), por sua vez, narrou que o réu efetuou disparos de arma, de modo que o depoente atirou nele também, conforme relato que segue: “a gente tava em patrulhamento né, na região próxima ao Souza Costa, Ipê, ali eles estavam em guerra ali, no auge da guerra do tráfico ali, entre duas facções criminosas. Quando um senhor nos informou que havia passado por um veículo, uma Ecosport e que nessa Ecosport prata havia indivíduos com armamento pesado, de posse dessas informações a gente informou via rádio as outras patrulhas pra aproximarem e deslocamos até o local para averiguar, né, no local, nesse beco Souza Costa aí a gente se deparou com esses indivíduos embarcando nessa Ecosport, de pronto eles já nos viram e já efetuaram disparos de arma de fogo na nossa direção, a gente se abrigou, dois desses indivíduos fugiram em sentido ao mato que tinha na parte de cima, e o terceiro indivíduo que está aqui ao lado desembarcou sentido a uns pátios visto ele estar mancando, ele mancava, eu consegui correr, aproximei dele, ele entrou nesse pátio, quando eu entrei atrás com o sargento logo mais atrás também ele me efetuou um disparo na minha direção, com a intenção de me proteger e proteger a guarnição efetuei dois disparos, um acertou o peito dele e o outro o rosto, ele caiu com uma pistola 9 milímetros, foi socorrido pelas guarnições que vinham mais atrás como tinham mais facilidade de acesso a viatura que vinha atrás o socorreu, continuamos nas buscas, não conseguimos prender os outros indivíduos, somente ele, foi apreendida a arma, municiada, e o carro também se encontrava na condição de clonado”.
Aproximadamente no mesmo sentido foram as declarações do PM Adriano Pereira dos Santos (fls. 242/244-v) “nós estava em patrulhamento motorizado e recebemos a informação de um caminhãozinho aqueles de gás, nos informado que no beco Souza Costa haveria um veículo e uns indivíduos no interior, estavam armados, eu como a minha função era comandante da equipe já informei na rede que íamos deslocar e pedi apoio, chegamos primeiro lá, quando chegamos no beco tinha um carro parado, uma Ecosport, e 3 indivíduos saíram dele correndo, só que efetuaram uns dois, três disparos contra a gente, nos protegemos e seguimos atrás deles, dois foram em direção ao meio do mato, e esse aqui entrou num terreno, no portão, o meu colega entrou atrás dele, que ele estava mancando, não conseguia caminhar, e os outros foram correndo embora, eu entrei logo atrás do meu colega, foi quando esse aqui fez os disparos contra o Soldado Reis, o Reis só cessou a agressão dele, posterior chegou outra equipe que fez, prestou assistência e levou para o hospital ele, e nós seguimos na averiguação pra pegar os outros dois mais não conseguimos”.

