Ayres Britto desmonta a armação de Gilmar e Temer para “anistiar” o caixa dois
Ayres Britto desmonta a armação de Gilmar e Temer para
“anistiar” o caixa dois. O ex-presidente do STF diz para Ediardo bresciani, O Globo, que a "solução" é inconstitucional e o STF vai derrubar, diz Ayres Britto
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O ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE) Carlos Ayres Britto defendeu em entrevista ao
Globo que caixa dois é um “atentado à Constituição” e que a discussão sobre uma
anistia é “inconcebível” pela carta-magna. Ayres Britto destacou que o
princípio constitucional da igualdade perante a lei precisa ser aplicado neste
caso e que uma relativização não é possível porque a prática subverte o
princípio da paridade de armas nas disputas eleitorais. Disse também ser preciso
fazer uma “ginástica mental” para distinguir caixa dois de corrupção e
ressaltou que o instrumento da anistia não foi concebido para que os agentes
públicos se perdoem por terem descumprido as regras estabelecidas pelo próprio
Estado. Ayres Britto presidiu o Supremo durante o julgamento do mensalão.
Qual a posição do senhor sobre esse debate recente em
relação ao caixa dois?
É preciso conferir plenitude de sentido ao princípio
republicano de que todos são iguais perante a lei, o que implica estender a
ideia de República aos campos de incidência das leis penais e eleitorais,
tradicionais biombos dos moradores do andar de cima da sociedade brasileira. A
interpretação dos institutos jurídicos, com o caixa dois no meio, tem de se
fazer na perspectiva do fortalecimento do princípio republicano e não do seu
enfraquecimento. Se o princípio republicano não se estender à lei eleitoral e à
lei penal não é República, mas um simulacro, uma República incipiente, ainda
adolescente. Daí a fundamentalidade histórica do mensalão, porque esse
princípio alcançou finalmente a lei penal e agora está alcançando a lei
eleitoral.
É possível relativizar o caixa dois?
Tenho uma opinião nada complacente com o caixa dois desde
o meu tempo de presidente do TSE. Primeiro, a legislação eleitoral considera o
caixa dois como falsidade ideológica, e, segundo, quando o caixa dois provém de
dinheiro de alguma forma subtraída do erário, direta ou indiretamente, é, no
mínimo, um peculato. É um tema que não tem de minha parte nenhuma condescendência
porque ele desequilibra o jogo eleitoral e implica parceria espúria do poder
econômico e do poder político. Não tenho, quanto ao caixa dois, opinião que não
seja para incriminá-lo. Sei que estamos atravessando uma fase em que algumas
pessoas importantes, inclusive autoridades, veem o caixa dois por um prisma
mais relativizado quanto a sua natureza, o que por nenhum modo, a meu sentir, é
justificado. Claro que se pode dizer que sempre foi assim, que é tradicional.
Eu não aceito isso. Nunca tratei como uma coisa menor. Sempre tratei como um
meio, um expediente, uma manobra, um recurso espúrio. Ofende o código penal, a
lei eleitoral e o princípio republicano de equilíbrio de forças na eleição.
Sempre vi o processo eleitoral como um concurso público heterodoxo. É uma
disputa por um cargo público, como todo concurso, e exige igualdade entre os
concorrentes. Aí vem o caixa dois e desequilibra tudo em favor dos candidatos
que fazem uso dele, apelando ao poder econômico com a mais deletéria das
parcerias.
Um argumento que tem sido usado é de que como o
adversário faz, também tenho de fazer. É justificável?
Não se justifica isso, porque você nivela todos pelo
comportamento eticamente espúrio e juridicamente delituoso, em última análise.
Não aproveita à classe politica o argumento da tradicionalidade do uso. No
jargão eleitoral, a gente fala de um princípio de paridade de armas e o caixa
dois desequilibra tudo. A gente sabe que o poder econômico não investe seu
capital na candidatura de fulano, beltrano ou sicrano se não na perspectiva do
retorno, e esse retorno sempre se faz às custas do patrimônio publico, do
erário, vilipendiando licitações, superfaturando preços e adulterando
contratos. Não tenho como condescender.
Dá para separar o que é caixa dois do que é corrupção?
Para fazer essa distinção entre o que é corrupção e o que
é caixa dois é preciso uma ginástica mental muito grande. Eu não faria
distinção não. Eu diria que o caixa dois é um recurso eticamente censurável e
juridicamente ilícito. No mínimo cai naquela legislação que considera falsidade
ideológica, quando não peculato, corrupção, prevaricação e outras figuras
penais clássicas e típicas.
Ou seja, é também um crime.
Eu sempre vi assim. Me lembro que quando do mensalão em
determinado momento do meu voto eu disse: caixa dois com dinheiro público é
peculato. Nada do que estou dizendo é uma teoria de última hora, eu já dizia
essas coisas e olha aí o resultado. E mesmo a doação legal eu já observava na
Constituição que o texto era velho e precisava de um novo par de olhos e isso
chegou ao Supremo e se percebeu que não havia como continuar com a influência
do poder econômico. O poder econômico não tem como participar do processo
eleitoral. E em matéria de caixa dois, é um atentado à Constituição e ao Código
Eleitoral. É uma desfaçatez, que não se relativiza e não se depura pela
invocação da tradicionalidade do uso.
Essa movimentação mais recente tem como base a decisão do
STF que abriu a possibilidade de punir também o caixa um de acordo com a
origem, o senhor concorda com essa tese?
Pode haver o caixa um como uma forma apenas mais sutil e
mais sofisticada de lavagem de dinheiro. Pode sim configurar. É preciso apurar
para ver se não foi isso exatamente que se sucedeu.
De que forma o senhor enxerga o debate sobre uma anistia
ao caixa dois?
A Constituição não concebeu o instituto da anistia em
matéria eleitoral, para começar. Não tem esse alcance. Quando o candidato já é
um recandidato, sendo então um agente público, e continua insistindo no caixa
dois, aí um novo impedimento absoluto surge para aplicar o instituto jurídico
da anistia. Porque o ocupante de cargo público é a face visível do poder, a
encarnação do poder, e quem encarna a face do poder é inanistiável, porque é o
próprio estado esculpido e encarnado.
Não existe a figura da autoanistia. O instituto da
anistia não foi concebido com o intuito de auto perdão. Os membros do poder são
o próprio poder. O Estado não pode perdoar a si mesmo, é inconcebível, um
disparate, um contrassenso, uma teratologia. É a negação do estado de direito a
autoanistia, porque o estado de direito é o estado que respeita o direito por
ele mesmo criado, aí vem o estado, por seus agentes, desrespeita o direito
criado por ele e se auto perdoa em seguida. Isso é absolutamente inconcebível.
Não existe.
Uma anistia nesse formato seria algo que o Judiciário
deveria barrar?
O instituto da anistia não foi concebido para favorecer
membros do poder estatal. É o caso. Todos esses agentes, membros do poder, são
o próprio Estado em ação. A anistia não foi concebida para perdoar o estado que
negou um direito por ele mesmo criado porque isso seria negação do estado de
direito. Então, os membros do poder são inanistiável por definição, por
natureza. E isso terá de ser observado.
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