Reportagem, Malu Gaspar, revista Piauí - A Organização.

Como Marcelo Odebrecht chegou ao comando da maior empreiteira do país – e acabou na prisão

Marcelo Bahia Odebrecht tinha uma expressão impassível quando se sentou diante de três delegados da Polícia Federal em Curitiba, em maio passado. Aquela seria a sua primeira conversa “amigável” com os responsáveis por seu caso desde que fora preso, quase um ano antes. Os agentes federais do outro lado da mesa sabiam que o mais importante empreiteiro do país negociava afinal a delação premiada, depois de passar meses dentro de uma cela que media 4 metros de largura por outros 4 de comprimento. Sabiam também – item importante do manual de códigos não escritos da Operação Lava Jato – que, mesmo quando os advogados já avisaram aos investigadores que seu cliente decidiu falar, era preciso ouvir a notícia do próprio candidato a delator.

Sentado à mesa de reuniões com uma advogada a seu lado, Marcelo usava uma camiseta azul surrada, calça de moletom cinza e tênis – espécie de uniforme que adotou na prisão. Apesar das roupas gastas sobre o corpo magro, mantinha o porte aprumado, altivo. Quieto, esperou pelas perguntas. Afinal, ele iria realmente falar o que sabia? Iria admitir ter cometido os crimes de que era acusado? Sim, Marcelo confirmou. “Mas vocês têm de ver o que é caixa dois e o que é corrupção”, disse, quase como quem dá instruções a subordinados. Os federais reagiram. “Não é você quem vai nos dizer de qual crime será acusado.”

Poucas semanas antes, os advogados da Odebrecht e os procuradores da República haviam começado a se reunir em Brasília, iniciando as negociações para a mais extensa e provavelmente a mais importante delação premiada da Lava Jato. O processo era cansativo. Executivos das empresas do grupo levavam as informações para os advogados, que submetiam o conteúdo a Marcelo, em Curitiba. Da cadeia, ele definia o que podia ou não ser dito. Só então os temas eram repassados aos procuradores.

Marcelo Odebrecht havia mantido por meses o mesmo discurso a respeito das acusações que partiam da Lava Jato. Já repetia os argumentos mesmo antes de ser preso por agentes da Polícia Federal em sua casa, um imóvel de 1200 metros quadrados no Morumbi, Zona Sul de São Paulo. O grupo empresarial que ele comandava nunca pagara propina, ele dizia, muito menos superfaturara contratos com empresas públicas. As ações da Lava Jato contra a empresa tinham por finalidade constranger e perseguir os funcionários.

Quando Marcelo foi levado para Curitiba, a Odebrecht e seus advogados intensificaram o combate que já faziam à operação liderada pelos procuradores no Paraná. Passaram a lançar mão,
publicamente e nos bastidores, de todo tipo de estratégia de que uma grande empresa é capaz no Brasil. Nada funcionou. A decisão de Marcelo Odebrecht de admitir crimes e contar pelo menos parte do que sabia podia ser tomada, portanto, como uma capitulação.

Ainda assim, o empresário fez de tudo para não parecer derrotado. Diante dos delegados, tentou explicar o impasse a que tinha chegado, referindo-se a si próprio, como de hábito, na terceira pessoa:
“A partir do momento que tudo se concentrava em Marcelo, os outros não se preocupavam tanto.
Agora que vários foram presos, eu fiquei sem saída”, disse. Em quarenta minutos de conversa, repetiu algumas vezes que a decisão de colaborar com a Justiça não havia sido dele, e sim do grupo empresarial que liderava. Estava resignado, mas, ainda assim, contrariado. Sacrifício maior do que ficar preso, ele dava a entender, era ter de entregar todo o esquema. Naquele momento, porém, embora tentassem tirar dele uma história qualquer, uma ocorrência que fosse, das muitas que pretendia revelar em sua confissão, ele manteve o mistério. “Vocês vão ver nos anexos de Marcelo”, comunicou, enigmático, referindo-se aos capítulos da delação.

Parecia extravagância e até soberba aquele tipo de comportamento, mas um dos interlocutores do empreiteiro naquele dia resumiu assim sua impressão sobre o encontro: “Ele foi jogador.” Uma coisa, porém, o “príncipe dos empreiteiros” – como era conhecido pelos colegas e passou a ser tratado pela imprensa no auge do sucesso – admitiu: a última barricada de sua defesa havia caído semanas antes daquela reunião, quando a Lava Jato descobriu o setor de “operações estruturadas” da Odebrecht. Para todos os efeitos, tal setor seria responsável pela engenharia financeira de projetos do grupo no exterior. Na prática, dedicava-se exclusivamente à contabilidade paralela da
empresa e alimentava um sofisticado esquema de pagamento de propinas, responsável por movimentar quase 3 bilhões de dólares ao longo de oito anos.

O “departamento de propinas”, como a Lava Jato o batizara, tinha apenas sete funcionários – três trabalhavam numa sala do prédio da empreiteira em Salvador, outros quatro em São Paulo. A esse pessoal cabia processar os pedidos dos outros departamentos e subsidiárias. Se precisava corromper alguém, um executivo da empresa devia seguir sempre o mesmo procedimento. O primeiro passo era encaminhar o pedido ao chefe do departamento de operações estruturadas, Hilberto Silva. Ele respondia diretamente a Marcelo Odebrecht e tinha os mesmos salários e benefícios de outros respondia diretamente a Marcelo Odebrecht e tinha os mesmos salários e benefícios de outros executivos de seu calibre – cerca de 50 mil reais mensais, além de bônus anuais por desempenho que podiam alcançar 800 mil reais.

Para processar o pedido de propina, os funcionários do setor usavam um sistema de mensagens à parte, sem ligação com qualquer outra rede interna e com servidor sediado na Suíça. Era por esse sistema que se pediam os pagamentos, ordenavam-se os depósitos, emitiam-se os comprovantes e recibos e compartilhavam-se planilhas com registro de tudo o que saía. Os beneficiários do dinheiro eram identificados apenas por codinomes. Os nomes verdadeiros nem mesmo os funcionários do setor conheciam.

Esse sofisticado setor de propinas continuou a funcionar mesmo após o início da Lava Jato, em março de 2014, e só foi definitivamente desativado semanas depois da prisão de Marcelo Odebrecht. Compará-lo aos esquemas de pagamento de propina das outras empreiteiras seria como colocar uma Ferrari ao lado de uma carroça.
Nas demais empresas, pelo que se depreende da maioria dos casos revelados pela Lava Jato, a propina era geralmente disfarçada por um contrato falso de consultoria. Os pagamentos eram feitos diretamente na conta de empresas de fachada indicadas pelos políticos, no Brasil e no exterior.
Descoberto o dono da empresa ou o titular da conta, o crime estava desvendado.
No caso da Odebrecht, seguir o caminho do dinheiro era bem mais complicado. Primeiro porque os recursos nunca saíam do Brasil com destino a bancos no exterior. Sua origem era sempre alguma conta de subsidiária da Odebrecht já fora do país – de preferência na Venezuela, conforme se descobriu depois. Uma vez determinado o pagamento, o dinheiro percorria pelo menos quatro diferentes contas de empresas sediadas em paraísos fiscais. As remessas entre um banco e outro eram feitas sem que a Odebrecht precisasse se envolver no processo, por um ex-funcionário que havia se tornado dono de uma corretora de valores – e que em 2010, junto com outros ex-colegas compraria um banco em Antígua, no Caribe, só para movimentar a dinheirama.
Completando esse caminho tortuoso, depois da quarta camada de offshores, a propina que não era depositada lá mesmo, no exterior, podia ser enviada a uma rede de doleiros no Brasil, transformada em dinheiro vivo e entregue pessoalmente a quem de direito, sem deixar vestígios.

“Se tivéssemos que rastrear esse dinheiro, quebrando o sigilo de cada depósito em cada etapa, muito provavelmente passaríamos anos tentando montar o quebra-cabeça, sem chegar a lugar algum”, reconheceu o procurador Orlando Martello Júnior, responsável por essa investigação específica na
Lava Jato.
O que mudou o rumo da história foi a delação premiada da secretária Maria Lúcia Tavares, 63 anos de idade e quase quarenta de Odebrecht, presa no final de fevereiro de 2016. Seu nome foi descoberto por acaso, quando a Polícia Federal estava prestes a realizar uma operação para prender o marqueteiro do PT, João Santana, e sua mulher, Monica Moura. Os dois haviam recebido dinheiro da Odebrecht em uma conta no Panamá.

Como parte dessa investigação, a PF havia quebrado o sigilo de vários e-mails de pessoas ligadas à empreiteira, e encontrara em alguns deles, anexados às mensagens, arquivos com planilhas do
sistema secreto de pagamentos. No registro de criação de uma dessas planilhas aparecia o nome de Maria Lúcia Tavares. O delegado Filipe Pace, que conduzia a investigação, não tinha ideia de quem se tratava. Por precaução, decidiu incluí-la de última hora num complemento de pedido de busca e apreensão já enviado ao juiz Sergio Moro.

Pace não imaginava que a casa da tal funcionária abrigasse material radioativo para a Odebrecht: uma pasta cheia de planilhas e uma agenda com registros de pagamentos, nomes, codinomes e cartões de visita. Em conjunto, forneciam rara perspectiva de como funcionava o até então desconhecido setor de propinas. Em tese, não deveriam estar ali, mas a secretária não havia tido a chance de devolvê-los ao escritório. Em junho de 2015, ela havia levado todo o material para Miami, onde fora prestar contas ao chefe, Luiz Eduardo Soares, transferido para os Estados Unidos pela Odebrecht logo depois que a Lava Jato começou. Quando Tavares voltou ao Brasil, Marcelo Odebrecht já havia sido preso, e ela manteve a pasta e a agenda consigo.

Na casa da secretária, na Bahia, à medida que recolhiam a papelada, os agentes enviavam por WhatsApp fotos do que encontravam para os colegas de Curitiba – os policiais no Sul, por sua vez, comemoravam o resultado como gol do Brasil em Copa do Mundo. Tavares estava encurralada.

Antes mesmo de entrar no camburão para ser levada para a sede da Lava Jato, começou a dar sinais de que não aguentaria a pressão. Nervosa, repetia o tempo todo que sabia ter errado.

