A maior vitória do ministro que se promoveu a Juiz dos
Juízes pode ter sido também a última
Uma imensidão de brasileiros descobriu na semana passada
que o Tribunal Superior Eleitoral é presidido por um ministro da defesa de réus
soterrados pela avalanche de provas do crime. Quem acompanha a trajetória de
Gilmar Mendes sabe disso pelo menos desde 2008, quando esse mato-grossense de
Diamantino assumiu a presidência do Supremo Tribunal Federal — e passou a
mostrar que o professor de Direito Constitucional era a fachada que camuflava
um doutor em absolvição de culpados.
Em 27 de agosto de 2009, por exemplo, Gilmar conseguiu
arquivar “por falta de provas” a denúncia que identificava Antonio Palocci como
o mentor da violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo Costa, que
testemunhara as frequentes aparições do ainda ministro da Fazenda na
suspeitíssima “República de Ribeirão Preto”. Para inventar o estupro
encomendado sem mandante, valeu-se do duplo papel de presidente da corte e
relator do caso.
O relator negou-se a enxergar a catarata de evidências. O
presidente foi o primeiro a votar pelo sepultamento da bandalheira. A mentira
venceu por 5 a 4 porque Gilmar, como reafirma o vídeo abaixo, não viu nada de
mais. Talvez aceitasse a denúncia se Palocci fosse pessoalmente à agência da
CEF, obrigasse o gerente a mostrar-lhe a conta e convocasse uma entrevista
coletiva para confessar o que fizera. Como não agiu assim, sobrou para o
caseiro.
Por ter contado a verdade, Francenildo perdeu o emprego,
o sossego, a mulher e a chance de conseguir trabalho fixo em Brasília. O
culpado ficou dois meses deprimido com a perda do emprego, elegeu-se deputado
federal, coordenou a campanha de Dilma Rousseff, virou chefe da Casa Civil,
teve de cair fora do primeiro escalão por ter enriquecido como facilitador de
negociatas disfarçado de “consultor”, voltou ao palco para ajudar a candidata à
reeleição e acabou no pântano drenado pela Lava Jato.
Preso em Curitiba desde 26 de setembro de 2016, Palocci
tentou recentemente escapar pela trilha que começa na Segunda Turma do STF. O
malogro da tentativa de ser resgatado da cela pela trinca formada por Gilmar,
Lewandowski e Toffoli convenceu o ex-ministro a buscar um acordo com o
Ministério Público Federal. No momento, o Italiano da Odebrecht ensaia a
delação premiada que assombra as madrugadas de Lula. Promete fazer revelações
que comprometem banqueiros e empresários. Tomara que não se esqueça do Poder Judiciário.
Em dezembro de 2009, enquanto Palocci saboreava o
regresso à Câmara dos Deputados, Gilmar valeu-se de um habeas corpus para
devolver à liberdade o médico Roger Abdelmassih, engaiolado desde agosto pela
autoria de pelo menos 56 crimes sexuais contra 37 pacientes e condenado a 278
anos de prisão. Convencido de que o popstar da inseminação artificial já não
ameaçava ninguém por ter sido proibido de exercer a profissão, decidiu que
quatro meses de confinamento estavam de bom tamanho.
Em 2011, a polícia comunicou à Justiça que Abdelmassih
havia regularizado o passaporte e pediu autorização ao STF para prendê-lo antes
que fugisse. De novo, Gilmar garantiu-lhe o direito de ir e vir, que usou em
2011 para ir embora do Brasil e não voltar. Foi recapturado três anos mais
tarde, quando saboreava a vida mansa no Paraguai. Hoje é um dos hóspedes do
presídio de Tremembé.
Nos anos seguintes, a agenda sempre sobrecarregada de
Gilmar Mendes não deixou de abrir espaço para atendimentos de emergência a
amigos do Estado natal, sobretudo aos que reconhecem e festejam a influência do
ministro. Em 10 de maio de 2013, ao receber a medalha da Ordem do Mérito de
Mato Grosso, o homenageado incluiu nesse grupo de elite o governador Silval
Barbosa: “Somos amigos há muito anos, sempre tivemos conversas proveitosas”,
diz Gilmar no vídeo abaixo. Uma dessas conversas proveitosas ocorreria um ano
mais tarde, quando a residência de Silval foi alvo de um mandado de busca e
apreensão executado pela Polícia Federal.
