Persistente agenda do passado

A agenda sobre o futuro – inovação, tecnologia, processos disrruptivos… são temas e debates que nos fascinam. No entanto, há pendências que herdamos do passado e que se insinuam no presente sobre as quais, sem o devido enfrentamento, não haverá um Futuro com letra maiúscula.


Há alguns meses assisti a uma educativa palestra do consultor voluntário Paulo Uebel, em Seminário Interno da PMPA, em que nos apresentou as 10 melhores cidades do mundo para se viver, segundo os seguintes critérios: estabilidade, saúde, cultura e meio ambiente, educação e infraestrutura. São elas, por ordem: Auckland (Nova Zelândia), Osaka (Japão), Adelaide (Austrália), Wellington (Nova Zelândia), Tóquio (Japão), Perth (Austrália), Zurique e Genebra (Suiça), Melbourne e Brisbane (Austrália). São cidades localizadas em países cuja economia logrou incluir a todos. Nelas não existe pobreza e a miséria é uma imagem que só conhecem nas telas do cinema, da TV, do computador ou celular.


Nosso país enfrentou e resolveu a agenda da proteção à infância. Está enfrentando com galhardia a equidade competitiva dos povos de matriz negra. O mesmo faz a nação para elevar o padrão de proteção à mulher vitima de violência. Aprendemos a dominar a inflação, a melhorar os indicadores da educação, depois de ter universalizado o acesso. O Brasil garante atendimento universal à saúde, com equidade e integralidade. Já estabeleceu grandes avanços na agenda da proteção ambiental e nas agendas LGBT e da acessibilidade, entre tantos.


Destarte tudo isso, os temas da saúde mental e da população em situação de rua permanecem ladeados, como se as agendas de preparação do futuro equacionarão, magicamente, o que está represado. Isso não é verdade, notadamente no enfrentamento à situação de rua de vários contingentes de população adulta.


Nesse artigo vou tratar especificamente desse contingente das pessoas que fazem das ruas o seu Domicílio. Importa sublinhar que, no sistema de proteção, diferenciamos tecnicamente as pessoas que fazem das ruas a sua estratégia social de sobrevivência, porém, retornam para um domicílio à noite, como é o caso de milhares de flanelinhas, pedintes, catadores, prestadores de pequenos serviços e eventuais atividades com grau de ilicitude, mas tem um endereço onde se referenciam.


Os chamados moradores de rua, que nelas se domiciliam, ao senso comum, parecem um contingente uniforme, de pessoas pobres e sem recursos alternativos de sobrevivência. No entanto, cada uma dessas pessoas possui uma história complexa e todos se diferenciam entre si, basta aproximar o olhar, basta estabelecer contato continuado.


São muitas as diferentes determinantes da situação de rua. A fim de sermos objetivos podemos aqui reunir, pelo menos, nos seguintes perfis: 1. pessoas com histórico de desordens na vida pessoal, familiar ou comunitária; 2. pessoas recentemente desempregadas e que evadiram de um lar por diversas razões; 3. pessoas com sofrimento psíquico e transtorno metal; 4. egressos do sistema prisional; 5. aqueles que aprofundaram o uso abusivo de substancias psicoativas.


Muitas vezes esses diferentes perfis se dão de forma cruzada e em todos eles a pobreza é condição necessária, embora não suficiente. Logo, o pressuposto marxiano está completo nesse fenômeno sociológico: a economia é o elemento disparador da circunstância; a condição de classe é determinante. Por decorrência, em conjunturas de crescimento econômico e expansão do emprego, há um bom ambiente para trabalhar o retorno à família, à comunidade de origem e a renda, reduzindo novos ingressos nas ruas. O contrário é avassalador: em conjunturas de crise econômica e desemprego, novos contingentes são lançados às ruas pela soma de intercorrências associadas às quais identificamos genericamente como situações de desordens na vida, nos valendo do conceito da antropologia social brasileira.


Ou seja, é necessário que novas situações de desordens se repitam ao longo da trajetória – pessoal, familiar, de trabalho, convívio social, ausência de oportunidades e de políticas de proteção e que produzam ruptura crescente dos vínculos, levando as ruas como último destino. É importante referir que muitos outros são colocados perante desordens semelhantes; são abalados pela mesma complexidade da vida, porém não acolhem nem assumem uma posição de reprodução do risco. A maioria das pessoas muito pobres manifesta resiliência e constroem soluções simples que as protejam da desproteção total.


Narrativas de vida diversas, ainda assim, é possível acenar com resgate a partir de um conjunto definido de politicas de proteção e acesso a benefícios, mesmo que num cardápio limitado de ofertas. Se bem ministrados, com metodologia e conhecimento, são ofertas e políticas capazes de gerar mudanças na vida das pessoas, basta que se atendam algumas prerrogativas.


