É um despropósito um grupo político propor um
"julgamento paralelo" de um réu simplesmente porque não aceita outra
sentença que não seja a absolvição
27/12/2017 - 00h52min
DAVID COIMBRA
Aqui onde estou, Vermont, na fronteira com o Canadá, a
temperatura despenca velozmente para 28 graus Celsius abaixo de zero. Está tudo
branco, tudo coberto de neve e, se você não dispõe de roupas apropriadas, não
resiste cinco minutos na rua.
Lembro de quando cheguei a Boston pela primeira vez. Era
janeiro, e vim municiado com minhas roupas mais quentes, com as quais
enfrentava galhardamente o inverno gaúcho. Achava que bastaria, mas, assim que
botei o nariz para fora, meu Deus! Era um frio de doer e, quando digo doer, não
é força de expressão. Dói mesmo, como se você fosse espancado pelo ar que o
cerca.
Corri à primeira loja de roupas, comprei meias da espessura
do dedo indicador de Mike Tyson, botas Ugly tão impermeáveis quanto a zaga
formada por Kannemann e Geromel, um casaco forrado com penas de gansos
selvagens da Macedônia, gorro e luvas pesadas como a consciência dos políticos
que administraram o Brasil nos últimos 15 anos e, finalmente, a capitulação de
um gaúcho do IAPI: cuecões. Logo eu, que dizia não ser homem de usar cuecão.
Há uma história da qual gosto muito e que cito sempre: a da
criação de Frankenstein.
Um grupo de amigos estava reunido em uma casa nos Alpes
Suíços no verão de 1816. Era para ser uma temporada de diversões ao ar livre,
mas aquele ano ficou conhecido como "o ano sem verão" – não houve um
único dia de calor em todo o Hemisfério Norte.
Retidos em casa, espremidos em frente à lareira, os amigos
passavam o tempo se entorpecendo com láudano e propondo jogos uns aos outros. O
anfitrião era o poeta Lord Byron, um bonitão famoso por suas grandes conquistas
amorosas e sua pouca modéstia. Byron dizia que desde os tempos da Guerra de
Troia nenhum ser humano havia sido tão disputado quanto ele – ou seja, o rapaz
se achava a Helena de Esparta.
Motivado exatamente pelo ambiente sombrio daquele ano
atípico, Byron propôs aos convivas uma espécie de concurso para apurar quem
escreveria o melhor conto de terror. Ele mesmo pôs as mãos e a cabeça à obra e
teceu poemas e contos de vampiro que, mais tarde, inspirariam Bram Stoker a
conceber o romance Drácula.
Mas não foi Lord Byron quem venceu a disputa, e sim uma
jovenzinha de 18 anos que era a mulher do poeta Percy Shelley. A moça se
chamava Mary e, naqueles dias sinistros, montou, membro por membro, o
apavorante Frankenstein.
Nosso clima quente é capaz de produzir monstros bem mais
ameaçadores do que Drácula e Frankenstein.
Foi graças ao frio, portanto, que surgiram, quase ao mesmo
tempo, os dois principais personagens de histórias de terror do Ocidente:
Drácula e Frankenstein.
Conto e reconto essa história porque ela mostra como somos
influenciados pelo ambiente. O que me dá a tentação de especular que tipo de
povo seríamos se vivêssemos um terço do ano abaixo de zero.
O calor nos moldou. Dizemos de nós mesmos que somos
malemolentes. Ou, no original, "manemolentes", de "mané
mole". Mané que foi amolecido pelo calor, evidentemente.
Seríamos manemolentes e lenientes se precisássemos da ordem
para sobreviver? Uma sociedade que vive em clima inóspito depende de que todos
cumpram as regras. Alguém não faz a sua parte e outros morrem de frio.
Será a manemolência a explicação de brasileiros respeitáveis
pregarem o desrespeito à Justiça, como estão fazendo tantos no caso do
julgamento de Lula?
Tente esquecer que é Lula o protagonista, tente pensar apenas
no despropósito que é um grupo político propor um "julgamento
paralelo" de um réu simplesmente porque não aceita outra sentença que não
seja a absolvição. Não é a contestação a um juiz, é a sabotagem de todo um
sistema de Justiça, vindo da Polícia Federal e do Ministério Público, passando
pelo juiz, chegando aos desembargadores.
É a virada de mesa, é o vale-tudo, é o desprezo às
instituições por quem deveria defendê-las. É o fracasso da nação. Será fruto da
irresponsabilidade tropical? Nosso clima quente é capaz de produzir monstros
bem mais ameaçadores do que Drácula e Frankenstein.
Perfeito
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