Ao vasculharem a casa do político investigado no Supremo
Tribunal Federal por corrupção, os agentes da PF encontraram uma pistola com
registro vencido. Depois de pagar a fiança fixada em R$ 100 mil, Silval teve
prontamente atendido o pedido de socorro a Gilmar, como atesta o áudio abaixo.
— Governador, que confusão é essa!!!??? — ouve-se a voz
de Gilmar Mendes num tom que desenha um buquê de pontos de exclamação e
interrogação.
— Barbaridade, ministro, isso é uma loucura! — ouve-se a
voz de Silval Barbosa num tom de quem faz o possível para simular espanto.
— Que coisa! Tô sabendo isso agora! — Gilmar continua
perplexo.
— É… é uma decisão aí do Toffoli — começa o cortejo de
palavras desconexas, frases truncadas e explicações incoerentes, interrompido a
cada meia dúzia de sílabas por vírgulas bêbadas e reticências que denunciam a
ausência de álibis. Entre um e outro hum-hum rosnado por Gilmar, o governador
menciona Blairo Maggi, uma delação premiada e denúncias envolvendo a campanha
eleitoral de 2010 que nem sabe direito quais são. Precisa conferir o processo.
— É uma loucura, viu? — recita com voz chorosa.
— Que loucura!, que loucura! — concorda Gilmar, antes de
avisar que o socorro está a caminho. — Eu vou ver. Vou agora para o TSE
conversar com o Toffoli.
O governador repete o falatório incongruente. O ministro
do STF reitera a promessa de ajuda:
— Eu vou lá e, se for o caso, depois a gente conversa —
combina Gilmar, que se despede com “um abraço de solidariedade”.
Silval pôde dormir em sossego enquanto desfrutou do foro
privilegiado.
Terminado o mandato, ficou exposto a instâncias do
Judiciário fora do alcance do nada santo protetor de corruptos. Em 17 de
setembro de 2015, depois de ficar foragido por dois dias para escapar da prisão
preventiva decretada pela juíza Selma Arruda, Silval entregou-se à Justiça.
Passados quase dois anos, continua engaiolado. Mas não parece figurar na agenda
de preocupações do especialista na absolvição de culpados.
Gilmar, que vive prometendo marcar encontros com “as
prisões alongadas ocorridas em Curitiba”, não deu as caras na cadeia que há
quase dois anos aloja Silval. Feroz inimigo de delações premiadas, decerto não
gostou de saber que o ex-governador negocia um acordo com a Justiça que o
obrigará a contar tudo o que sabe. A amizade entre essas duas celebridades
mato-grossenses pode estar perto do fim.
Como reiterou a entrevista publicada pela Folha nesta
segunda-feira, Gilmar vê no espelho uma figura onipotente, onisciente e
onipresente.
Mas mesmo quem pode muito não pode tudo. Já não pode, por
exemplo, livrar Aécio Neves da enrascada em que se meteu com a divulgação da
conversa telefônica em que tentou conseguir R$ 2 milhões de Joesley Batista — e
mostrou ao país que um ex-candidato à Presidência da República também sabe
falar um subdialeto de encabular o mais desbocado brigão de cortiço.
Até então, o senador mineiro figurou na lista VIP dos
clientes do ministro. Aos integrantes desse grupo é permitido até pedir que um
ministro do Supremo interfira em votações no Senado, como atesta a gravação
abaixo reproduzida, que registra o diálogo entre entre Gilmar e Aécio ocorrido
em 26 de abril deste ano. Ou pode, como fez Michel Temer, pedir ao presidente
do TSE que o absolva por excesso de provas.
Foi a maior vitória do Juiz dos Juízes. Talvez tenha sido
a última.
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