Prezada Cláudia Laitano,
Editora de Cultura de Zero Hora.
Li, na última sexta-feira, 22, a entrevista publicada por
Zero Hora, do jornalista Paulo Anunciação, sobre o Arquivo Mitrokhin.
Anunciação foi muito elucidativo, considerando o espaço relativamente econômico
que o jornal dedicou à entrevista. Ressalto que, na edição do título, foi
recortado o trecho que o jornalista enunciou na primeira frase da resposta à
última pergunta do entrevistador. O que ele disse, como consta do texto na
íntegra, é que “o documento que faz referência a Josué Guimarães não diz que ele
era espião ou agente contratado ou que recebeu dinheiro dos soviéticos. Apenas
diz que foi incluído na rede da agência (KGB) em Lisboa.” Não é
necessário ser um estudioso de espionagem para saber que alguém que foi
incluído na “rede da agência” era, no mínimo, um colaborador da KGB, o que é o
mesmo que afirmar que desempenhava algum tipo de atividade de espionagem.
Pensar diversamente é incorrer em vício de confusão. Mas, como disse, a
entrevista trata de elucidar o tema.
Para reforçar a conclusão de que Josué, digamos, no
mínimo, colaborava com a KGB, basta ler o prosseguimento da entrevista. Entre
1976 e 1980, segundo Anunciação, o escritor manteve 42 reuniões com os agentes
Novikov, Budyakin a Bykov em três cidades/países diferentes. Não é pouco e,
certamente, não se tratavam de reuniões literárias. Anunciação esclarece que
Josué, de acordo com a nota transcrita por MItrokhin, ”conhecia bem a forma de
trabalhar dos serviços secretos soviéticos, nomeadamente quanto às noções de
segurança, conspiração e meios pessoais ou impessoais de comunicação.
Convenhamos, é um bom acervo de habilidades. E o próprio jornalista português
arremata, de modo impositivo: “... a informação transmitida por Josué Guimarães
era tida em alta consideração pelos soviéticos, pois se não fosse assim não
teria tido tantas reuniões.”
Zero Hora merece um elogio pela iniciativa da entrevista,
depois de repercutir a reportagem do jornalista Vitor Vieira, do site
Videversus. Ela confirmou, entre outras coisas, que um ícone da literatura do
Rio Grande servia à KGB e a um regime criminoso. Este fato não é nada
abonatório. Ao final de suas declarações, Anunciação ainda avisa que segredos
que os brasileiros gostariam de manter enterrados para sempre estão contidos no
Arquivo Mitrokhin. Concordo inteiramente, porque há muito material
desclassificado sobre a América Latina à disposição de pesquisadores. Quem sabe
Zero Hora não se dispõe a enviar algum profissional até Cambridge para fazer
uma investigação apenas sobre os brasileiros que prestavam serviços à KGB e
qual era o alcance da rede de espionagem no Brasil? Sabemos que Josué Guimarães
foi incluído na matéria de Anunciação porque o escritor, nos anos 70, vivia e
atuava em Portugal.
A intranquilidade causada pela revelação sobre as atividades
secretas de Josué Guimarães em Portugal é compreensível e previsível, na medida
em que todos os seus amigos integram um grupo cultural orientado por posições
de esquerda. O que não pode ser mais desconsiderado é que o próprio Josué
confessou sua adesão ao comunismo ainda em 1952, quando escreveu Muralhas de
Jericó, um diário de sua viagem à URSS e
à China ocorrida naquele mesmo ano. Josué tinha, então 31 anos e trabalhava
para a Última Hora, do Rio de Janeiro. O livro era inteiramente dedicado à exaltação
das conquistas soviéticas e chinesas nos campos das relações de trabalho,
inovação industrial, educação, liberdade e cultura.
Tudo mentira. A publicação, apenas em 2001, pela
LP&M, de Muralhas, tinha o objetivo de homenagear o escritor quando ele
completaria 80 anos. Mas terminou configurando um depoimento definitivo sobre o
quanto um jovem intelectual pode prostrar-se diante de uma ideologia facínora
por razões inconfessáveis, uma vez que, em 1952, já era inteiramente conhecida
do Ocidente a barbárie stalinista e o estado de terror genocida em que vivia a
União Soviética. Stálin exterminou mais de 70 milhões de pessoas durante sua
tirania e parte dos seus crimes seria denunciada, em 1956, por Nikita Krushov,
no XX Congresso do Partido Comunista da URSS.
Mesmo assim, o editor de Josué Guimarães, Ivan Pinheiro
Machado, ele próprio oriundo do Partido Comunista Brasileiro, com passagem pela
Dissidência Leninista e, depois, pelo Partido Operário Comunista, não hesitou
em fazer a homenagem ao companheiro, com o apoio financeiro do Instituto
Estadual do Livro, administrado, à época, pelo governo marxista de Olívio
Dutra. Lembro ainda- e isto é mais assustador- que bem antes de 1952, três dos
maiores documentos denunciando o totalitarismo comunista já haviam sido
publicados e amplamente cobertos pela imprensa ocidental. Eram documentos
literários que qualquer intelectual versado em mais de uma língua tinha o dever
de conhecer: O zero e o Infinito (1940) de Arthur Koestler, Do fundo da noite
(1941) de Jan Valtin e Eu escolhi a Liberdade (1946) de Victor Kravchenko.
Seria interessante repassar estas informações para os amigos de Josué
Guimarães, entre eles aqueles que rotularam as informações publicadas por Vitor
Vieira sobre a reportagem de Anunciação como “balela” e “boatos”.
Josué Guimarães morreu sem arrepender-se de suas
atividades comunistas e sem inutilizar Muralhas de Jericó. Agora sabemos o
porquê. Seus editores da LP&M, propriedade da dinastia dos Pinheiro
Machado, uma editora assumidamente esquerdista - cujo patriarca, o falecido
Antônio Pinheiro Machado Netto, atreveu-se a escrever, em 1985, um elogio em
livro ao Muro de Berlim- também não imaginavam que viriam à tona os segredos de
Josué Guimarães arquivados em Cambridge. Agora não é possível mais tentar
erguer um véu de desdém ou de silêncio sobre o assunto, como pretenderam fazer
Luiz Fernando Veríssimo, Flávio Tavares e David Coimbra. Ao contrário, o
Arquivo Mitrokhin está lá na Inglaterra, disponível para pesquisa.
Por tudo isso, minha cara, ao cumprimentá-la pela
iniciativa da entrevista, aproveitei a oportunidade para manifestar minhas
considerações sobre o assunto que, estou certo, ainda renderá muitas
investigações sérias e , naturalmente, reportagens.
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