No primeiro depoimento, porém – no final de fevereiro deste ano, dias depois de ser presa –, Maria Lúcia Tavares não disse nada. Apresentou-se acompanhada por três advogados da Odebrecht. De volta à cela, novamente sozinha, pediu que chamassem a delegada que acabara de ouvi-la, Renata Rodrigues. Disse à delegada que tinha a intenção de falar, mas os advogados da empreiteira não teriam deixado. Rodrigues avisou que ela precisaria destituí-los. A possível testemunha alegava ter medo. No dia seguinte, quando novo interrogatório começou, Tavares reclamou que estava se sentindo pressionada, desatou a chorar e mandou os advogados embora. Foi então que começou a contar o que sabia.

A secretária explicou em detalhes como tudo funcionava. Falou do sistema que haviam montado na Suíça, deu os nomes dos doleiros que os atendiam e disse ter ouvido Fernando Migliaccio, o chefe do seu chefe, mencionar que alguns pagamentos eram feitos por ordem de Marcelo Odebrecht.

Contou também que ao longo de 2015 a empreiteira sugeriu a ela e aos outros funcionários do departamento da propina que pedissem transferência para o exterior, numa evidente tentativa de mantê-los fora do alcance da PF. Os chefes foram, mas ela e uma outra secretária não quiseram mudar de país.
Tavares, porém, não foi capaz de decifrar os codinomes nas planilhas. Com exceção de Monica Moura e de João Santana, que apareciam como “Feira”, ela não tinha ideia de quem eram os donos dos demais apelidos.

Ocorre que, durante a mesma operação em que a secretária fora presa, os policiais também haviam encontrado, a 1 600 quilômetros de sua casa, um lote de papéis que ajudava a esclarecer parte do quebra-cabeça. Os documentos tinham sido apreendidos num escritório mantido no Centro do Rio de Janeiro pelo presidente da Construtora Norberto Odebrecht, Benedicto Barbosa da Silva Júnior. Continham uma lista de mais de 200 políticos com seus nomes e codinomes.
Soube-se então que, no dicionário secreto criado pela Odebrecht, o presidente da Câmara à época, Eduardo Cunha, era o Caranguejo; Eduardo Paes, prefeito do Rio, o Nervosinho; o governador Sérgio Cabral era Próximus; Renan Calheiros, presidente do Senado, o Atleta; a deputada federal gaúcha Manuela d’Ávila, do PC do B, Avião. Outras alcunhas, contudo, permaneciam indecifráveis – como o “Italiano” ou o “Pós-Italiano”, citados em e-mails de Marcelo Odebrecht. (Soube-se mais tarde que, associado à lista de codinomes, funcionava um sistema de senhas e contrassenhas, utilizado apenas nas raras vezes em que o dinheiro era entregue pessoalmente aos beneficiários ou a seus emissários. No caso de “Feira”, por exemplo, quem estava encarregado de entregar o dinheiro deveria dizer “legume”; quem aparecia para receber a bolada só botava a mão no dinheiro se respondesse “pimentão”.)

Na manhã do dia 22 de março de 2016, vinte dias depois da delação da secretária, uma força-tarefa composta por 380 policiais federais vasculhou escritórios da Odebrecht e da construtora Andrade Gutierrez em nove estados brasileiros. Na tarde daquele mesmo dia, os procuradores e policiais federais abriram a entrevista coletiva exibindo as planilhas e os documentos encontrados semanas antes com Maria Lúcia Tavares – e anunciaram à imprensa que ela havia contado tudo o que sabia.

O alto comando da Odebrecht percebeu que já não era mais possível resistir à delação. No início da noite, a empreiteira divulgou uma nota oficial. “As avaliações e reflexões levadas a efeito por nossos acionistas e executivos levaram a Odebrecht a decidir por uma colaboração definitiva com as investigações da Operação Lava Jato. […] Esperamos que os esclarecimentos da colaboração contribuam significativamente com a Justiça brasileira e com a construção de um Brasil melhor.” As negociações da empresa com o Ministério Público afinal deslancharam.

Embora decisiva, não foi apenas a descoberta do “departamento de propinas” que levou Marcelo Odebrecht a acenar com a possibilidade de um acordo de delação premiada à Justiça. As dificuldades financeiras que assolaram a construtora desde que a empresa entrou no radar da Lava Jato também pressionaram o executivo a agir.

A debacle recente foi tão impressionante quanto havia sido o crescimento dos negócios sob o comando de Marcelo. No período de oito anos em que ele presidiu o grupo da família, as receitas da Odebrecht passaram de 40 bilhões de reais anuais para 132 bilhões ao ano – tomado em conjunto, o grupo empresarial tem faturamento inferior apenas ao da Petrobras, no Brasil. Os ramos de atuação da empresa também aumentaram, de sete para 15, no mesmo período. E o número de funcionários quase dobrou, passando de 90 mil para 170 mil contratados. Todo esse contingente estava empregado em grandes obras e projetos de estaleiros, na exploração de petróleo e na fabricação de etanol, na administração de estradas e na construção de submarinos, aeroportos, portos e empreendimentos imobiliários, no Brasil e no exterior. O plano era atingir, até 2020, a marca de 200
bilhões de reais anuais em faturamento.

Tamanho crescimento veio acompanhado da tomada de empréstimos. Num movimento que acabaria se revelando fatal, a dívida da empresa passaria, em oito anos, de 13 bilhões para 110
bilhões de reais. Não se tratava, de toda forma, de um comportamento irracional. Nos anos de bonança, quando o Brasil parecia ser uma potência emergente, eram os bancos que procuravam a Odebrecht para oferecer dinheiro, muitas vezes dando crédito sem exigir maiores garantias. Num ambiente econômico desse tipo, tomar dívida não apenas era compreensível, era quase imperativo.

Tudo parecia ir bem, mesmo com a redução do ritmo de crescimento do país, até que, em novembro de 2014, a Lava Jato prendeu diretores e acionistas de diversas empreiteiras: UTC, Camargo Corrêa, Queiroz Galvão, Mendes Júnior, Iesa e Engevix. Nenhum executivo da Odebrecht chegou a ser detido, mas houve busca e apreensão em escritórios da empresa. Naquele momento, a Lava Jato ainda estava no escuro quanto às práticas de corrupção do grupo baiano. Credores, sócios e investidores entraram em alerta, de toda forma.

Por causa da operação, o fundo americano Blackstone, que estava prestes a aplicar 350 milhões de reais na Odebrecht Ambiental, subsidiária de saneamento do grupo, suspendeu o aporte, alegando ser um risco para a sua reputação. Credores e sócios passaram a pressionar a empreiteira por maiores garantias e controles contra a corrupção. Nas reuniões, os acionistas da empresa eram constantemente interpelados pelos sócios minoritários sobre os riscos reais de a Lava Jato atingir o grupo. “Fiquem tranquilos, esse risco não existe”, respondeu o próprio Marcelo Odebrecht, certa vez. “Não temos nada a temer.”

Desde 2015, contudo, a construtora, que tem o segundo maior faturamento do grupo, não fecha nenhum novo contrato no Brasil. Tem gastado recorrentemente mais dinheiro do que recebe e, em
março passado, só tinha fôlego para continuar funcionando até meados de 2017. A companhia afirma que depende muito pouco do Brasil, porque 85% de seu cardápio de projetos está no exterior.
Mas seus principais clientes são países como Venezuela, Equador, Peru e Angola – que, ou estão em crise, ou temem continuar pagando a uma empresa que ainda não se sabe que futuro terá. A questão é especialmente delicada porque, se o dinheiro secar e a construtora tiver de entrar em recuperação judicial, todo o grupo será afetado.
Hoje, Marcela Drehmer, diretora financeira do conglomerado, se concentra em convencer o mercado de que a Odebrecht tem saúde para superar o turbilhão. Ex-bailarina, a executiva baiana de traços finos, modos gentis e voz delicada administra uma dívida de 110 bilhões de reais e está à frente da mais complexa reestruturação financeira em curso no Brasil. Seu quartel-general fica em São Paulo, na sede construída pela própria Odebrecht e inaugurada em 2013. É um prédio elegante, em que o hall de entrada está sempre perfumado. Além disso, o que mais chama atenção no ambiente são as frases de Norberto Odebrecht, o avô de Marcelo, estampadas em adesivos espalhados pelas paredes.

“A liberdade com responsabilidade não estimula o individualismo exacerbado. Ao contrário, ela reforça a coesão e a unidade da Organização, pois só Seres Humanos livres e responsáveis podem cooperar verdadeiramente”, diz uma delas, num dos cantos do cafezinho.

Instalada no 16º andar, Drehmer trabalha arduamente para negociar os ativos que podem ser vendidos a fim de colocar dinheiro no caixa. Começou a empreitada logo depois da prisão de seu chefe, em junho de 2015, com uma rodada de apresentações para credores no Brasil e no exterior.

Ainda havia, então, a esperança de que em pouco tempo Marcelo Odebrecht fosse libertado por alguma liminar. Em dezembro, o Superior Tribunal de Justiça negou o último recurso. Da cadeia, Marcelo renunciou à presidência e seu grupo iniciou um saldão de ativos – hidrelétricas, rodovias, gasoduto e vários outros projetos. O objetivo seria arrecadar 12 bilhões de reais em 2016. Mas não mais do que 1 bilhão tinha entrado em caixa até o final de setembro.
A Odebrecht conseguiu renegociar dívidas, é verdade, trocando garantias e empurrando os vencimentos para 2018 e além, mas ainda não se sabe de onde tirará o dinheiro para pagá-las. No auge da tensão, um escritório de advocacia foi contratado para estudar o cenário de recuperação judicial. Com a proximidade de um acordo com o Ministério Público, a Odebrecht começou a respirar, mas as chances de sucesso do plano de reestruturação ainda dependem de um acordo de leniência com os governos do Brasil e dos Estados Unidos (como as empresas do grupo negociaram títulos nos Estados Unidos e uma delas, a Braskem, vende ações na Bolsa de Nova York, o grupo está sujeito a punições pela lei anticorrupção americana).

Fechar a delação e o acordo de leniência, tanto no Brasil como nos Estados Unidos, é a senha para que os bancos voltem a emprestar para a construtora, e os governos possam novamente contratá-la, sem problemas. “Fechar a delação é essencial, precisamos virar a página”, Drehmer repete internamente, como um mantra.
Nascido em outubro de 1968, Marcelo é o primogênito de Emílio, por sua vez o primogênito de Norberto Odebrecht, fundador da empresa. Embora herdeiro por direito de um dos maiores impérios empresariais do Brasil, ele ainda precisaria se provar capaz antes de assumir o comando do grupo – ou pelo menos é esse o discurso que gostam de repetir integrantes da família e muitos de seus funcionários. A ideia de que um líder precisa se impor por seus feitos e pelo exemplo faz parte da doutrina criada e divulgada por Norberto Odebrecht em uma coletânea de livros publicados no início dos anos 80, todos sob o título Sobreviver, Crescer e Perpetuar – Tecnologia Empresarial Odebrecht – ou, simplesmente, TEO.

