Sem as formalidades institucionais da democracia sairemos
da crise para entrar no caosd.
A grande dúvida neste momento é como os principais atores
políticos vão lidar com a formalidade institucional da democracia. Escândalos
como o mensalão e o petrolão evidenciaram a enorme plasticidade das regras
jurídicas para servir como guarda-chuva das mesmas práticas que estão
destinadas a evitar. Basta citar o exemplo da lei de licitações, ao abrigo de
cuja formalidade se construiu um sistema paralelo de corrupção de obras
públicas.
O Estado no Brasil está sempre aumentando suas funções e
com elas, a normatização detalhada, que traz oportunidades inovadoras de
desvios, abusos, crimes e impunidade. Na conhecida expressão italiana, fatta la
legge, fatta la trampa, do latim inventa lege inventa fraude.
Por formalidade institucional da democracia refiro-me a
regras explícitas e princípios jurídicos consagrados destinados a proteger as
instituições da democracia, como o devido processo legal, normas que regulam o
processo eleitoral e direitos individuais, entre outros.
É o ordenamento jurídico dessa hierarquia que foi
convocado para processar e julgar crimes financeiros e delitos criminais numa
escala jamais imaginada. São matérias jurídicas de conteúdo político e atores
políticos acusados de delitos penais. São questões que dividem a Nação em
grandes segmentos sociais e políticos opostos e provocam uma situação de
legitimidade em questão e insegurança generalizada.
Nunca antes questões jurídicas ganharam audiência dessa
magnitude no Brasil. Os atores políticos envolvidos buscam a proteção de
advogados talentosos que se desdobram em interpretações “criativas”, argumentos
capciosos, e exploram os interstícios existentes entre as normas, esticando
ainda mais a tessitura normativa já esgarçada em favor de suas alegações.
O comportamento dos principais atores políticos em
relação ao formalismo institucional democrático varia, então, em função dos
objetivos políticos buscados.
A esquerda, que não valoriza nem acredita na democracia,
que chama depreciativamente de burguesa, busca substituí-la por uma dinâmica
política substantiva com práticas de democracia direta, de forma a pavimentar o
caminho para um governo de modelo socializante.
Apresenta-se como vítima dessa formalidade, contestando a
forma como é praticada. Os vilões são o Ministério Público, a Polícia Federal e
os juízes. Não vai ao ponto de contestar abertamente a validade dessa normatividade,
já que por ela será julgada. Denuncia os interesses que estariam por trás das
decisões de juízes, procuradores e delegados. A estratégia opõe o eventual
sucesso político ao insucesso judicial.
A direita (partidos convencionais) encara as formalidades
como ameaças. Ideologicamente sempre praticou a retórica da exaltação da
democracia e do Estado de Direito. Não podendo, pois, denunciar a
institucionalidade democrática nem apostar numa vitória na eleição
presidencial, sua aposta se reduz a esperar por uma negociação que encontre uma
saída para a perigosa situação de tantos legisladores e políticos.
No governo, as acusações e os processos que pesam sobre
alguns de seus ministros e ex-ministros não deixam alternativa senão a saída
negociada, se possível pelo impacto de uma bem-sucedida recuperação da
economia, já que, se forem aplicadas as regras da formalidade institucional,
sua carreira e até a liberdade pessoal estarão em alto risco.
Já os grupos corporativos do setor público continuarão a
fazer suas greves, apoiando a esquerda na pressão para ter Lula como candidato,
ou seja, a saída sem custos políticos: nem negociada, nem dependente de
absolvição, nem dependente da recuperação econômica do País.
O movimento cultural, em sua nova função de ponta de
lança das teses de esquerda, deverá manter sua estratégia de atrito e desgaste
do governo e da Lava Jato. Seus instrumentos de luta são os eventos
provocativos, a participação nas manifestações públicas, o uso de sua
popularidade em favor das “causas” e o encargo de dar repercussão e obter algum
respaldo internacional à contestação.
Sociologicamente, quem são os protagonistas dessa
contestação do formalismo institucional democrático?
As greves no setor privado passam despercebidas, são
resolvidas na esfera privada. As greves políticas são greves do serviço
público. Distúrbios são provocados por movimentos atrelados a partidos
políticos de esquerda. Ações de protesto são protagonizadas por artistas, intelectuais,
professores e universitários. Em resumo, a classe média.
É a classe média “de esquerda” que engrossa os movimentos
e manifestações. Mas a classe média não faz revolução, ela abastece a esquerda
com quadros políticos. São aqueles de quem se pode dizer: quem não é de
esquerda tem medo de parecer que não é.
São os companheiros de viagem, segundo a expressão de
Stalin. Parceiros de trajeto, não das lutas. Durante sua “fase esquerdista” são
mais de esquerda que os verdadeiros radicais; sentem-se empoderados e
superiores àqueles que alegam defender, os pobres, os sem “consciência
revolucionária”.
Entretanto, no projeto revolucionário das esquerdas,
salvo na fase de destruição da democracia, a classe média em nada ajuda e muito
atrapalha. Isso se deve ao fato de que a classe média de esquerda, ao
radicalizar, se compromete com projetos contrários aos seus interesses. A outra
classe média, a da direita, não tem esse problema. Está comprometida com seus
próprios interesses e valores, que correspondem aos da imensa maioria do povo.
Na realidade, as formalidades institucionais da
democracia são indispensáveis para civilizadamente dar solução aos conflitos
políticos. Não há substituto para elas. Sem elas sairemos da crise para entrar
no caos. É fácil exacerbar sentimentos, provocar ódio, radicalizar diferenças,
demonizar adversários. Difícil é administrar civilizadamente as consequências
dos conflitos tornados irreconciliáveis.
Análise inteligente e abrangente. O parágrafo final é a síntese irrefutável.
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