Artigo, Fábio Medina Osório - O poder investigatório do Ministério Público


Em 2015, o STF, por maioria, no REXT 593.727, reconheceu que o Ministério Público teria poder de investigação criminal, “desde que respeitados os direitos e garantias que assistem a qualquer indiciado e qualquer pessoa sob investigação do Estado, observadas, sempre, por seus agentes, as hipóteses de reserva constitucional de jurisdição, e, também, as prerrogativas profissionais de que se acham investidos em nosso país os advogados”, sem prejuízo da possibilidade do controle jurisdicional dos atos necessariamente documentados (súmula vinculante 14).
Foi conquista histórica do Ministério Público brasileiro, que sempre sustentou tal possibilidade jurídica diante da necessidade de investigar ilícitos de modo autônomo e independente, sem prejuízo às prerrogativas das autoridades policiais. Ministério Público e polícias trabalham cada vez mais próximos, haja vista o controle externo das polícias pelo parquet e a titularidade privativa da ação penal que detém o Ministério Público à luz da Constituição de 1988.
Verdade que, no aludido REXT, o Ministro Marco Aurélio foi voto vencido, porquanto ressaltou que o Ministério Público não teria amparo para atuar no campo da investigação criminal de “modo autônomo”. Disse o Ministro que seria inconcebível que um membro do Ministério Público colocasse uma “estrela no peito” para “armar-se” e investigar. “Sendo o titular da ação penal, terá a tendência de utilizar apenas as provas que lhe servem, desprezando as demais e, por óbvio, prejudicando o contraditório e inobservando o princípio da paridade de armas”, asseverou em seu voto-vista.
O direito comparado admite o poder investigatório do Ministério Público, tema que restou pacificado no Brasil. Preocupação maior tem havido com outras instituições que, não raro, usurpam o poder investigatório criminal do Ministério Público, sob o pretexto de realizar investigações administrativas. O que se observa, atualmente, é um desvio de finalidade na atuação de outras instituições, que buscam realizar investigações criminais através de seus aparatos administrativos, o que é grave equívoco. Para a esfera criminal, existem o Ministério Público e as polícias.
Não há poder sem limites, evidentemente, e o poder investigatório do Ministério Público começa a ser disciplinado na Resolução 181/17 do CNMP, valendo lembrar que cada parquet estadual tem sua própria lei de incidência. A normatividade do poder investigatório costuma ser densa. Referida Resolução confere poderes importantes aos membros do Ministério Público, mas também lhes outorgam limites, nem sempre respeitados. Procedimentos devem tramitar preferencialmente por meio eletrônico, salvo impossibilidade. A instauração se dá por portaria fundamentada, circunscrevendo o objeto e as diligências iniciais. Depoimentos devem ser colhidos mediante gravação audiovisual, com o fim de obter maior fidelidade das informações prestadas.
A súmula vinculante 14 do STF é um bom balizador. O direito de o investigado ser ouvido, em algum momento, e antes disso ter acesso às provas já documentadas contra si, é decorrência lógica do quanto fixado no REXT julgado pelo STF. Por certo que ninguém pode interferir no programa investigatório das autoridades, tampouco quebrar sigilo das investigações em curso para monitorar a atuação das autoridades. Porém, o direito de ser ouvido, ainda que não se confunda com qualquer arremedo de contraditório, deflui do devido processo legal administrativo. A própria Resolução 181/17 garante o direito de o defensor examinar autos de investigação criminal, findos ou em andamento, em meio físico ou digital, podendo copiar peças ou tomar apontamentos. Quando decretado o sigilo, deverá apresentar procuração. Quer dizer, tudo o que estiver documentado nos autos estará ao alcance dos advogados.
O respeito às prerrogativas legais dos investigados é outra garantia básica inerente ao processo administrativo. Da mesma forma, pode-se citar o dever de fundamentação dos atos administrativos. Muitos atos unilaterais são praticados, inclusive em segredo de justiça e ao arrepio do contraditório, tais como quebras de sigilos bancários ou telefônicos, no curso de um programa investigatório. A garantia da transparência da motivação como pilar de interdição à arbitrariedade dos poderes públicos é um dos elementos estruturantes do Estado Democrático de Direito.
Regras atinentes à competência, à existência de elementos da figura do direito penal do fato, de procedimentos burocráticos relativos ao promotor natural, de respeito à legislação de regência, devem ser observadas. Não se pode olvidar que vigora o princípio da responsabilidade dos fiscalizadores, como decorrência do princípio republicano. Atos arbitrários podem ensejar responsabilidade civil, administrativa e até criminal de agentes do Ministério Público.
A probidade dos fiscalizadores é exigência republicana comum aos países civilizados. Desnecessária qualquer aprovação de novo modelo normativo para responsabilidade de promotores ou procuradores por abuso de autoridade ou improbidade administrativa, pois o atual sistema já permite o enquadramento de condutas abusivas. Basta que se aplique corretamente a lei aos infratores. O Conselho Nacional do Ministério Público tem sido paradigma de atuação firme na fiscalização de eventuais desvios de conduta. E os próprios membros do Ministério Público fiscalizam seus pares.
Fábio Medina Osório, advogado e ex-ministro da Advocacia-Geral da União

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