FOLHA DE SP - 03/03
Na era Lula, acadêmicos eram militantes partidários.
Agora, eles ingressam no ofício de marqueteiros
A campanha presidencial simulada de Lula dissolveu a delgada
película que ainda separava o pensamento acadêmico do imperativo partidário. O
ácido foi derramado pelo professor da UnB Luis Felipe Miguel, que criou uma
disciplina intitulada “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”.
Uma reclamação imprópria do ministro da Educação serviu
como pretexto para que dezenas de colegas emulassem o gesto de vandalismo
intelectual, ofertando disciplinas idênticas em departamentos da USP, Unicamp,
UFBA, Ufam e outras. Na “era Lula”, acostumamo-nos com a redução de acadêmicos
a militantes partidários. Agora, assistimos ao ingresso deles no ofício de
marqueteiros.
O vaga-lume ativa e desativa a bioluminescência segundo
suas necessidades biológicas. O PT acende e apaga o sinal de “golpe” de acordo
com as circunstâncias políticas. O luminoso foi ativado para reagrupar a
militância, na hora do colapso dilmista, mas desativado pouco depois, quando o
PT anunciou a retomada das alianças eleitorais com os partidos “golpistas” (o
MDB e as siglas do “centrão”). Hoje, pressiona-se novamente o interruptor para
denunciar o veto legal à candidatura de Lula. A ciência política tem algo a
dizer sobre as funções desempenhadas pela narrativa do golpe. Já os acadêmicos
que a reproduzem, aplicando-lhe um verniz de discurso científico, depredam a
instituição na qual trabalham.
Na UFBA, a disciplina decola no golpe do Estado Novo,
transita pelo golpe de 1964 e aterrissa no “golpe de 2016”, que abriria uma
etapa de “autoritarismo”. As leis de exceção, a proibição de partidos, a
cassação de parlamentares, as prisões políticas, a tortura, a censura, a
repressão a manifestações —nada disso aparece no “golpe de 2016”, que obedeceu
à letra da Constituição e procedeu segundo regras ditadas pelo STF. Por qual
motivo, além da fidelidade ao partido, a disciplina não contempla o “golpe de
1992” (ou seja, o processo de impeachment contra Collor)?
“O discurso da ‘imparcialidade’ é muitas vezes brandido
para inibir qualquer interpelação crítica do mundo”, alegou constrangedoramente
Felipe Miguel em defesa de sua obra de marketing fantasiada de disciplina
acadêmica. Ocorre que a noção de “imparcialidade”, tão cara ao direito, é
estranha à investigação científica. O discurso científico distingue-se do
discurso político-ideológico por rejeitar o finalismo: no campo da ciência, é
proibido fabricar uma conclusão prévia da qual escorrem as “provas”. A
disciplina dos neomarqueteiros não peca por “parcialidade”, mas por violar o
método científico.
A prevalência da esquerda nas faculdades de humanidades
nem sempre conduziu à dissolução do método científico. Os professores
socialistas ou comunistas do passado separavam sua militância partidária de seu
trabalho acadêmico, pois acreditavam que a transformação social não seria
produzida por eles, mas por uma revolução dos “de baixo”. A ascensão do PT
coincidiu com o descrédito da ideia revolucionária —eabriu caminho para o vale
tudo intelectual.
Na confusa ideologia original petista, o socialismo
nasceria “por cima”, pela construção de uma hegemonia social da esquerda, não
da anacrônica insurreição proletária. A missão exigiria a produção de um
direito, uma história, uma sociologia, uma antropologia “dos oprimidos”. Na
mente dos quadros acadêmicos petistas, a fronteira entre discurso científico e
discurso ideológico aparecia como uma conservadora exigência de
“imparcialidade” destinada a proteger “as elites”.
Os professores que se entregam ao marketing lulista
pertencem à geração de estudantes universitários do “PT das origens”. Tirando
os mais ingênuos, eles já desistiram do objetivo socialista, contentando-se
hoje com uma migalha: o sucesso eleitoral do partido. O golpe do “golpe de
2016” —eis o título para uma disciplina útil.
Demétrio Magnoli - É doutor em geografia humana e
especialista em política internacional.
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