O longo voo 6237

O longo voo 6237

A ideia básica do ‘ato de repúdio’ não é intimidar a vítima circunstancial, embora isso também eventualmente aconteça, mas propagar uma onda de medo

Demétrio Magnoli, O Globo

‘Foram duas horas de gritos, xingamentos, palavras de ordem contra mim e contra a TV Globo. Não eram jovens militantes, eram homens e mulheres representantes partidários. Alguns já em seus cinquenta anos. Fui ameaçada, tive meu nome achincalhado e fui acusada de ter defendido posições que não defendo.”

No voo Avianca 6237, durante duas horas, Míriam Leitão tornou-se alvo da hostilidade organizada de grupo — no caso, de delegados do Congresso Nacional do PT. A aeronave converteu-se, assim, em mais um registro numa história secular.

O “ato de repúdio” — esse é o nome da coisa — não deve ser confundido com eventos randômicos de agressão politicamente motivada. É um mecanismo de ação política consagrado por regimes e partidos que exercitam, ou almejam, um poder absoluto.

Na Rússia Soviética dos anos 20 do século passado, o “ato de repúdio” acompanhou, como uma sombra, os passos de Trotsky, Zinoviev e outros bolcheviques da velha geração que articulavam movimentos de oposição a Stalin.

Desde 1992, a Rússia restaurou a antiga bandeira czarista e a aliança entre o Kremlin e a Igreja Ortodoxa que sustentava os imperadores e hoje sustenta Vladimir Putin — mas não esqueceu o “ato de repúdio”.

Alexei Navalny, líder de manifestações contra a corrupção governista, é ritualmente recebido nas estações de trem do interior por chusmas de militantes ultranacionalistas que, sob orientações de cima, lançam-lhe ovos e tomates.

O “ato de repúdio” sempre obedece a um gesto de comando do alto, mas nunca tem chancela oficial explícita, disfarçando-se de manifestação espontânea. Contudo, a simulação é deliberadamente farsesca.

Putin confraterniza com os chefes das gangues “patrióticas” que atacam Navalny, como fazia Stalin com os militantes comunistas encarregados de repudiar seus desafiantes. Ambos, porém, negam ligação direta com os episódios de baderna.

A ambiguidade proposital alcança um duplo objetivo: de um lado, preserva a imagem das autoridades ou dirigentes políticos que os instigam; de outro, veicula a eficaz mensagem de que a agressão parte de um temível aparato de poder.

O nazismo e os fascismos europeus conduziram, por meio de milícias semioficiais, incontáveis “atos de repúdio”, que se completavam com espancamentos ou a destruição de jornais, lojas ou residências.

Na China da Revolução Cultural, o ritual adquiriu feições de tortura de “inimigos do povo” em praça pública.

A ideia básica do “ato de repúdio” não é intimidar a vítima circunstancial, embora isso também eventualmente aconteça, mas propagar uma onda de medo: “você pode ser o próximo”. A finalidade é silenciar, genericamente, o adversário (real ou imaginário).

Seu emprego, na democracia, destina- se a suspender a crença de que a divergência faz parte do jogo político normal.

No voo 6237, a milícia de delegados petistas erguia uma paliçada em torno de seu partido, delimitando uma fronteira para a crítica.

A blogueira dissidente cubana Yoani Sánchez foi alvo de “atos de repúdio” em Feira de Santana, em 2013. Os bandos de militantes do PT e do PCdoB, narrou Yoani, “seguravam o mesmo documento, contendo um feixe de mentiras a meu respeito” e “repetiam um roteiro vulgar” de slogans gritados em coro “que mesmo em Cuba não mais são ditos”.

Não se deve equiparar a agressão verbal de indivíduos malcriados, como os que hostilizaram Guido Mantega, no saguão de um hospital, ou Chico Buarque, numa calçada, com o “ato de repúdio”. Os primeiros agem sós, no calor da hora, sob o impulso de seus desvios de caráter. O segundo é uma operação planejada, codificada e de natureza coletiva.

Os agressores de Míriam Leitão encontraram- na fortuitamente no voo 6237, mas agiram guiados por uma tradição política contra um alvo nomeado pelo próprio Lula em diversas ocasiões.

Cuba isto é, o castrismo — está na raiz da prática petista do “ato de repúdio”. Yoani tinha 5 anos, em 1980, durante a crise dos emigrados de Mariel, quando viu, casualmente, pela primeira vez, um “ato de repúdio” no qual “as pessoas berravam e cerravam os punhos à frente da porta de um vizinho”. Depois, ao longo do tempo, como transeunte, vítima ou jornalista, observou dezenas de outros.

Nas suas manifestações silenciosas, as Damas de Branco, parentes de presos políticos na Ilha, são invariavelmente circundadas por hordas de funcionários comunistas convocados para “atos de repúdio”.

A baderna de Feira de Santana foi articulada a partir de uma reunião na embaixada cubana, em Brasília, da qual participaram assessores parlamentares.

O “ato de repúdio” é uma encenação teatral. Os milicianos — funcionários ou militantes — representam o papel do “povo”. À vítima, cabe o papel involuntário de “inimigo do povo”.

A antropologia possui os instrumentos para decifrar os significados simbólicos embutidos na performance, enquanto a psicologia talvez seja capaz de esclarecer as recompensas emocionais obtidas pela horda de “repudiadores”. Mas, no plano político, o espetáculo do “ato de repúdio” ancora-se no lodo do totalitarismo.

Que ninguém se engane: o voo Avianca 6237 decolou cem anos atrás.


Demétrio Magnoli é sociólogo

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