Ensinada em cursos a todos os iniciantes na Organização Odebrecht (é assim que eles chamam a si próprios), a TEO é mais do que um manual empresarial. É uma doutrina, que extravasa o âmbito dos negócios e se debruça sobre muitos aspectos da vida privada e familiar de seus funcionários, incluindo a maneira como devem criar os filhos. A Odebrecht, aliás, estimula a contratação de filhos, parentes e amigos. Em 2012, em uma palestra em Salvador, Marcelo Odebrecht informou que, dos 120 mil funcionários que a empresa tinha, 5 mil eram pais e filhos, e entre 20 a 30 mil eram parentes.
Para ele, aquilo parecia óbvio motivo de orgulho.
Em agosto deste ano, durante uma longa conversa na sede da Odebrecht, em São Paulo, um graduado funcionário destacado para me explicar a cultura e a história do grupo usou um exemplo concreto de como aplicava a TEO na vida familiar. “Neste final de semana, no almoço de família, meus dois filhos, adultos com mais de 30 anos, tiveram uma briga feia e começaram a gritar um com o outro. Peguei os dois pelo braço e disse que fossem conversar sozinhos e decidissem não quem estava certo, mas o que era o certo. É o que a TEO diz, e é como sempre os ensinei”, explicou o executivo – que, apesar do propalado orgulho de ser da “família Odebrecht”, pediu para não ser identificado nesta reportagem. Disse temer que alguma declaração sua pudesse prejudicar as negociações da empresa com a Lava Jato.
Durante um almoço, um dos mais antigos aliados de Norberto e Emílio Odebrecht procurou me convencer de como a doutrina criada pelo patriarca pode ajudar a explicar o comportamento do neto. “A relação de confiança é o pilar da TEO”, afirmou. Em alguns textos, a organização chega a ser descrita como uma “sociedade de confiança”. “Não se trai a confiança do cliente, do parceiro e nem dos liderados. Foi isso o que o Marcelo aprendeu a vida toda. E é por isso que, para ele, essa delação é uma violência”, disse o executivo, que, mesmo sem fazer mais parte do organograma da empresa, e mesmo tendo sido autorizado a falar, acompanhado de um assessor de imprensa da Odebrecht, pediu para não ter o nome revelado. Na Odebrecht é assim. Compete à organização decidir quem fala e quem não fala em público, mesmo quando o sujeito não faz mais parte do quadro de “integrantes”, como eles se referem aos funcionários.

Mesmo agora, combalida pela crise financeira e pelas investigações, a Odebrecht ainda é percebida como uma organização poderosa. Enquanto trabalhava nesta reportagem, tive recusados muitos pedidos de entrevista feitos a funcionários, ex-funcionários, consultores, amigos, inimigos, sócios e concorrentes. Das 52 pessoas que aceitaram falar, apenas quatro concordaram em ser identificadas.
A própria Odebrecht condicionou o acesso a alguns dos seus funcionários à premissa de que não seriam citados nominalmente. Nenhum membro da família Odebrecht aceitou dar entrevista.
Bisneto de um imigrante alemão que chegou ao Brasil em 1856, Norberto Odebrecht tinha 21 anos de idade quando se tornou empreiteiro, ao assumir a construtora do pai. Corria o ano de 1941, época de escassez e de crise no Brasil, resultado da Segunda Guerra Mundial, e a empresa não resistiu.
Desiludido, o pai de Norberto, que saíra da região Sul para tentar a vida na Bahia, decidiu mudar-se para o Sul e passar o resto dos dias próximo à família. Norberto preferiu ficar e terminar as obras inacabadas. Renegociou as dívidas com os credores e propôs que os mestres de obras trabalhassem como sócios nas empreitadas: não receberiam nada no começo, mas dividiriam os resultados no
final. Muitos toparam o negócio incerto.

Dessa experiência resultou um sistema de remuneração variável em que, quanto mais alto o cargo, maior é a fatia do bônus na renda do funcionário – ou “integrante”. No topo da hierarquia, 70% dos rendimentos dos executivos da Odebrecht dependem do resultado de suas áreas. Depois de quitar as dívidas do pai, Norberto organizou a empreiteira como uma federação de empresários, na qual cada obra funcionava de forma quase autônoma, como uma firma independente. A coisa engrenou e, no início dos anos 50, a Odebrecht estava pronta para crescer. Não precisou olhar muito em volta para descobrir onde estavam os melhores contratos e o seu melhor cliente: no Estado.

O mundo das empreiteiras é o objeto de estudo de Pedro Henrique Pedreira Campos, professor de história na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Publicado em 2014, seu livro Estranhas Catedrais: As Empreiteiras Brasileiras e a Ditadura Civil-Militar (1964–1988) acabou se tornando popular e uma referência mais ou menos obrigatória em tempos de Lava Jato. Numa manhã de junho, num café no Rio de Janeiro, Campos me contou a seguinte anedota. “Dizem que, nos anos 90, seu Sebastião Camargo, da Camargo Corrêa, estava na cerimônia de posse do novo governador de São Paulo, no Palácio dos Bandeirantes, quando encontrou um ex-governador do estado. O velho político o saudou: ‘Sebastião Camargo, você por aqui?’ Ao que o empreiteiro respondeu: ‘Eu estou sempre aqui, governador. Vocês é que mudam.’” Para Campos, o episódio ilustra a ligação das construtoras com o Estado brasileiro. “Os empreiteiros têm influência perene no Estado, e sua ascensão em geral é ligada a forças políticas específicas. A Camargo Corrêa cresceu muito na época em que o governador de São Paulo era Adhemar de Barros, cunhado de um de seus acionistas, Sylvio Brand Corrêa. A Andrade Gutierrez estava sempre presente nas obras de Juscelino Kubitscheck, e assim por diante”, explicou. Já a ascensão da Odebrecht, nos anos 50, não se deu exatamente por intermédio de um político, mas sim de uma empresa: a Petrobras.
De certa forma, as duas empresas cresceram juntas. Criada em 1953 para explorar petróleo em terra, no Nordeste brasileiro, a estatal era sediada na Bahia. Seu primeiro presidente foi o militar e ex-governador Juracy Magalhães, que em duas ocasiões seria ministro da ditadura. Com o impulso de Magalhães, a Odebrecht se incumbiu de construir para a estatal, ainda nos anos 50, um gasoduto, uma refinaria e seu edifício em Salvador. Foi Magalhães quem apresentou Norberto Odebrecht ao general Ernesto Geisel, outro descendente de alemães, e a parceria fluiu. Geisel mal havia assumido a presidência da Petrobras, no final de 1969, quando convidou Norberto Odebrecht para construir o novo edifício-sede da empresa, no Rio de Janeiro.

Vivia-se então o início de um período de ouro para as empreiteiras. O governo militar acabara de adotar uma política de conteúdo nacional, decretando que, a partir daquele ano, só as construtoras brasileiras poderiam participar de obras públicas no país. A obra da Petrobras no Centro do Rio representava a expansão da Odebrecht para o Sudeste do país, um projeto tão importante para Norberto que ele decidiu enviar o próprio filho, Emílio, recém-formado em engenharia na Universidade Federal da Bahia, para comandar os novos projetos. A proximidade com a estatal e a ampliação de mercado fizeram com que a Odebrecht subisse, em apenas dois anos, entre 1971 e 1973, da 19ª para a terceira posição no ranking das empreiteiras nacionais. O crescimento continuou mesmo depois do fim do “milagre econômico”, em 1974. “Durante a ditadura, a empreiteira ganhou dois projetos que a fizeram mudar de patamar: uma fatia da obra do aeroporto do Galeão, no Rio, e a Usina Nuclear de Angra dos Reis”, comentou Campos.

À frente da empreiteira, Norberto se tornou praticamente uma lenda. Bem cedo, pelas manhãs, era isto chegando à garagem da empresa ao volante do próprio carro, quase sempre trajando um indefectível terno de linho branco. Começava a trabalhar cedo e saía tarde. Era idolatrado pelos funcionários, que o chamavam de “dr. Norberto” e disseminavam histórias que desembocavam invariavelmente no elogio do homem simples e humilde. Ele abria a porta para as mulheres e cedia  a vez aos subordinados no elevador. Dizia-se que só preenchia bilhetes, documentos e ordens de pagamento a lápis, como prova de confiança no interlocutor. Certa feita foi barrado por uma secretária na porta da sala de um gerente. A moça, que não sabia de quem se tratava, pediu que Norberto esperasse, pois o seu chefe estava ocupado. Segundo contam, ele se sentou e esperou pacientemente, para assombro dos funcionários que passavam pelo corredor e do próprio subordinado, que não sabia onde se enfiar depois de ter submetido o dono da empresa a um chá de cadeira.
Mas só pode se dar ao luxo de aparentar simplicidade quem de fato tem poder. Na empresa e na família, a palavra de Norberto era lei. Além dos funcionários, seus familiares também deviam seguir regras estabelecidas pelo patriarca. Fazia questão de que todos se reunissem, nos fins de ano e nas férias de julho, na ilha de Kieppe, propriedade da família no litoral sul da Bahia, a 200 quilômetros de Salvador. Outra norma imposta ao clã era a de manter a discrição. “Você não vê um Odebrecht em festas de arromba e colunas sociais”, disse-me, orgulhoso, um de seus maiores discípulos.

Algumas das regras definidas por Norberto para a empresa e a família foram sistematizadas no estatuto da Kieppe, pessoa jurídica que detém 63% das ações da Odebrecht. Uma delas diz que, a partir dos 18 anos, os herdeiros devem receber a parte que lhes cabe do negócio. Outra, que só haverá, a cada geração, espaço para um Odebrecht no comando do grupo. Na geração de Marcelo Odebrecht, eram vinte os herdeiros. Quatro deles, filhos de Emílio: Monica, a mais ligada à Marcelo, é advogada do grupo; Márcia, a terceira filha, trabalha como arquiteta; e Maurício, o mais novo, cuida dos negócios agropecuários da família, como criação de pacas e fabricação de cachaça.