4. Análise acerca dos delitos contra a vida
O caso dos autos trata de uma situação tipicamente controversa: uma ação policial com troca de disparos, na qual uma pessoa foi atingida por disparo de arma de fogo. Aqui, o réu Dionathan foi atingido com dois disparos, um na região do peito e o outro na região do rosto, conforme atesta o auto de exame de lesão corporal (fl. 131).
Os policiais militares relatam, em suma, que um deles disparou contra o réu porque este atirou primeiro, em sua direção, embora nenhum dos policiais envolvidos na ação tenha sido atingido.
Em casos desta natureza, invariavelmente se pode trabalhar, de início, com duas hipóteses: a primeira é a de que a versão trazida pelos policiais espelha o que aconteceu; a segunda, porém, é a de que tal narrativa apenas procura justificar a ação violenta e talvez excessiva dos agentes públicos. Neste país e nestes dias que correm, não é razoável excluir esta última hipótese de plano.
Isso não implica que ao Juiz-Presidente do Tribunal do Júri, nesta fase do procedimento, caiba apenas pronunciar o acusado, fundado na existência de “dúvida”, a se resolver “em favor da sociedade”. À acusação compete o ônus de demonstrar, com indícios minimamente seguros, a viabilidade de sua própria hipótese, para justificar o julgamento pelo Tribunal popular.
Como costuma ocorrer nestas situações, não existe qualquer vestígio material dos disparos que o denunciado supostamente efetuou contra os policiais militares. Os disparos não os atingiram, e não se procurou verificar se atingiram alguma outra coisa. Não há nos autos, por exemplo, um levantamento do local do crime que pudesse registrar dados como este.
Registro, ainda, que uma arma de fogo foi apreendida, além de munições, supostamente na posse do acusado. Ele nega que a arma e as munições sejam suas. Nestes termos, este Juízo tem por incompreensível a não realização de uma perícia datiloscópica na pistola, que poderia trazer prova importante da veracidade da versão dos policiais, ou seja, de que o preso utilizou a arma. O exame residuográfico, por sua vez, restou prejudicado, tendo em vista que a tentativa de coleta de resíduos nas mãos do acusado foi feita aproximadamente cinco horas após o cometimento dos supostos fatos, não obstante o réu tenha sido preso em flagrante e, por isso, estivesse ao alcance da autoridade desde o momento dos fatos.
De todo modo, mesmo que o réu tivesse efetuado disparos de arma de fogo, como dizem os policiais, não se pode presumir que fossem com intenção de matá-los. É elucidativo que, ao descreverem a direção em que os supostos disparos dos réus foram efetuados, os PMs usam expressões genéricas do tipo “contra nós”, e “contra a guarnição”. São generalidades empregadas quando não se tem base concreta para imputar a autoria de algum disparo especificamente contra alguma das vítimas. A denúncia, igualmente, não especifica ou distingue a ação praticada contra cada uma das vítimas, englobando a suposta pluralidade de crimes contra a vida em uma única descrição genérica.
Não se pode presumir que quando alguém efetua um disparo de arma de fogo em fuga de policiais, está atirando para matar os agentes. Ao contrário, se alguma presunção se vai tirar, terá de ser a contrária, ou seja, de que os disparos são efetuados apenas para provocar distração e facilitar a fuga. As consequências da morte de um policial fazem com que dificilmente alguém julgue que vale a pena a tentativa.
A hipótese acusatória é tanto mais descabida porquanto, segundo o MP, a intenção do réu com a tentativa do duplo homicídio dos policiais seria a de se isentar de uma imputação envolvendo um crime patrimonial (receptação), delito de gravidade incomparavelmente menos grave e que, de ordinário, permite o cumprimento de pena em regime inicial aberto e até mesmo a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos.
Para evitar mal-entendidos, é preciso deixar expresso que não se está a dizer que é impossível a ocorrência de uma tentativa de homicídio branca contra policiais em perseguição. Este Juízo já pronunciou, mais de uma vez, réus por tentativas incruentas contra policiais durante fugas (por exemplo, processo 001/2.09.0083223-2). O que se rejeita é apenas a conclusão automática de que se houve disparos na fuga, há tentativa branca de homicídio. Exige-se, para ser aceita esta tipificação, alguma demonstração de que os disparos eram direcionados aos policiais perseguidores. Na ausência disso, o fato só pode ser enquadrável no art. 329 do Código Penal (resistência) ou do art. 15 da Lei n.º 10.826/03 (disparo de arma de fogo), a depender do caso. De qualquer maneira, uma tipificação alheia à competência do Tribunal do Júri.
[...].

Como visto, o acervo probatório está composto pelos depoimentos dos policiais militares responsáveis pelo flagrante, enquanto o réu, em seu interrogatório, negou a prática dos delitos denunciados.
Os policiais explicaram que o motivo da abordagem ocorreu em razão de notícia informal prestada por um senhor, no sentido de que alguns indivíduos estavam trafegando em um veículo automotor Ecosport com armamento pesado e, durante a perseguição, o réu, juntamente com outros indivíduos que empreenderam fuga do local, efetuaram disparos de arma de fogo contra a guarnição. Durante a perseguição, o réu teria empreendido fuga para o interior de um pátio, quando, durante a aproximação do policial, efetuou um disparo de arma de fogo contra ele, sendo, então, revidado os disparos pelo agente de segurança pública.
Pois bem.
Consoante prova oral, observo que o acusado foi preso durante a perseguição, logo após os supostos disparos de arma de fogo. É verdade que a prisão ocorreu depois de o réu ter empreendido fuga para o interior de um pátio, mas ocorreu ainda em meio à perseguição.
Como apontado na decisão recorrida, embora tenha havido a apreensão de uma de fogo, cujo porte o réu negou em seu interrogatório, não há o aporte de perícia datiloscópica no instrumento bélico, enquanto o exame residuográfico restou prejudicado, na medida em que a tentativa de coleta de eventuais resíduos das mãos do réu ocorreu aproximadamente cinco horas após o cometimento dos supostos fatos.
De mais a mais, os depoimentos dos policiais ouvidos em juízo não esclarecem, de modo suficientemente claro, a dinâmica dos supostos disparos de arma de fogo, não se podendo presumir que, naquela ocasião, pretendia, de fato, praticar os crimes denunciados.
Enfim, no cenário posto, como delineado pela prova dos autos, tem-se, aqui, dúvida concreta, substancial, que fragiliza sobremaneira a verossimilhança da hipótese acusatória.
Com efeito, quando presentes elementos probatórios convergentes no sentido de que o intuito dos disparos efetuados durante a perseguição era evitar a aproximação, resistir à prisão, o que é comum em circunstâncias como a dos autos, não se sustenta o dolo de matar. Ao menos não o dolo direto, e o dolo indireto não está aventado na acusação.
A propósito, registro que em casos semelhantes esta Câmara Criminal tem desclassificado a imputação dolosa contra a vida para outra de competência do juízo singular, reconhecendo a ausência de animus necandi a justificar a submissão do réu a julgamento pelo Tribunal do Júri. Colaciono precedentes:
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. JÚRI. TROCA DE TIROS COM POLICIAIS. RESISTÊNCIA. DESCLASSIFICAÇÃO. POSSIBILIDADE. A desclassificação, no âmbito do procedimento do júri, é medida excepcional, resguardada às hipóteses em que o juiz togado não se convencer da existência do fato. Como regra, é questão a ser decidida ao final do judicium accusationis. No entanto, tenho que quando evidenciada, já no momento do recebimento da denúncia, essa ausência de animus necandi, como no caso concreto, é possível a antecipação desse juízo, com a declinação de competência, assim como procedeu o juízo a quo. Em tais hipóteses se está diante de absoluta ausência de justa causa para a persecução penal referente à imputação por homicídio tentado. Embora o fato narrado aparentemente constitua crime, inequívoco é que os elementos indiciários do inquérito não sustentam a pretensão acusatória como formulada na denúncia. Notadamente quando os indícios colhidos no inquérito se limitam à palavra dos policiais envolvidos, a sinalizar que a prova a ser produzida no curso da instrução se limitará a repisar o apurado na investigação. No caso, nenhum dos policiais foi atingido e tampouco a viatura policial o foi. Ausência, inclusive, de quaisquer referências dos policiais a que os suspeitos tenham efetuado disparos com intuito de matá-los. Ao contrário, inclusive os ditos dos milicianos apontam no sentido de que o intuito dos suspeitos era resistir à abordagem. RECURSO DESPROVIDO. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70058596958, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Sérgio Miguel Achutti Blattes, Julgado em 10/12/2015)

