Como grande parte dos cientistas sociais brasileiros e
latino-americanos, às vezes sinto uma vontade irresistível de empregar o
adjetivo “liberal” como xingamento. Nesta parte do mundo, como bem sabemos,
liberal é um feio palavrão.
Meus eventuais leitores por certo já repararam nisso. Por
mais que procurem, os intelectuais, o clero, os dirigentes partidários e os
chamados formadores de opinião não conseguem atinar com um termo mais adequado
quando querem se referir depreciativamente a um economista, empresário, partido
político ou ao próprio governo.
As entonações usadas são especialmente notáveis quando o
personagem inquinado de fato propõe ou professa algo suscetível de ser considerado
liberal. Pobre do partido político que fale em privatizar estatais
deficitárias, ineficientes ou que simplesmente não tenham uma justificativa
clara para serem mantidas no setor público. Maldito o governo que insista em
manter as contas públicas e a inflação sob controle. “É um liberal”, alguém
logo dirá. Ou, muito pior: “Não passa de um neoliberal”.
Resumindo, creio não exagerar quando digo que, entre nós,
menoscabar o liberalismo se tornou uma atitude generalizada, direi mesmo um
indicativo de qualidade intelectual: uma norma “culta”. Como isso aconteceu é
uma história um pouco longa, mas farei o possível para contá-la no restante
deste artigo.
A primeira causa – aliás, por definição – é o liberalismo
político ser a teoria da democracia representativa – tanto assim que às vezes a
designamos como democracia liberal; o oposto, portanto, do fascismo e do
comunismo. Segue-se que o adjetivo “liberal” diz respeito a uma forma política
dotada de instituições voltadas para a preservação da liberdade dos indivíduos
e a autonomia de associações dos mais variados tipos. Como ideologias, o
fascismo e o comunismo comportam exegeses imensamente complexas, mas os
sistemas políticos que se propuseram a aplicá-las na realidade histórica foram
totalitários, sempre e sem nenhuma exceção. Uma conclusão preliminar é, pois,
que algo há de estranho em nossa alma latino-americana, ou pelo menos na alma
das categorias profissionais a que me referi. Parece que odiamos viver em
liberdade e esperamos um dia viver em Estados baseados no partido único, na
polícia secreta e na censura generalizada dos meios de comunicação.
Outra causa perceptível é que o antiliberalismo
geralmente aparece em estreita associação com o antiamericanismo. Odiamos a
liberdade porque os Estados Unidos a cultivam e simbolizam. Porque tiveram a
ousadia de se desenvolver economicamente de uma forma espetacular; por terem
saltado de uma condição cultural de terceira classe para a dianteira em todos
os setores do conhecimento, fato atestado por todos os rankings das
universidades de todos os continentes. E, sobretudo, por sua visão atomística
do individuo, uma filosofia abominável, eticamente inferior ao “comunitarismo”
que nos guia e inspira, assim como inspirou ditaduras fascistas e comunistas
pelo mundo afora.
Deve ser por esses e outros horrores do liberalismo em
vários campos de atividade que nosotros tendemos a rejeitá-lo. Nossos corações
e mentes pendem para o antiliberalismo, tão bem representado no século 20 por
um Mussolini, um Stalin e até um Perón; e no passado recente, por um Hugo
Chávez, o grande inspirador da revolução bolivariana e do progresso de seu
país, a Venezuela.
Marxistas por formação ou simbiose, os antiliberais, como
disse, tomam-se de sacrossanto horror quando pressentem a proximidade de um
“neoliberal”. Esse, ao ver deles, é um indivíduo que não se contenta com manter
a moeda estável e as contas públicas em ordem, com melhorar a eficiência no
gasto público; não, eles querem mais que isso. Querem retirar do Estado suas
atividades mais nobres, desde logo as que exerce por meio de empresas públicas,
direcionando suas energias para tarefas comezinhas como a educação das crianças
e dos jovens, para tentar minorar o sofrimento dos que acorrem aos nossos
serviços públicos de saúde (cuja qualidade Lula certificou como sendo de
Primeiro Mundo), ou ainda, a segurança pública e a defesa nacional.
Como pode alguém querer um Estado que faça “só isso”? –
perguntam os petistas, os intelectuais de esquerda, alguns clérigos e,
naturalmente, aquela parte do empresariado que gosta do capitalismo, mas odeia
a concorrência.
Mas qual é, afinal, o ponto mais importante da disjuntiva
liberalismo x antiliberalismo? O problema de fundo, o verdadeiro divisor de
águas, parece-me ser o papel do Estado. O papel e, portanto, a dimensão e os
tipos de atividades que devem permanecer na esfera pública, para bem assegurar
os objetivos e a soberania nacionais. Antigamente, o que os antiliberais em
geral e os fascistas em particular não toleravam era o que chamavam de Estado
gendarme, guardião e protetor dos interesses burgueses; hoje, mais ou menos na
mesma linha, o que causa urticária nos marxistas por formação ou simbiose é a
(suposta) ideia do Estado “mínimo”. O que não deixa de ser curioso, tendo eles
sempre acreditado que, depois da revolução socialista, o Estado pouco a pouco
fenecerá, ou seja, perderá seu “caráter político”; por falta de função, ele se
tornará cada vez menos necessário.
Escusado dizer que jamais algo parecido aconteceu em
algum país socialista. Mas o ponto que importa é este: os segmentos
intelectuais a que me referi, que tão exacerbadamente combatem o
“neo”-liberalismo, na verdade, o fazem em nome de um “paleo”-liberalismo.
*Bolívar Lamounier é cientista político, sócio-diretor da
Augurium Consultoria, membro da Academia Paulista de Letras, e autor do livro
'Tribunos, Profetas e Sacerdotes: Intelectuais e Ideologias no Século 20'
(Companhia das Letras, 2014)
Nenhum comentário:
Postar um comentário