Todos os primos passavam os fins de ano na ilha, seguindo a tradição iniciada pelo avô. Lá, crianças e adolescentes dividiam o tempo entre brincadeiras, nos horários livres, e aulas de matemática, lições de alemão e de TEO, a Tecnologia Empresarial Odebrecht. As obrigações dos jovens herdeiros não se resumiam ao período de férias na casa de praia, obviamente – algo que valia em particular para Marcelo. Em Salvador, nos fins de semana, seus primos e amigos iam jogar futebol na quadra do prédio em que toda a família morava. Marcelo
costumava visitar obras ou subia até o apartamento do avô, para ter lições. “Ele sempre foi um CNPJ, nunca um CPF”, analisou um consultor que o conheceu no auge do poder, também pedindo para não ser identificado. “Não sou tão íntimo assim, ele pode ficar chateado.” Em 2012, num encontro de empresas juniores em Salvador, perguntaram ao príncipe dos empreiteiros se ele  alguma vez havia tido dilemas a respeito de seu destino como herdeiro do grupo. Depois de uns instantes refletindo, ele respondeu que não. “Fui sendo envolvido e foi tudo muito natural”, disse.

“A orientação para a eficácia exige autodisciplina do empresário”, diz um dos mandamentos da TEO. Norberto Odebrecht serviu no Exército no Núcleo de Preparação de Oficiais da Reserva, na Bahia. Emílio fez o mesmo. Marcelo seguiu os passos do avô e do pai, numa época em que a maior parte dos colegas usava a matrícula na faculdade para escapar ao serviço militar (ele cursava engenharia civil na Universidade Federal da Bahia). Dessa experiência veio o hábito, que ele mantém até hoje, de acordar bem cedo para fazer exercícios.
Aos 24 anos, recém-formado, Marcelo começou um estágio na construtora, numa obra em Salvador.
Viajou pelo interior do Brasil, trabalhou para a organização no Reino Unido e nos Estados Unidos,fez MBA na Suíça. Quando não queria ser identificado como um Odebrecht, apresentava-se como Marcelo Bahia. Aos poucos foi assumindo missões de maior responsabilidade e galgando postos no grupo. Aos 33 anos, em 2001, seu pai decidiu que estava na hora de prepará-lo para a sucessão.
Emílio, porém, achava que não deveria ser ele próprio o responsável por comandar essa etapa final do aprendizado profissional do filho. Assim, afastou-se da presidência do grupo, mantendo apenas sua posição no Conselho de Administração. Em seu lugar, colocou Pedro Novis, executivo com décadas de casa e de amizade com os Odebrecht. Marcelo assumiu a construtora, o coração do grupo. Sete anos depois, aos 40, ele ganharia o comando do conglomerado.
Marcelo Odebrecht se manteve obcecadamente dedicado ao império montado pelo avô. Até ser preso, sua rotina era voltada quase exclusivamente para o trabalho, com alguns poucos momentos reservados para a ginástica e para a família (ele é casado com Isabela Alvarez, uma professora que foi sua primeira namorada séria, a quem chama de Bela. Tiveram três filhas: Rafaella, Gabriella e Marianna).
Completamente avesso ao mundo boêmio, o chefe era chamado por Márcio Faria, diretor da Odebrecht Plantas Industriais preso com ele na Lava Jato, de “não come, não bebe, não fode”.
Metódico, anotava basicamente tudo em seu BlackBerry: ideias, tarefas, compromissos, informações.
Ele e o celular eram tão inseparáveis que os mais próximos diziam que, se alguém jogasse o telefone pela janela, ele se atiraria junto. O celular foi a primeira coisa que os agentes da PF procuraram em sua casa durante a ação de busca e apreensão que terminou com a prisão do empreiteiro. Os agentes saíram de lá com oito aparelhos.
As anotações, além de vasto material para provas, forneciam também algumas pistas sobre a vida privada do príncipe. Não havia músicas, vídeos ou fotos que não os enviados por serviços de mensagem. Nenhuma anotação de leitura, a não ser as de trabalho. Entre as mensagens particulares, e-mails do personal trainer com as séries de musculação que ele deveria cumprir, e registros de consultas semanais com uma terapeuta chamada Kyoko. Vez por outra, uma visita ao cabeleireiro.

