Artigo, Ruy Gessinger - A noite dos horrores

- O autor tem blog e é desembargador aposentado do RS.

Está acontecendo algo muito errado. Vão se esvaindo, a cada ano, noções de bom comportamento. Penso que talvez seja nossa índole que está no nosso DNA moral. Tenho casa na praia, em Xangri-lá, a uma quadra do mar. Quando começou a pandemia decidi me mudar para essa casa, que de resto tem todo conforto e excelentes vizinhos que também decidiram ficar no litoral, enquanto a coisa não se normaliza. Nos supermercados e na rua todos comportados, guardando distância, usando máscara, obedecendo às normas de trânsito, geralmente todos acostumados com as rótulas e seus consequentes cuidados. Pois bastou chegar o Natal e tudo começou a se deteriorar. Hordas andando pelas ruas sem máscaras, sons a todo volume, tanto nos carros como em aparelhos na praia. Quando a pandemia se estabeleceu as praias estavam quase desertas. A polícia militar, no entanto, ficava abordando os transeuntes, retirando-os da orla. Autoridades fecharam os clubes de tênis, proibiram mil coisas. Nós, como ovelhinhas dóceis no rebanho, nos curvamos em prol da vida. O Natal perdeu completamente seu sentido. Agora ele ficou com a missão de reunir amigos ruidosos, com muita bebida alcoólica, gritaria, automóveis andando em velocidade pela orla. E aí ninguém mais daqueles que no inverno obstavam as simples caminhadas, agora não estão vendo nada. Interpelei um dos policiais e lhe perguntei se não estava vendo o que acontecia. Deu de ombros. Mas tudo ainda era um prólogo do pior que estava por vir. No dia 30 de dezembro já não se podia mais dirigir, tamanha a quantidade de pessoas embriagadas e, por isso, perigosas. Nos supermercados uma grande aglomeração. Por sorte nós nos tínhamos prevenido com os víveres. O pior, no entanto, aconteceu dia 31. Aí o boi se foi com a corda. A civilidade foi à breca. A orla tomada de gente, pouquíssimos com máscara, garrafas atiradas no chão. Mas haveria o pior. No começo da tarde começaram os foguetes. Nós temos duas cadelas que se desesperaram. Fizemos o que deu para as acalmar. Para evitar que se ferissem, dado seu medo, ficamos sempre perto delas, dentro de casa. O foguetório com mil decibéis foi até a noite do dia primeiro do ano. As drogas estão sendo consumidas sem pudor ao lado das guaritas. O xixi é realizado a céu aberto, na frente de crianças. A humanidade custou milhares de anos, estabelecendo preceitos, para que todos convivessem em harmonia. Os transgressores nos chavearam dentro de casa. Chegou finalmente a segunda-feira. Sumiram-se os vândalos. A praia é de novo nossa. Mas sábado e domingo voltaremos ao cárcere.

Quinta-feira, 7 de janeiro de 2021.



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