Aos "indignos do poder" - Eliane Cantanhêde – OESP
– 13/09/16
Com um
discurso planejadamente morno, próprio talvez de uma ex-aluna de colégio
interno, aplicada e chegada aos clássicos e à poesia, a nova presidente do
Supremo Tribunal Federal, ministra Cármen Lúcia, abriu espaço para que o decano
da Corte, ministro Celso de Mello, desse todos os recados políticos com o calor
e a contundência que o momento merece e as barbaridades havidas exigem.
Enquanto Mello falava, a ilustre palestra fazia um silêncio sepulcral. Ao lado
do também ex-presidente José Sarney (que nomeou Mello para o STF), Luiz Inácio
Lula da Silva (autor da nomeação de Cármen Lúcia) ouviu calado, quase sem se
mexer, não fosse o tique de cofiar o bigode. Na terceira poltrona, o governador
de Minas, Fernando Pimentel. Na mesa de honra, o presidente do Senado, Renan
Calheiros. Mais adiante, o ex-ministro Edison Lobão. O que não faltou na posse
da nova presidente do Supremo foi político enrolado de alguma forma com a
Justiça.
Celso de
Mello não se fez de rogado, nem de diplomata: "Os cidadãos desta República
têm o direito de exigir que o Estado seja dirigido por administradores
íntegros, por legisladores probos e por juízes incorruptíveis". E
advertiu: "Que deste tribunal parta a advertência, severa e impessoal, de
que aqueles que transgredirem tais mandamentos expor-se-ão (...) à severidade
das sanções criminais, devendo ser punidos (...) esses infiéis da causa pública
e esses indignos do poder". Os recados foram de uma coragem rara, de uma
clareza inquestionável e para alvos evidentes, bem ali, a poucos metros.
Segundo Mello, "impõe-se repelir qualquer tentativa de captura das
instituições de Estado por organizações criminosas para dominar os mecanismos
de ação governamental, em detrimento do interesse público e em favor de pretensões
inconfessáveis". Ainda mais direto, referiu-se a "uma estranha e
perigosa aliança entre determinados setores do poder público, de um lado, e
agentes empresariais, de outro, reunidos em imoral sodalício
(confraria)...".
Esse, segundo
o decano, é um "contexto de criminalidade organizada e de delinquência
governamental". E citou Ulysses Guimarães, ainda hoje um exemplo de
político, enquanto a Câmara se preparava para cassar Eduardo Cunha: "A
corrupção é o cupim da República. (...) Não roubar, não deixar roubar, pôr na
cadeia quem roube, eis o primeiro mandamento da moral pública". A
cerimônia – considerada a posse mais concorrida, no mínimo uma das mais, em 25
anos – teve ainda discurso do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, lembrando
o quanto o País precisa mudar e saudando: "Parabéns, ministra Cármen
Lúcia, o Brasil precisa mais do que nunca do seu caráter". No
encerramento, a nova presidente circundou o protocolo para começar seu discurso
saudando não o presidente Michel Temer, ali ao seu lado, ou qualquer outra das
muitas autoridades presentes, mas, sim, "Sua Excelência, o povo
brasileiro".
E é em nome
desse povo que ela tem proferido seus votos de vanguarda, a favor, por exemplo,
das biografias não autorizadas, das células-tronco embrionárias, da união homo
afetiva. Na guerra das redes sociais, não faltaram os que condenaram a presença
de Lula e o convite a Fernando Collor, mas esse foi mais um recado de ontem,
nessa nova fase do Supremo: Cármen Lúcia, mesmo nomeada por Lula, mantém-se
distante da política partidária, da polarização PT-PSDB. Pronta, portanto, para
mais um momento histórico – e inédito – do STF e da vida nacional: o da
investigação, julgamento e eventual condenação dos políticos na Lava Jato. Republicana,
ela convidou para sua posse os ex-presidentes da República e do Supremo, mas,
"amizade, amizade, negócios à parte". Ou "convite, convite,
julgamentos à parte".
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