Num determinado dia de 2013, Marcelo anotou: “Carinho em Bela/kids.”
O professor Sérgio Lazzarini, do Insper, instituto de ensino especializado em economia e administração, dedica-se ao estudo da relação entre o Estado brasileiro e os grandes grupos empresariais. Em 2010, ele publicou o livro Capitalismo de Laços: Os Donos do Brasil e Suas Conexões, mostrando, entre outras coisas, que desde 1996 a presença do Estado como acionista direto ou indireto das grandes companhias nacionais só aumentou. No início de setembro, Lazzarini me recebeu em São Paulo, numa das salas do Insper. “Em qualquer ramo econômico que tem como maior contratante o setor público, as empresas precisam desenvolver outras competências além da excelência técnica. A mais importante delas é a política. Em outras palavras, o negócio dessas empreiteiras, mais do que a engenharia, é firmar e gerenciar seus laços com os governos, não importa de que cor ideológica”, analisou. “Quem faz melhor esse jogo assume a liderança.”
Para Lazzarini, manter boas relações com o Estado não é necessariamente mau, e poderia até ser benéfico às empresas e ao país. “O problema, no Brasil, é que as empresas cruzaram a linha, realmente buscando a relação pessoal, o compadrio. As famílias querem retorno, mas não estão  preocupadas com os métodos.”
Quando o negócio é manter boas relações com os clientes – frequentemente políticos com poder para contratar obras –, Emílio, filho de Norberto e pai de Marcelo, é o melhor dos três Odebrecht. Sempre sorridente, é do tipo que abraça o interlocutor, faz piada e não tem pressa para terminar a conversa.
Todo final de ano, enviava aos políticos amigos uma cachaça fabricada em sua fazenda (Lula sempre recebeu a sua), e não costumava recusar um trago nos encontros de trabalho.
A habilidade de Emílio Odebrecht com os políticos fica evidente nos relatos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que registrou os contatos com o empreiteiro em seus diários – até agora foram lançados pela Companhia das Letras os dois primeiros volumes, referentes ao primeiro mandato, de 1995 a 1998. O ex-presidente e o empreiteiro dividiram a mesa em almoços e jantares, reuniões fechadas e com outros empresários, e também viajaram juntos em missões oficiais. Em abril de 1995, depois de um almoço no Palácio da Alvorada, de que também participava a primeira-dama, Ruth Cardoso, o ex-presidente relatou: “Veio trazer sugestões, nada para ele, só a respeito de vários temas de interesse nacional.” E observou: “É curioso. Tem um nome tão ruim a Odebrecht, e o Emílio tem sido sempre correto, e há tantos anos.”
A proximidade de Emílio com Fernando Henrique se estenderia ao ocupante seguinte do Palácio do Planalto. O empreiteiro havia conhecido Lula em 1992, por intermédio de Mário Covas. Não votou nele em 1994, nem em 1998. Depois que o petista venceu a eleição de 2002, contudo, o dirigente da Odebrecht articulou encontros de empresários com o novo presidente e apoiou o governo desde a primeira hora. Em 2008, numa entrevista à Folha de S.Paulo, afirmou que Lula “nunca foi de esquerda” e tentou explicar por que o empresariado temia tanto o petista, antes da eleição. “O empresário não tinha convivido com ele e por isso tinha uma imagem errada dele. Agora, ele não é ‘menino amarelo’”, completou, usando a expressão típica da Bahia, que significa ingênuo, inocente. “Ele sabe perfeitamente o que quer e a estratégia para conseguir o que quer. Muitas vezes aparenta ser um pouco bobo, inocente, mas o ‘menino amarelo’ de inocente não tem nada.”
O talento de Marcelo Odebrecht para a cordialidade não era tão grande quanto o do pai. Em 2008, quando ele estava prestes a assumir a presidência do grupo, o governo Lula decidiu levar adiante um projeto de construção de usinas hidrelétricas no rio Madeira, na região de Porto Velho, em Rondônia. Era um plano antigo da empreiteira, que Marcelo tomara como missão pessoal realizar.
Antes mesmo que o governo decidisse fazer a licitação, a Odebrecht já havia desembolsado 150 milhões de reais pela elaboração de um projeto que previa construir duas usinas, Jirau e Santo Antônio, em pontos diferentes do rio. Todas as contas de custo e retorno da empreiteira foram feitas considerando a construção das duas usinas. Não espanta, portanto, que Marcelo tenha ficado irritado quando veio a ordem, de Brasília, para licitá-las em separado – e ainda mais irritado quando perdeu a segunda concorrência, a de Jirau, para o consórcio formado pela franco-belga Suez e a Camargo Corrêa.
As concorrentes da Odebrecht haviam apresentado um projeto em que o reservatório de água ficava a 9 quilômetros de distância do local inicialmente previsto no edital de licitação. Marcelo considerou que a regra da concorrência havia sido quebrada. Insistia com o governo para que a licitação fosse anulada. Do outro lado da mesa, porém, estava Dilma Rousseff, então ministra da Casa Civil, e o resultado foi um curto-circuito. O príncipe ameaçou ir à Justiça com o objetivo de anular o leilão. O consórcio rival contra-atacou, dizendo que faria o mesmo, já que a Odebrecht também deslocara seu reservatório – em 250 metros. O governo por fim rebateu dizendo que, se houvesse qualquer contestação, cancelaria tudo e entregaria a tarefa de erguer as usinas à Eletrobras. Foi preciso que Emílio interviesse, visitando Dilma, para desfazer o mal-estar. Ao final, produziu-se um acordo e o resultado da licitação foi mantido.
Durante anos, Dilma pronunciaria o aposto “aquele sujeito complicado” a cada vez que se referia ao jovem dirigente da Odebrecht. Ainda assim, a empresa manteve o acesso ao poder. Marcelo e a presidente aos poucos se aproximaram, depois passaram a manter uma interlocução frequente. Eventualmente, despachavam a sós no Palácio da Alvorada. Marcelo chegou mesmo a receber algumas deferências.
Entre o final de janeiro e o início de fevereiro de 2012, em uma visita oficial a Cuba e ao Haiti, viajou com Dilma na ala reservada do avião presidencial, algo inédito para um empresário até então.
No período que compreende os governos Lula e Dilma, o faturamento da Odebrecht sextuplicou. A empreiteira tomou 70% de todos os financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) para obras no exterior entre 2007 e 2015, e foi a empreiteira que mais recebeu aportes do fundo de investimentos em infraestrutura do FGTS. Foi também, no mesmo período, a empresa brasileira campeã em contratos com a Petrobras. “Os baianos conseguiam tudo”, reclamou o representante de uma grande concorrente, num café em São Paulo, no início de setembro. “Eles estavam na Copa, na Olimpíada, no petróleo, na geração de energia”, enumerou o executivo, mais um dos que pediram para permanecer no anonimato – segundo ele, para não atrair a ira dos rivais.
Um dos maiores doadores de campanha do Brasil – só nas eleições de 2014, distribuiu declarados 85 milhões de reais –, o grupo Odebrecht sempre foi muito bem tratado no Congresso, mesmo quando já havia sido arrastado pelo furacão da Lava Jato. Ao depor na CPI da Petrobras, em setembro de 2015, Marcelo Odebrecht foi explicitamente bajulado pelos deputados. “Vossa Senhoria é daqueles empresários que qualquer estudante de engenharia quer seguir profissionalmente, pela dimensão, pela complexidade, pela atuação no Brasil e fora do Brasil”, descreveu Valdir Prascidelli, eleito pelo PT de São Paulo. Em seguida, levantou a bola para o empreiteiro cortar: “O senhor acha adequada, correta, a prisão, considerando que o senhor sempre esteve à disposição da Justiça? Na sua opinião, há um certo abuso com relação às prisões, a sua e a de outras pessoas, eventuais?” Marcelo cortou a seu modo: “Eu aprendi com meu avô que as melhores respostas começam com as grandes perguntas, e eu agradeço muito as perguntas que o senhor está fazendo, porque elas seriam as minhas respostas.”
Corria o ano de 2013 quando Marcelo Odebrecht recebeu um parlamentar amigo em seu escritório, em São Paulo. O príncipe não era fã daquele tipo de encontro, mas o político, que havia sido alertado a esse respeito, insistiu e acabou conseguindo a audiência. O propósito da conversa era pedir ajuda para a campanha eleitoral, mas, lá pelas tantas, o parlamentar resolveu abordar um tema que o intrigava. “Marcelo, como é que você, um cara bom de conta, foi aceitar fazer esse Itaquerão?”
Até hoje o interlocutor se lembra da resposta do empreiteiro: “Rapaz, não tivemos como escapar. O Lula nos chamou e disse: ‘Vocês já ganharam muito dinheiro com a gente. Esse, vão ter de fazer.’” Itaquerão é como ficou conhecida a Arena Corinthians, localizada no bairro de Itaquera, na Zona Leste de São Paulo. Entrou para a lista de estádios que abrigariam jogos da Copa do Mundo depois que o Morumbi foi considerado inadequado pela Federação Internacional de Futebol, a Fifa, em 2009. O projeto inicial do Corinthians estava orçado em 650 milhões de reais, mas o clube não conseguia crédito para contratar uma construtora. O prazo parecia cada vez mais curto para a conclusão das obras a tempo dos jogos. Depois da convocação de Lula, a Odebrecht aceitou a missão.
Nas contas da construtora, contudo, o estádio com todas as especificações exigidas pela Fifa não custaria menos que 1 bilhão de reais. A linha de financiamento do BNDES para arenas esportivas tinha como limite menos da metade desse valor: 400 milhões por empreendimento. Depois de uma série de reuniões e jantares entre Odebrecht, Lula, Geraldo Alckmin e Gilberto Kassab, combinou-se que a prefeitura financiaria os outros 600 milhões com um fundo formado pela receita da venda de títulos imobiliários. Tudo no fio do bigode, pois, quando a obra começou, em junho de 2011, os títulos ainda nem existiam e tampouco havia um contrato de construção entre o Corinthians e a Odebrecht. Só noventa dias depois, no início de setembro, é que o vínculo contratual entre o clube e a construtora foi formalizado, num evento que teve a participação do ex-presidente. Lula fez questão de que Emílio e Marcelo Odebrecht comparecessem. Diante da torcida, manifestou sua gratidão. “Eu quero agradecer ao presidente do Corinthians, à diretoria do Corinthians, aos conselheiros do Corinthians, mas quero agradecer sobretudo ao dr. Emílio Odebrecht, presidente do conselho da Odebrecht, e ao Marcelo, presidente do grupo Odebrecht, porque foram duas pessoas que começaram a construir essa obra ainda sem o contrato assinado. Eles já estão trabalhando há noventa dias, e o contrato foi assinado hoje.” Quando terminou de discursar, a torcida gritava entusiasmada: “El, el, el, o Lula é da Fiel!”
Conceição Andrade é uma senhora baixinha de 62 anos, cabelos claros e olhar afirmativo. Trabalhou como secretária na Odebrecht entre 1979 e 1990. Quando começou na empreiteira, tinha um rosto de boneca, quinze quilos a menos, madeixas escuras e se preparava para o vestibular. Quarta dos seis filhos de uma dona de casa viúva que sobrevivia de pensão, a moça pagava os próprios estudos e ainda ajudava nas contas de casa. Queria cursar economia e tinha a convicção de que estava iniciando uma promissora carreira na mais importante empresa de Salvador.
Depois de alguns meses como auxiliar de serviços gerais, conseguiu uma vaga de secretária na gerência financeira. Todo dia, seu chefe, Antônio Ferreira, lhe ditava uma lista com nomes, codinomes e valores a serem pagos. Anos mais tarde, ele seria também chefe da secretária Maria Lúcia Tavares, a delatora que mudou o rumo das investigações sobre a Odebrecht. Ao lado dos nomes da lista, quase sempre havia a indicação de uma obra. Ela anotava tudo, preenchia as ordens de transferência bancária e, em seguida, passava a tomar as providências para que o dinheiro chegasse ao destino. De todas as tarefas que realizava no departamento financeiro, essa era a principal. “Os pagamentos eram a prioridade. Se eu estivesse fazendo alguma coisa e surgisse um pagamento para fazer, a ordem era parar tudo”, lembrou-se Conceição Andrade, em junho passado, durante uma conversa no escritório de um amigo, em Salvador. Andrade conhecia os nomes dos políticos e sabia que o dinheiro era propina, mas fazia como os outros funcionários do departamento: tratava tudo rotineiramente, sem nunca perguntar como nem por quê. “Eu sabia que estava fazendo uma coisa que não era legal. Mas a gente não falava sobre isso nem entre nós. Todo mundo tinha muito medo de tocar no assunto”, ela me disse.
Naquela época o “departamento de propinas” ainda não era tão sofisticado. A maior parte dos pagamentos era feita por transferência bancária aos próprios políticos ou às contas dos gerentes das obras. Como na ocasião não havia operações pela internet, Andrade telefonava para a agência do Banco Econômico instalada no subsolo do edifício da empreiteira e listava as remessas do dia.
Depois, ligava para os gerentes de obras e avisava do envio, para que retirassem o dinheiro de suas contas na empresa e entregassem diretamente aos beneficiários.
Por vezes, os políticos e agentes públicos preferiam ir pessoalmente à sede da Odebrecht para receber o dinheiro – ou os presentes, como o chefe de Andrade chamava. O próprio Ferreira os recebia em sua sala e entregava os pacotes. Conhecido pelo jeito expansivo e bem-humorado, o gerente era quem costumava inventar os codinomes. “Ele se reunia com os assessores dele e ia dando os codinomes, fazendo chacotas. As gargalhadas eram tão altas que às vezes eles colocavam a cara para fora da sala, para ver se alguém estava ouvindo.” É dessa época a alcunha Whisky, conferida a Jader Barbalho, do PMDB do Pará; e Almofadinha, apelido dado ao tucano Antônio Imbassahy, então no PFL. Fernando Sarney era “Filhão”, Sarney Filho, “Filhote”, Roseana Sarney era “Princesa”, e Edison Lobão, “Sonlo” (provavelmente a junção da última sílaba do nome com a
primeira do sobrenome). A lista era longa, com mais de 400 nomes, e abarcava desde gente insuspeita como o autor da emenda das Diretas Já, Dante de Oliveira (o Ceguinho), até parentes e assessores de governantes de Angola e do Peru, países por onde a Odebrecht começara sua expansão internacional.
Nessa época, anos 80, o PT ainda engatinhava. O poder estava nas mãos de caciques como Antônio Carlos Magalhães e José Sarney, mas esses não frequentavam a planilha do departamento financeiro. “O pessoal falava que havia salas reservadas lá no 4º andar, onde ficava o escritório de doutor Norberto, só para receber os grandes – como o Geisel e o Figueiredo, na época da ditadura, e depois ACM, Sarney”, contou a ex-secretária.

Como se não bastassem os “presentes”, muitos beneficiários preferiam acompanhar in loco os fechamentos semanais das faturas das obras de que eram “donos” – ou seja, para as quais haviam contribuído com influência política. Andrade era uma das funcionárias que os recebia, sempre à noite, quando a maioria dos funcionários dos outros departamentos já havia ido para casa. Nessas ocasiões, os “donos” das obras se sentavam na sala do gerente financeiro enquanto esperavam que as faturas fossem fechadas. Assim ficavam sabendo exatamente quanto a empreiteira receberia naquela semana – e, portanto, o percentual que lhes caberia. Uma vez definidos os valores, as faturas eram imediatamente refeitas, de forma a acrescentar a propina no valor a ser cobrado dos órgãos públicos. Todo o processo tomava tempo, o que obrigava a jovem secretária a deixar as dependências da Odebrecht já de madrugada, algumas vezes por mês. “Eu saía exausta, mas pelo menos ia para casa de táxi pago pela empresa. Todos os taxistas da região me conheciam”, contou.
Afora esses benefícios, Andrade era vista como uma funcionária normal. “Naquela época, não havia investigação nem preocupação com nada. Eles sabiam o que estavam fazendo, mas tratavam com grande naturalidade. Era como se a empresa apostasse na impunidade.”
Em 1990, durante o tumulto financeiro provocado pelo confisco realizado pelo governo Collor, Conceição Andrade foi demitida em meio a uma onda de cortes de custos. No dia em que deixou o escritório, tirou de sua gaveta um conjunto de planilhas, guardou tudo numa caixa e levou a papelada para casa, depositando-a no fundo de seu guarda-roupa. Por décadas, cogitou entregar o material à polícia, chamar um jornalista para contar tudo ou incluir os papéis no processo trabalhista  que movia contra a empresa. Sempre desistia. Para ela, assim como para a maior parte dos baianos durante décadas, a organização era uma potência inatacável. Por muitos anos, Andrade acreditou ter tido sua defesa no processo trabalhista boicotada pelo próprio advogado, e até hoje está certa de nunca mais ter conseguido um emprego fixo por ter processado a empreiteira baiana. Só depois que Marcelo Odebrecht foi preso ela decidiu procurar um deputado federal que havia sido amigo de infância, o petista Jorge Solla, e entregou tudo a ele. “Foi quando eu me senti segura para entregar o que tinha. Achava importante mostrar que aquele esquema já acontecia havia muitos anos.”
E embora rudimentar, o método dos anos 80 já anunciava o que viria a ser o “departamento de operações estruturadas” dos anos 2000. Estavam lá as planilhas, os codinomes e o controle estrito de tudo o que saía e quando. Só não havia ainda registros de offshores na Suíça, banco no Caribe, investigações como a Lava Jato ou lei anticorrupção. E, embora a Odebrecht tivesse sido atingida por escândalos desde aquela época, tais casos costumavam gerar mais espuma do que consequências práticas.

