Doações eleitorais empresariais eram legais até poucos
meses atrás, sendo uma prática por todos reconhecida e aceita
A política brasileira virou crônica policial. Não há dia
sem envolvimento de políticos denunciados e investigados pela Polícia Federal e
pelo Ministério Público. Num país aparentemente pobre, milhões e bilhões são
desviados de suas finalidades públicas para as mais variadas formas de
apropriação pessoal e partidária. O Brasil é rico em corrupção e pobre em
medidas sociais.
A Lava-Jato tem a grande virtude de estar passando o país
a limpo. Sem ela, os mais diferentes tipos de crime estariam se desenrolando
normalmente, muitas vezes mascarados de políticas sociais, como tornou-se usual
na forma petista de governar. Sua contribuição à República é inestimável. Em
sua nova etapa, a partir das delações do grupo Odebrecht, outros crimes
epersonagens, além dos já existentes, serão acrescentados à longa lista dos já
de- monstradamente envolvidos.
Estes terão provas ainda mais robustas contra si.
Acrescente-se que o ex-deputado Eduardo Cunha, muito provavelmente, fará a
delação premiada. Se não a fizer, será difícil a sua saída da prisão, além de
nela entrarem a sua mulher e filha. Homem meticuloso e organizado, deve ter as
provas de tudo o que delatar.
E atingirá seus colegas parlamentares e o seu próprio
partido. Se o PT, por ter sido o partido do poder, além de arquiteto deste tipo
de organização político-criminosa, foi o mais atingido até agora, outros
partidos se acrescentarão a essa lista. PMDB e PSDB são os próximos na fila.
Provavelmente, o cenário poderá ser de terra arrasada, como se uma tsunami
estivesse por se abater sobre o país.
De fato, as águas estão revoltas, aumentando o seu nível.
Isso significa que ministros, deputados e senadores poderão ser severamente
atingidos, mudando as expectativas para 2017 e alterando o cenário para 2018.
Imagine-se, por hipótese, que os candidatos atuais sejam alcan- çados por essas
investigações.
O país precisaria, então, se renovar até esta data, sob o
risco de abrir as portas para os mais diferentes aventureiros. O que restará de
todo este cenário? A classe política será devastada. Talvez, se tudo se
confirmar, não sobrará pedra sobre pedra. Ora, uma classe política devastada
coloca um problema de extrema gravidade no que diz respeito à representação
política.
Parlamentares e partidos, por exemplo, cumprem um
importante papel de representação política. Sem eles, a arquitetura do Estado
carece de mediação, estabelecendo-se um vácuo na delegação para o exercício do
poder. É como um edifício sem suas vigas mestras. Ou ainda, como pode um Estado
funcionar se os representados não se reconhecem nos seus representantes?
Pode-se mesmo, no limite, falar de uma crise institucional.
Surge aqui um problema de monta, agravado pelo fato de alguns juízes,
promotores, policiais e formadores de opinião estarem misturando coisas
distintas na relação que está se estabelecendo entre crime e política. Há uma
confusão que está perigosamente se generalizando entre doa- ção empresarial
legal, caixa dois e crime de propina e corrupção. São coisas distintas que
exigem um trata- mento diferenciado.
Doações eleitorais empresariais eram legais até poucos
meses atrás, sendo uma prática corrente por todos reconhecida e aceita.
Empresas doavam segundo seus interesses e conveniências, sem que estes recursos
derivassem necessariamente da corrupção e da propina. Hoje, aparecem
retrospectivamente como práticas criminosas numa espécie de retroatividade da
lei, o que é, evidentemente, um absurdo constitucional.
Não se pode considerar que um empresário, por ser
empresário, seja portador de uma espécie de presunção da culpabilidade,
enquanto somos regidos, todos, pela presunção da inocência. O caixa dois, por
sua vez, era um crime eleitoral, embora fosse uma prática comumente admitida.
Ora, por ser admitida, não significa que não deva ser julgada. Contudo, o seu
julgamento é basicamente afeito à Justiça Eleitoral, com suas penalidades
próprias, como multas pecuniárias e perdas de mandato.
O caixa dois não pode ser identificado com a corrupção,
embora os corruptos também tenham dele se aproveitado. O crime de corrupção,
que deveria ser o foco exclusivo da Lava-Jato e de seus desdobramentos, é o
crime de propina, em uma apropriação de recursos públicos via empreiteiros,
políticos e funcionários de estatais, além de seus mais diferentes
intermediários.
Trata-se de um crime de extrema gravidade, que atinge o
âmago mesmo do Estado e deve ser punido exemplarmente. Ele é, porém,
essencialmente distinto dos dois outros casos, apesar de eles terem servido de
disfarce para atividades criminosas de corrupção. Ora, se juízes, policiais,
promotores e formadores de opinião vierem a identificar esses dois crimes e uma
atividade outrora legal, poderemos, aí sim, marchar para uma grave crise
institucional, na medida em que ninguém poderá escapar de tal tipo de confusão.
Inocentes serão levados juntos com criminosos.
Crimes eleitorais serão tidos por crimes de propina e
corrupção quando não o são. Nestas circunstâncias, como poderá o país se
reconstruir? Como poderá enfrentar a derrocada do PIB, o desemprego crescente e
a falta de expectativas? Como a crise econômica e social poderá ser superada
com a devastação da classe política? Façamos uma analogia.
A Alemanha, pós-guerra, foi reconstruída pela burocracia
estatal e por políticos, muitos dos quais foram nazistas ou simpatizantes desta
forma de eliminação da política e, mesmo, da humanidade. Soube distinguir
grandes crimes de crimes menores. Foi o preço que tiveram de pagar.
A França foi também reconstruída por colaboracionistas e
membros e/ ou simpatizantes do regime de Vichy. Dois deles se tornaram
presidentes, como Valery Giscard d’Estaing e François Miterrand, este último,
paradoxalmente, tendo se tornado um símbolo da esquerda mundial. Não deverá o
país, guardadas as proporções, enfrentar um mesmo tipo de desafio?
Denis Lerrer Rosenfield é professor de Filosofia na
Universidade Federal do Rio
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