A decisão da próxima quarta-feira nada tem a ver com
diferenças ideológicas
Carmen Lúcia, ministra do STF, informando como responde à
pressão dos políticos para que ela ajude a derrubar a prisão em segunda
instância. No sábado 10 ela recebeu o presidente Michel Temer, investigado no
STF, em sua casa brasiliense para uma conversa despressurizada
Cármen Lúcia recebe o presidente Michel Temer em sua casa
(Pedro Ladeira/Folhapress)
Em pronunciamento hoje na televisão, a presidente do
Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, disse algumas palavras bonitas.
Geralmente discursos políticos são pouco interessantes e não tenho paciência
para eles. Mas este vale o comentário.
A ministra disse, entre outras coisas, que:
* (É preciso ter) “serenidade para que as diferenças
ideológicas não sejam fonte de desordem social”
* “O fortalecimento da democracia brasileira depende da
coesão cívica para a convivência tranquila de todos. Há que serem respeitadas
opiniões diferentes”
* “Diferenças ideológicas não podem ser inimizadas
sociais. A liberdade democrática há de ser exercida sempre com respeito ao
outro”
* “A efetividade dos direitos conquistados pelos cidadãos
brasileiros exige garantia de liberdade para exposição de ideias e posições
plurais, algumas mesmo contrárias. Repito: há que se respeitar opiniões
diferentes”
O pano de fundo, óbvio, é a decisão de quarta-feira sobre
o habeas corpus do ex-presidente Lula (PT). Os onze juízes do STF decidirão se
condenados em segunda instância (ou seja, por um colegiado de juízes) devem
passar a cumprir suas sentenças imediatamente ou se devem esperar o “trânsito
em julgado” – ou seja, a terceira e quarta instâncias (o Superior Tribunal de
Justiça e o Supremo Tribunal Federal). É possível que a decisão seja
abrangente, referindo-se a todos os casos, ou específica, apenas para o de
Lula. Impossível saber, por enquanto.
Antes de mais nada, vale lembrar que o STF é um antro de
leniência com corruptos. Quem tem foro privilegiado – como ministros e
parlamentares – é investigado e julgado pelo Supremo. Com raríssimas exceções,
os onze juízes sentam em cima dos processos até que eles percam a validade. (É
com essa pitada de sal que se deve adocicar os discursos indignados de Luís
Roberto Barroso contra pilantras.)
Bem, Cármen Lúcia refere-se a ideologia e “opiniões
diferentes”. Mas não é isso que estará em jogo na quarta-feira, nem na atuação
do STF com relação a casos de corrupção. “Ideologias” são sistemas duradouros
de crenças que indicam ações a serem tomadas em uma série de circunstâncias
políticas, segundo a definição da cientista política Kathleen Bawn. Ainda de
acordo com ela, ideologia é muito importante na política porque estimula as
pessoas a se importarem com assuntos sobre os quais elas não têm interesse
direto (direct stake – “interesse” não é a tradução ideal, mas enfim).
O problema é que a condenação após segunda instância não
seria, de acordo com a definição de Bawn, uma questão ideológica. Não há
sistemas de crenças legítimos que possam ser favoráveis ao “trânsito em
julgado”, pois não respeitam, na prática, a igualdade perante a lei. Tais
sistemas de crenças existem, é claro. São compartilhados por vários advogados
criminalistas e jornalistas. Mas não têm espaço em uma democracia republicana,
na qual a lei vale igualmente para todos. É inacreditável ainda ter que
escrever isso em 2018.
Não quero dizer, com isso, que pessoas favoráveis à
execução da pena após a segunda instância sejam incríveis. Deltan Dallagnol
está fazendo greve de fome e Marcelo Bretas reza mais do que são-paulino em
clássico. Ambos recebem auxílio-moradia. É um benefício legal, consagrado em
normas jurídicas, dado aos agentes da Justiça sejam eles tementes a Deus ou ao
Fagner. É, também, contra o espírito de uma democracia republicana.
Auxílio-moradia para quem tem residência onde trabalha não faz sentido algum. É
o senso comum – nesse caso, corretíssimo – ignorado quando há skin in the game.
Voltando a Cármen Lúcia: não são, ministra, divergências
ideológicas que estarão em jogo na quarta. Isso se resolve nas urnas, no
Twitter, no Facebook, nos almoços de domingo. É algo bem mais profundo. É o
direito que todos nós temos de sofrer igualmente as consequências da lei. Lula,
Temer, Aécio etc. não são especiais porque exercem (ou exerceram) cargos
políticos. Quem tem dinheiro e paciência para esperar o “trânsito em julgado”
até que seu crime prescreva tem, na verdade, um privilégio ilegal, imoral e
contra o espírito dos belos artigos da Constituição de 1988. Os onze juízes do
Supremo Tribunal Federal têm oportunidade inédita para justificar os cargos que
ocupam. Podem livrar Lula e os demais. É prerrogativa deles.
Concordo.
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