O primeiro escândalo nacional envolvendo o nome da empresa aconteceu em 1987, quando o jornalista Jânio de Freitas revelou com antecedência na Folha de S.Paulo o resultado da licitação para a construção da Ferrovia Norte-Sul – obra orçada, à época, em 2,5 bilhões de dólares. A denúncia da Folha demonstrava que dezoito lotes da ferrovia haviam sido divididos por um grupo de empreiteiras, entre as quais a Odebrecht. Em vez de travarem uma disputa pelos lotes, oferecendo cada uma o menor preço possível, as empresas se organizaram em cartel e definiram os vencedores antes mesmo que os envelopes com as propostas oficiais fossem enviados ao Ministério dos Transportes. Queiroz Galvão, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez também faziam parte do acerto e tinham como cúmplices membros do governo José Sarney. Com o escândalo, a concorrência foi anulada, mas o inquérito policial aberto para investigar a fraude nunca chegou a qualquer conclusão. Foi arquivado um ano depois.
O início da década de 90 foi tumultuado, com uma sequência de escândalos que abalariam a imagem da empreiteira. Logo nos primeiros dias de 1992, um ex-diretor do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) divulgou a gravação de uma conversa que tivera com o ministro do Trabalho,
Antônio Rogério Magri, na qual o chefe da pasta dizia ter recebido 30 mil dólares para liberar verbas do FGTS para “uma empresa que está fazendo obras” de “esgoto no Acre”. Como ministro, Magri era também o presidente do Conselho Curador do FGTS. A única obra de saneamento no estado, contratada pelo governo local e financiada com dinheiro do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, era o Canal da Maternidade, orçado em 110 milhões de dólares, em dinheiro da época. A empreiteira era a Odebrecht, que negava ter dado dinheiro a Magri. A Câmara dos Deputados formou uma CPI, Comissão Parlamentar de Inquérito, e convocou para prestar esclarecimentos o então governador do Acre, Edmundo Pinto, político do antigo PDS. Na antevéspera do depoimento, no dia 17 de maio, o governador foi assassinado em um quarto do Hotel Della Volpe, em São Paulo, onde estava em viagem não oficial. Tinha 38 anos de idade.

Naquela mesma noite, no mesmo hotel e no mesmo andar, estavam quatro executivos da Odebrecht, que, segundo a empreiteira, haviam ido até lá para discutir, com o próprio governador, o depoimento que Edmundo Pinto daria na Câmara. A viúva deu entrevistas dizendo que o crime havia sido político, e o então governador do Paraná, Roberto Requião, declarou ter ouvido do colega acreano, semanas antes, que ele havia decidido “virar a mesa na CPI”.
A polícia paulista, porém, não encontrou evidências de crime político, e encerrou o caso concluindo que se tratava de um latrocínio. Dois rapazes confessaram o assassinato, um ex-funcionário do hotel e um comparsa. Disseram que pretendiam assaltar os hóspedes. Primeiro se dirigiram ao quarto de um americano, mas teriam encontrado pouco dinheiro. Então teriam entrado no apartamento do governador, que teria reagido. Pinto foi alvejado no coração e na cabeça. No final daquele mesmo ano, os assassinos confessos foram condenados a 26 anos de prisão.
A morte do governador do Acre e as investigações sobre o Canal da Maternidade ainda apareciam nas páginas dos jornais quando a Polícia Federal encontrou documentos mostrando que várias empreiteiras, entre elas a Odebrecht, haviam depositado dinheiro nas contas de uma empresa de consultoria de PC Farias, tesoureiro de campanha e eminência parda do governo Collor.
O caso PC tomou conta do noticiário. Entre as denúncias apuradas pela PF estava a de que PC havia intermediado a concessão de um financiamento do Banco do Brasil para obras da Odebrecht em Angola. O escândalo culminou no impeachment de Fernando Collor de Mello, mas nenhum diretor  da empreiteira chegou a ser indiciado ou processado.
Aqueles eram os primeiros anos de Emílio Odebrecht no comando do grupo. Quando apareceram as denúncias, ele mandou publicar notas oficiais refutando qualquer prática de crime e, depois do assassinato do governador do Acre, deu uma entrevista ao Jornal do Brasil se dizendo vítima de uma “armação” orquestrada por inimigos da empresa. A CPI do Canal da Maternidade continuou suas investigações e acabou levando à demissão de Magri – mas a Odebrecht mais uma vez saiu do processo sem arranhões.
Meses depois, a empresa seria arrastada para uma nova CPI, desta vez montada para apurar o pagamento de propinas com o objetivo de obter liberações de recursos do Orçamento federal. No final de 1993, a Polícia Federal apreendeu na casa de um dos diretores da Odebrecht em Brasília, Ailton Reis, dezoito caixas de documentos com nomes de políticos, acompanhados de percentuais e relatórios com informações sobre a Comissão de Orçamento do Congresso. Os papéis também registravam pedidos de dinheiro por parte dos políticos.
Depois de avaliar o material, o senador José Paulo Bisol, do PSB, que havia sido candidato a vice-presidente na chapa de Lula em 1989, chamou a imprensa para dizer que havia encontrado provas
de que um grupo de empreiteiras formava um cartel para dominar as concorrências de obras públicas no país e obter recursos do Orçamento, à custa de propinas. Bisol chamou o que encontrara de “uma estrutura de poder, paralela e secreta, formada pelas empreiteiras”.
“Não é um poder paralelo. É superior. O Estado brasileiro é instrumento nas mãos desse poder”, disse o senador na ocasião. Mais de 200 políticos eram citados no material apreendido, e Bisol queria que todos fossem investigados.
A Odebrecht revidou. Em nota oficial, criticou o “caráter político da apreensão”, que classificou como uma agressão a seus dirigentes. No mesmo dia, em tom beligerante, Emílio Odebrecht dava uma entrevista coletiva dizendo que o senador Bisol não tinha compreendido o conteúdo do material apreendido. Segundo o empreiteiro, a Odebrecht nunca negara contribuir para campanhas políticas, e sempre acompanhara abertamente os trabalhos de elaboração do Orçamento no Congresso Nacional. Os papéis nada mais eram do que documentos internos da holding Odebrecht relacionados a esse acompan hamento, alegou. O contra-ataque funcionou. Bisol manteve as declarações, disse ter recebido ameaças de morte, mas foi ridicularizado por colegas parlamentares e demovido da ideia de investigar todos os nomes citados na lista. Em seu relatório final, a CPI do Orçamento sugeriu a cassação de dezoito parlamentares. Ao final, apenas seis teriam o mandato cassado. Outros quatro renunciaram e os demais foram inocentados.
Nenhuma empreiteira foi incriminada.
Duas décadas mais tarde, as anotações do celular de Marcelo Odebrecht citavam uma certa “Armadilha Bisol” em meio a táticas de reação à Lava Jato. “Armadilha Bisol/contra-infos. RA?EA/Veja?”, dizia a nota enigmática.

Logo nos primeiros meses da Operação Lava Jato, a Odebrecht e as demais empreiteiras investigadas tentaram levar a cabo uma estratégia de defesa comum. Para coordená-la, convocaram um peso-pesado: ninguém menos do que Marcio Thomaz Bastos. O ex-ministro da Justiça de Lula chegou a reunir-se com o procurador-geral, Rodrigo Janot, em busca de um acordo de leniência conjunto, mas a ideia foi rechaçada pelos procuradores de Curitiba. Eles se sentiam seguros do seu poder de fogo e estavam prontos para lançar uma ofensiva contra as empreiteiras, a fase da Lava Jato batizada de “Juízo Final”, afinal deflagrada em novembro de 2014.