Não desconheço que, no âmbito do procedimento do Tribunal do Júri, a competência outorgada pela Constituição Federal ao Conselho de Sentença impõe uma restrição à cognição do juiz togado, a qual, observado o estabelecido pelo artigo 413 do Código de Processo Penal, está limitada ao convencimento da materialidade do fato e à verificação da existência de indícios suficientes de autoria ou participação.
Tanto, porém, não significa que a simples existência de duas versões probatórias antagônicas imponha, automaticamente, o juízo de admissibilidade da acusação.
Ao contrário, dispõe o artigo 419 do Código de Processo Penal que o juiz, quando convencido da ocorrência de crime não doloso contra a vida, encaminhará os autos ao juízo competente, desclassificando a imputação.
Assim, este dispositivo, interpretado conjuntamente com o artigo 413 do Código de Processo Penal, indica que ao magistrado, no final da primeira fase do procedimento do júri, compete um exame de cognição horizontal também acerca do animus necandi, impondo-se a pronúncia apenas quando presentes elementos indicativos suficientes da intenção de matar. Ausentes esses elementos, ou insuficientes os indícios, é caso de desclassificação, com a remessa dos autos ao juízo singular competente.
Neste sentido, destaco outro precedente deste Colegiado, em que reconhecida a ausência de animus necandi em hipóteses de tiros desferidos em meio à perseguição policial.
RECURSO EM SENTIDO ESTRITO. TRIBUNAL DO JÚRI. TENTATIVAS DE HOMICÍDIO E CRIMES CONEXOS. DESCLASSIFICAÇÃO. IRRESIGNAÇÃO MINISTERIAL. Desclassificação nos termos do art. 419 do CPP. A ideia de uma tripla tentativa de homicídio é insustentável. Na verdade, ao que se colhe da prova, o(s) anunciado(s) disparo(s) efetuado(s) pelos réus tinha(m) por escopo, tão só, inibir a perseguição policial que contra ele se inaugurava e não alvejar os policiais, sendo que nenhum dos policiais foi atingido por disparo algum. Desclassificação da conduta imputada aos réus (1º, 2º e 3º fatos) para outra diversa que da competência do Tribunal do Júri, remetendo-se junto os delitos conexos (4º, 5º, 6º, 7º e 8º fatos). Recurso ministerial improvido. (Recurso em Sentido Estrito Nº 70058673880, Terceira Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Osnilda Pisa, Julgado em 16/07/2015)

No caso concreto, repiso, segundo indica o contexto probatório, os tiros foram supostamente efetuados durante perseguição, em meio à fuga. Não há elementos a evidenciar que o réu teria feito mira, direcionando os disparos contra os policiais militares, mas sim efetuaram os disparos como forma de evitar ou dificultar a aproximação.
Assim, como se verifica, a prova judicializada não demonstrou, de forma minimamente segura, a própria existência de fato apto a julgamento pelo Tribunal do Júri, imperando sua desclassificação de delito doloso contra a vida para o crime remanescente e deslocando a competência de julgamento para o juízo comum, inclusive, para os delitos conexos.
Destaco, ainda, que o próprio parecer da Procuradoria de Justiça opina pelo desprovimento do recurso interposto pela acusação.
Voto, pois, por negar provimento ao recurso.



Des. Rinez da Trindade - De acordo com o(a) Relator(a).
Des. Diógenes Vicente Hassan Ribeiro (PRESIDENTE) - De acordo com o(a) Relator(a).

DES. DIÓGENES VICENTE HASSAN RIBEIRO - Presidente - Recurso em Sentido Estrito nº 70080364839, Comarca de Porto Alegre: "À UNANIMIDADE, NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO."


Julgador(a) de 1º Grau: MAURICIO RA

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