O morador de rua levou uma vida para chegar a essa circunstância. Reverter o quadro de desordens e omissões que o cercaram também requer tempo. Aquilo que a assistência social identifica como o tempo para operar a transição da vulnerabilidade e abandono para o ingresso em alguma política de proteção. Aqui reside o maior desafio na política de garantia de direitos: para além de abordar e fazer oferta de benefícios é necessário que o alvo da ação estabeleça vínculo continuado com a política de travessia e proteção. Eles necessitam “ver” a utilidade e funcionalidade dessa nova relação em suas vidas; uma mudança no olhar. E isso é muito difícil; leva-nos a muitos recomeços. Restaurar e construir vínculos para quem teve reiterados motivos para abandoná-los é um dos desafios humanos mais complexos.


Perante um grande rio caudaloso, com correnteza, que se precisa uma travessia sobre ele, a engenharia resolve o desafio, pois domina as respostas técnicas para driblar a natureza. A assistência social e a assistência em saúde dependem do comportamento e aceitação do outro. O outro é uma natureza que tem liberdade e autonomia na decisão. São competências técnicas também complexas como a construção de uma ponte ou de um software. Isso não se resolve com filantropia, nem com piedade. São capacidades e competências que precisam concorrer para realmente gerar mudança na vida das pessoas.


Vamos ao roteiro que conhecemos: 1. Abordar personalizadamente, conhecer e construir confiança; 2. Fazer oferta de acolhimento, acompanhada de um plano de restauração de vínculos construído em conjunto; 3. Monitorar cada caso de forma continuada, com compromissos recíprocos; 4. Assegurar politicas públicas transversais e longevas, sem interrupções; 5. Comprometer a cidade, como num pacto de proteção em que todos participam; 6. Trabalhar com eles em binômio integrado de assistência social e assistência a saúde; 7. Na sequência, completar a transição com politicas de educação, trabalho e renda, cultura, esporte e habitação.


É difícil? Sim, muito! Trata-se de exigências a serem asseguradas que o Estado e mesmo a Sociedade tem dificuldades em prover. Porém é exequível se há vontade política e a cidade quer. As sociedades cívicas são prósperas e se tornaram prósperas por serem cívicas e não o contrário, ensina Robert Putnam. Se fizermos um pacto da cidade pela resolução da situação de domicílio nas ruas de nossos concidadãos, renovaremos a imagem de que Porto Alegre é uma cidade cívica como cremos e como reza nossa tradição de politização. Não há país desenvolvido onde uma parte de seu povo não acessa Direitos Sociais Básicos, pois vive ao relento e sem proteção, com sarna na pele, piolho na cabeça e lombriga na barriga; sem teto, inseguro, mal alimentado, sem higiene pessoal nem garantia de intimidade.


Em Porto Alegre identificamos 2.563 pessoas em situação de rua moradia entre janeiro e setembro de 2021. Elas estão cadastradas pelo sistema de abordagem da FASC formado por nove entidades parceiras, 12 equipes territoriais e 135 trabalhadores especializados, além das equipes de Saúde atualmente em expansão. Em outubro pp. tínhamos 1.320 pessoas adultas abrigadas em algum tipo de acolhimento público ou conveniado com a assistência social do município. A maioria desse contingente é de moradores de rua, embora não só. Estima-se que ainda persistem nas ruas mais de mil pessoas, notadamente os casos mais resistentes à adesão a uma politica de proteção. No Centro Histórico e entorno temos 532 pessoas em situação de rua moradia. Grande parte desse contingente está cronificado nas ruas o que torna mil uma enormidade.


Cabe ainda destacar que existem várias entidades, igrejas, projetos de voluntariado e iniciativas individuais que também geram enfrentamento a essa forma de exclusão extrema e que logram soluções. Elas não compõem esses números acima, porém são efetivas e eficientes para encontrar soluções pontuais e não menos importantes.


Nossa capital saiu na frente no equacionamento à situação de meninos e meninas em situação de rua. Construiu soluções importantes para o caso dos trabalhadores com carroças e ainda persegue igual efetividade para incluir os empreendedores da reciclagem com carrinhos. É a cidade do Orçamento Participativo e tem uma singular oportunidade para produzir soluções onde todos veem um problema considerado complexo e insolúvel.


Poderemos não lograr uma solução total; porém, podemos ser a cidade que mais radicalmente tentou.


 


Léo Voigt

Secretário Municipal  do Desenvolvimento Social

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