No final daquele mesmo mês, Thomaz Bastos morreu, vítima de problemas pulmonares. A partir daí, cada empreiteira foi para um lado. Num extremo ficaram a Camargo Corrêa e a utc, que já tinham executivos e acionistas presos e começaram a tentar um acordo com o Ministério Público. No outro, a Odebrecht, que apostava na estratégia tantas vezes bem-sucedida: negar tudo e partir para o confronto.
A estratégia de embate da empresa se desenrolava em várias frentes. Numa delas os advogados buscavam formas de anular a Lava Jato, por meio de liminares em tribunais superiores. Na arena
pública, o grupo mantinha o mesmo discurso: a Odebrecht não buscaria nenhum acordo com os procuradores porque nada tinha a temer. A cada acusação veiculada na imprensa, notas oficiais eram emitidas, contestando veementemente toda suspeita – ou prova – que se levantasse. Foi assim, por exemplo, quando se anunciou que Paulo Roberto Costa, ex-diretor da Petrobras, afirmara em depoimento ter recebido 23,5 milhões de dólares da empreiteira em sua conta na Suíça. Veio a nota. A Odebrecht negava tudo.
Por via das dúvidas, os advogados da empresa começaram, nessa mesma época, a preparar executivos do grupo para possíveis depoimentos, em caso de prisão. O esforço incluía o chefe, Marcelo, mas as sessões não eram fáceis. A todo momento ele se recusava a suprimir determinadas falas das declarações ou, pelo contrário, insistia que determinadas coisas não deveriam ser ditas.
Logo os defensores desistiram do treino. Marcelo Odebrecht era “impreparável”.
Houve também jogadas subterrâneas. Entre outubro e novembro de 2014, em plena campanha eleitoral, advogados da Odebrecht encontraram-se às escondidas, em Curitiba, com policiais insatisfeitos com a direção da Polícia Federal. Segundo depoimentos de um inquérito sigiloso da corregedoria da PF, um desses dissidentes havia procurado os representantes da empresa oferecendo informações sobre irregularidades que poderiam levar à anulação da operação.
Ocorreram várias reuniões, mas os tais dissidentes não conseguiram produzir muito mais do que uma coleção de cópias de páginas do Facebook dos principais delegados da Lava Jato, páginas em que eles atacavam Dilma Rousseff e o PT e elogiavam o tucano Aécio Neves. Os papéis foram entregues ao O Estado de S. Paulo e ajudaram a abalar a imagem da operação, mas não eram suficientes para produzir a nulidade jurídica desejada. Meses mais tarde, quando apreendeu o telefone celular de Marcelo Odebrecht, a Polícia Federal constatou que ele anotara, num tópico sobre a Lava Jato: “Trabalhar para parar/anular (dissidentes PF…).”
Engajado no esforço anti-Lava Jato, Marcelo tomou para si algumas iniciativas. Procurou representantes de empresas que, como ele, eram contra os acordos de delação, e também jornalistas de grandes veículos, a fim de convencê-los da tese de que havia um complô envolvendo Ministério Público, PT e governo Dilma para prender os empreiteiros e deixar soltos os políticos. Não funcionou.
No mercado e na mídia, a pergunta que mais se fazia na virada de 2014 para 2015 era justamente por que os executivos das outras empreiteiras estavam presos, e os da Odebrecht não. Marcelo, então, cogitou montar armadilhas para os jornalistas. No final de janeiro de 2015, fez uma encomenda ao presidente e diretor financeiro da Odebrecht Óleo e Gás, revelada meses mais tarde, quando os computadores da organização foram apreendidos: “Veja se vcs conseguem produzir esta semana (até 4a) um ‘dossiê’ contra nós, com todas as ‘offshores’ da org. Inclusive com detalhes de algumas transações que possam parecer importantes. Um dossiê que parece que pode ‘nos destruir’,mas que na prática são todas offshores legais.”

Em seguida, dirigiu-se aos seus assessores de imprensa: “Vcs têm que encontrar alguém (sem ligação conhecida conosco) que possa entregar este dossiê à Época na 5a feira pela manhã (para não dar muito tempo de checar), dizendo que ou publicam na próxima edição ou que vai dar para outro.

Pode ser alguém de outra empreiteira dizendo que ‘quer nos envolver no rolo todo’. E já preparem a resposta forte a ser dada de nossa parte para desmoralizá-los totalmente na semana seguinte. Inclusive enviarei nossa resposta a João Roberto Marinho.”
A troca de e-mails se encerra algumas mensagens adiante, com uma conclamação do chefe:
“Precisamos partir para uma guerra de guerrilha!” O plano, contudo, acabou não indo adiante. Não se sabe que caminho ele tomou dentro da empresa, mas de toda forma o tal dossiê nunca chegou à equipe da revista Época, segundo seu diretor de redação, o jornalista João Gabriel de  Lima. As informações que surgiam na imprensa nesse período tinham, na verdade, o efeito inverso ao que Marcelo desejava. Se havia “guerra de guerrilha”, ele estava perdendo. Em junho de 2015, o BNDES tornou públicos os dados de financiamentos concedidos a obras brasileiras no exterior. Até então, os números eram mantidos em sigilo. Soube-se aí que, dos 11,9 bilhões de dólares liberados pelo banco entre 2007 e 2015, 8 bilhões tinham ido para a Odebrecht. Só para o porto de Mariel, em Cuba, o empréstimo alcançava 680 milhões de dólares. A polêmica em torno dos dados recém-revelados tirou Marcelo do sério. “Estou irritado por estar na linha de fogo do debate político”, declarou, em meados de junho, durante um seminário do jornal Valor Econômico. “Não fizemos nada de ilegal ou imoral.” Foi a última vez em que ele participou de um evento público.
O próprio Marcelo Odebrecht abriu a porta de casa, em São Paulo, para os agentes da Polícia Federal, na manhã do dia 19 de junho de 2015, uma sexta-feira. Usava bermuda e tênis e se preparava para os exercícios matinais. Ao entender do que se tratava, balbuciou uma ironia, algo como “vocês demoraram”, e os deixou entrar. Naquele momento, outros 220 agentes estavam espalhados pelo Brasil cumprindo 38 mandados de busca e apreensão e outros oito de prisão. No pacote também estavam incluídos escritórios e executivos da Andrade Gutierrez, mas o foco principal era mesmo a Odebrecht. Entre os que foram abordados pelos policiais, houve quem tentasse fugir, quem chorasse ou se desesperasse. Marcelo manteve a fleuma.
Em meio às buscas em sua casa, quando um dos agentes quis mostrar um documento ao delegado e o chamou – “Chefe!” –, o príncipe dos empreiteiros foi o primeiro a responder. Só depois notou que não era com ele.
Diante do fato consumado, tentou ter o controle da situação. Antes ainda de ser transferido para Curitiba, no auditório da superintendência da PF em São Paulo, na companhia dos demais detidos, Marcelo já lia o despacho que determinou sua prisão. Quando advogada Dora Cavalcanti chegou, ele mal esperou que ela sentasse ao seu lado para começar a apontar problemas no documento.
Na cadeia, isolado, procurou manter a rotina regrada e os mesmos hábitos de antes. Acordava ainda de madrugada para se exercitar. Fazia abdominais, barra e até mesmo corria, quando as grades entre a sua cela e o espaço comum eram abertas, oferecendo alguns poucos metros a mais para a prática do cooper. Todo dia anotava os exercícios feitos e o número de vezes que os praticara. Em julho de 2015, quando foi transferido para o Complexo Médico-Penal, na região metropolitana de Curitiba, passou a ter acesso a um espaço maior para o banho de sol e tentava atrair outros presos, como o ex-ministro José Dirceu, para a atividade física. Na maior parte do tempo, porém, ficava sozinho. Lia os próprios processos e fazia anotações para a defesa, que transmitia, durante a visita diária, a uma advogada destacada especialmente para isso.
Apesar da combatividade dos advogados, aos poucos foi ficando claro para a defesa da Odebrecht que não seria fácil tirar da cadeia Marcelo e seus executivos. O primeiro pedido de libertação, feito logo após a prisão, foi considerado sem efeito em poucos dias, porque um agente da carceragem de Curitiba apreendeu um bilhete de Marcelo para seus advogados em que se lia, entre outras instruções: “Destruir e-mails sondas.” Embora a Odebrecht sustentasse que o termo “destruir” significava apenas tentar desconstruir a validade de um e-mail como prova, o juiz Sergio Moro considerou que ali havia indícios de que o empreiteiro pretendia obstruir a investigação.
Decretou nova prisão preventiva, e a defesa teve de recomeçar seu trabalho, redigindo um novo pedido de habeas corpus. Só em outubro de 2015 o Tribunal Regional Federal de Porto Alegre se manifestou sobre o caso, negando o recurso.
A defesa recorreu, desta vez ao Superior Tribunal de Justiça, e por um tempo acreditou-se que lá o pedido seria atendido. Meses depois, o então senador Delcídio do Amaral diria, em sua delação
premiada, que naquele período a presidente Dilma Rousseff havia autorizado uma negociação heterodoxa entre o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, e o presidente do STJ, Francisco Falcão.
De acordo com Delcídio, Falcão teria garantido a Cardozo que, se a presidente nomeasse um aliado seu para a vaga aberta na câmara que julgaria o recurso de Marcelo, ele conseguiria os votos suficientes para soltar o empresário. O apadrinhado, Marcelo Navarro Dantas, foi nomeado e votou pela libertação, mas os outros ministros foram contra. Cardozo, Dilma e a própria empreiteira sempre contestaram veementemente as afirmações de Delcídio. Na bolsa de apostas sobre o que constará da delação da Odebrecht, o esclarecimento sobre esse episódio é dado como um dos mais prováveis “anexos de Marcelo”.

Semanas depois da primeira derrota dos recursos da Odebrecht, no final de setembro de 2015,
Emílio desembarcou em Curitiba para visitar o filho. Como não estava na lista de pessoas autorizadas a ingressar no Complexo Médico-Penal, recebeu uma autorização especial, por “razões humanitárias”, para entrar no presídio. Depois que Marcelo foi preso, Emílio, com 70 anos, voltou ao dia a dia do grupo. Estava preocupado com o futuro dos negócios e também com o destino do filho – cada vez mais parecia que Marcelo não teria data para sair dali. Com jeito, sugeriu começarem algum tipo de negociação com o Ministério Público. Naquele momento, porém, o príncipe ainda não admitia ouvir falar no assunto, e continuou resistindo mesmo quando, dias depois, o mesmo pedido foi feito pela mulher e pelas filhas. Depois daquela visita, pai e filho não se viram mais.
“O senhor prefere falar ou o senhor prefere ficar em silêncio?” O juiz Sergio Moro, da 13a Vara Federal de Curitiba, abriu com essa pergunta o primeiro depoimento de Marcelo Odebrecht depois de preso.
Era 30 de outubro de 2015. Depois de 133 dias na cadeia usando apenas moletons e tênis, o empreiteiro voltara a vestir terno. Estava cercado de advogados. Não parecia cansado nem abatido.
“Peço respeitosamente para fazer algumas considerações iniciais”, disse. Moro aquiesceu. “Eu queria reiterar que minha intenção é e sempre foi de colaborar com as investigações.” O desabafo seria longo. “Em retribuição a isso, o que eu vi? Prisões preventivas, uma sobre outra, buscas e apreensões, interceptações telefônicas e telemáticas; inclusive de minha família. Inclusive de minhas filhas menores de idade. Quebra de sigilo fiscal e bancário. Bloqueio de bens…”
Marcelo balançava a cabeça em tom de reprovação. O juiz interrompeu. “As suas filhas não foram interceptadas, sr. Marcelo.” O empresário parecia ter decorado sua fala, e não queria ter de fazer nenhum detour. “Se me permite, Vossa Excelência pode depois esclarecer isso…” Moro insistiu: “O senhor disse que foi e eu estou esclarecendo.” Marcelo continuou a falar. “Todas as medidas extraordinárias que causam transtorno enorme – não é só à minha família, mas a várias pessoas –, elas foram tomadas em cima de especulações que talvez não tivessem prevalecido se os investigadores tivessem se dado ao trabalho de me ouvir. Tá? Olha, mesmo após a extensa devassa que foi feita na minha residência, nas empresas Odebrecht, absolutamente nada ficou provado contra mim. Não surgiu qualquer evidência que justificasse a minha prisão preventiva.”
Na prática, o mais importante empreiteiro do país estava dizendo a Sergio Moro que suas decisões eram infundadas e despropositadas. O juiz voltou à carga. “Essas contas no exterior que o mp afirma que seriam da Odebrecht?” Marcelo resistia. “Vossa Excelência, se o senhor permitir, é importante para mim fazer essas considerações iniciais.” Durante dezessete minutos, Marcelo espinafrou o trabalho do juiz. Por se considerar alvo de “publicidade opressiva” – nome que os teóricos do direito dão à espetacularização dos processos criminais pela mídia –, ele disse que preferia entregar sua defesa por escrito. “Mas não deixarei de forma alguma de esclarecer a todos os questionamentos contidos na minha denúncia. Tá? Por isso, para melhor expor a minha defesa, eu estou encaminhando por escrito, de forma detalhada, mas de-ta-lha-da, resposta a todos, absolutamente todos os fatos que me são imputados, inclusive em relação às anotações pessoais, para que não fique nenhuma dúvida sobre a minha inocência. Certo?”
O texto de dezenove páginas, escrito em forma de perguntas e respostas formuladas pelo próprio Marcelo, na verdade não respondia às indagações de Moro. Tampouco citava as contas que, segundo os ex-funcionários da Petrobras Pedro Barusco e Paulo Roberto Costa, haviam sido usadas pela Odebrecht para pagar mais de 16 milhões de dólares em propinas.
Além de não confessar e de não delatar, Marcelo também se recusava a abandonar o comando do grupo Odebrecht. Os outros quatro executivos da organização que haviam sido presos com ele tinham pedido demissão imediatamente. O empreiteiro, não. Embora em seu lugar estivesse um executivo experiente – o ex-diretor jurídico Newton de Souza –, Marcelo ainda era o presidente.
Assim, por seis meses, o líder maior da Organização Odebrecht foi um hóspede do sistema carcerário.

Foi só em dezembro de 2015, quando o STJ negou o último recurso da Odebrecht, que Marcelo afinal renunciou ao cargo. A percepção de que o empreiteiro e seus homens de confiança passariam o Natal e o Ano-Novo na cadeia baixou o moral da família e da empresa. Quando 2016 começou, a necessidade de um acordo com o Ministério Público tornou-se evidente para todos – ou quase todos.
Os advogados da Odebrecht se reuniam com os procuradores e sondavam o terreno, mas as conversas não andavam. Faltava convencer o chefe da organização. Foi só quando ficou claro que os detalhes de funcionamento do “departamento de propina” haviam sido descobertos que Marcelo Odebrecht afinal cedeu às pressões da família, que o queria ver em liberdade, e dos executivos da empresa, que procuravam salvá-la da bancarrota.
O frio daquela manhã curitibana, no final de setembro, parecia ainda pior na carceragem da Polícia Federal, com suas paredes de concreto aparente. Mesmo assim Marcelo Odebrecht, normalmente quieto e monossilábico, estava falante e animado. Aquele era o dia marcado para a sua terceira reunião com a força-tarefa da Lava Jato. Ainda não eram os depoimentos formais da delação. Os procuradores preferiam chamar de entrevista.
Meia dúzia de procuradores de Curitiba e de Brasília, assessores diretos do procurador-geral, Rodrigo Janot, e os advogados da Odebrecht ocupavam uma sala reservada especialmente para a ocasião, com 25 cadeiras azuis organizadas como numa sala de aula. Passariam horas ouvindo, do próprio empreiteiro, as histórias que Marcelo estava disposto a contar para selar o acordo de delação premiada.
O que se negociava, naquela sala, eram os detalhes do conteúdo da delação e um acordo de leniência entre a Odebrecht e o Estado brasileiro, representado pelo Ministério Público. Desde que a empresa se declarara disposta a uma “colaboração definitiva”, cinco meses antes, vários impasses já haviam sido superados. Emílio Odebrecht, que de início tentara ficar de fora do acordo, acabou aceitando falar, e já dera a sua própria entrevista ao mp. A intenção da empresa de tentar classificar todos os pagamentos a políticos como mero “caixa dois” – e não como propina em troca de favores e contratos –, repelida desde o início pelos procuradores, também já fora superada. Marcelo Odebrecht também já havia entendido que não poderá voltar mais a trabalhar no grupo que presidiu. 
Aos poucos, aparavam-se as arestas. Faltava, porém, discutir temas cruciais para o acordo, como o valor da multa a ser paga pela empreiteira – o Ministério Público quer mais de 5 bilhões de reais; advogados de defesa acham que conseguem fechar por 3,5 bilhões – e a data de libertação de Marcelo Odebrecht – o empreiteiro gostaria de ser solto imediatamente, mas os procuradores preferem mantê-lo preso até que se completem três anos de cadeia, em junho de 2018. Apesar das indefinições, praticamente todos os envolvidos consideram a delação da Odebrecht um passo sem volta. Havia, de toda forma, algo muito particular naquela negociação a portas fechadas, em Curitiba. Em barganhas anteriores, do mesmo tipo mas com outras empresas, era comum que policiais federais fossem chamados para ajudar, já que conheciam as investigações por dentro e em detalhes – logo,  podiam auxiliar nos interrogatórios e na pressão exercida sobre os candidatos a delatores. Não foi o que aconteceu no caso da Odebrecht. As conversas se deram na sede da Polícia Federal, é verdade, e delas participava um detento sob custódia da PF, mas os policiais ficaram do lado de fora da sala.
Desde o início, os federais haviam sido resistentes a um acordo com a empreiteira. Achavam que, numa troca de pena por informações, só a Odebrecht tinha a ganhar, já que acreditavam ser capazes de descobrir, por conta própria, tudo o que a empresa poderia contar. Queriam também ver o empreiteiro o maior tempo possível atrás das grades: consideravam simbólico e importante que Marcelo Odebrecht cumprisse toda a pena. Ciente do “ânimo da tropa”, o procurador-geral achou melhor não incluí-los nas conversas. Janot deu ordem expressa aos procuradores para que não contassem nada aos policiais. Marcelo, é claro, também foi instruído a manter segredo sobre o que estava sendo dito e negociado. Ele fazia questão de deixar isso claro sempre que um agente ou delegado tentava obter alguma informação dele a esse respeito: “Desculpe, doutor, mas eu assinei um acordo de confidencialidade; não posso comentar”, dizia, sem esconder certo prazer com a situação.
Era como se o empreiteiro, depois de tanto tempo isolado não apenas do mundo, mas também da própria Odebrecht, tivesse retomado certo protagonismo. Depois de meses de silêncio e mau humor, ele parecia circular mais leve pela carceragem. Até antigas rusgas com o doleiro Alberto Youssef, primeiro preso na Operação Lava Jato, primeiro delator e dono do único aparelho de tevê de sua ala, haviam diminuído. De vez em quando os dois assistiam juntos ao Jornal Nacional.
O ânimo de Marcelo Odebrecht no dia da reunião com os procuradores contrastava com o baque que sua empresa havia sofrido – mais um – na véspera. Na segunda-feira, dia 26 de setembro, a Polícia Federal realizara nova operação. Batizada de “Omertà”, tinha como alvo principal Antonio Palocci, ex-ministro da Fazenda sob Lula e chefe da Casa Civil no governo Dilma – era ele o “Italiano” das planilhas apreendidas com a secretária Maria Lúcia Tavares. A denúncia apresentada ao juiz Sergio Moro para justificar aquela fase, quase toda redigida pelos delegados da PF, sustentava que Palocci agia como intermediário dos interesses da Odebrecht. Em troca, dizia o documento, o ex-ministro havia recebido 128 milhões de reais do caixa de propinas da empresa, e distribuíra parte do dinheiro ao PT. Com 193 páginas, a denúncia expunha, na íntegra, dezenas de e-mails, codinomes e um número impressionante de detalhes do que descrevia como “a maior máquina de lavagem de dinheiro que a Lava Jato já descortinou” e um “esquema de produção de corrupção em escala global”.

Entre as mensagens apreendidas, Marcelo aparece dando instruções sobre pagamentos de propina e oferece relatos de suas reuniões com o primeiro escalão dos governos Dilma e Lula. Num dos emails, comenta uma derrota da Odebrecht: a Justiça havia frustrado a pretensão da empresa de obter determinadas isenções de impostos. Na mesma mensagem, contudo, o príncipe comunica a seus subordinados que o ex-ministro Palocci havia lhe pedido uma lista de providências que o governo pudesse tomar para compensar as perdas da Odebrecht com o revés judicial. O empreiteiro encarrega executivos de preparar a tal lista de compensações e comemora: “Vamos ganhar mais agora do que se tivéssemos ganhado” na Justiça. 
Nos dias que se seguiram à revelação dessa conversa, Marcelo Odebrecht não se queixou da exibição de seus e-mails. Tampouco reclamou da operação na entrevista com os procuradores, que o descreveram como tranquilo e resignado. A Odebrecht também assistiu à Omertà sem dizer nada.
Nenhuma nota oficial foi emitida, nenhuma declaração pública foi divulgada. A empresa parecia, finalmente, ter aprendido qual era o lado forte daquela negociação.
Até o final de setembro, ninguém se arriscava a estimar uma data para o fechamento de um acordo formal entre a Odebrecht e a Lava Jato. Havia, contudo, a expectativa de que o processo caminhasse com rapidez. Uma vez concluída a lista de temas a serem esclarecidos, ainda será necessário enviá-la ao Supremo Tribunal Federal para ser homologada pelo ministro Teori Zavascki, responsável pelos processos da Lava Jato. Só então começarão a ser tomados os depoimentos oficiais de todos os delatores, incluindo vários executivos da empresa. Só então se poderá saber quando Marcelo Odebrecht sairá da cadeia e só então será possível estimar, com um pouco mais de segurança, quais são as chances de recuperação do grupo Odebrecht.
De uma coisa, apenas, já se tem certeza em Curitiba. Ao terminar, o acordo terá produzido o maior inventário da corrupção já realizado na história do Brasil. Não é o destino para o qual o príncipe foi talhado. Mas não deixa de ser um feito.


Um comentário:

  1. Boa tarde,

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    lembranças

    Mercelo Silveira

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