Nossos heróis empreendedores não vieram do mercado, salvo
honrosas exceções
(Em memória de João Ubaldo Ribeiro)
Sob cerrada pancadaria o governo Bolsonaro se lança com
as velas pandas em alto-mar em busca do Santo Graal, antes perseguido sem êxito
por alguns, sempre na crença de que deslocar o leito da nossa História do seu
curso de 500 anos é matéria afeta apenas a uma acendrada vontade política que
não recue diante de circunstâncias adversas. Trata-se, sob o governo de
Bolsonaro, de um plano de guerra sem quartel com a intenção de remover
obstáculos à sua imposição, sejam políticos, econômicos ou culturais. Tais
obstáculos estariam dispostos em camadas, acumulados ao longo de gerações, e se
antes funcionais como a ação indutora da economia pela política, estariam agora
travando o desenvolvimento do capitalismo, cujas forças de mercado estariam a
exigir plena liberdade de movimentação. A declaração do ministro da Economia,
sr. Paulo Guedes, nesse encontro de Washington, ao identificar no condestável
do regime, Olavo de Carvalho, o chefe de uma revolução que estaria em curso não
poderia ser mais esclarecedora.
Para o condestável do governo Bolsonaro, as bêtes
noires a serem removidas para o sucesso da revolução em marcha seriam as
vetustas corporações que conformaram o corpo e a alma da História do País, a
saber, os militares, os juízes, o corpo diplomático do Itamaraty e a
instituição da Igreja Católica; cada qual teria repassado em boa medida seus
valores a um fundo que teria como que constituído o cerne da nacionalidade, em
comum a todos eles, embora com pesos variados, a distância dos valores
capitalistas. O diagnóstico não é original, pois vem rondando a tópica do
pensamento social brasileiro, ao menos, talvez, de Tavares Bastos, um
americanista e feroz anti-ibérico de notável talento, que defendia, entre
outros temas, a erradicação do catolicismo em favor da doutrinação protestante,
segundo ele, mais propícia a uma cultura de liberdades e de um regime de
livre-iniciativa. Notar que Tavares Bastos, cultor da obra de Tocqueville, era
como ele um cultor da liberdade e jamais, em sua curta e prolífica vida, se
associou a projetos autoritários em defesa de suas posições doutrinárias.
Como se sabe, o seu grande antagonista na publicística
brasileira foi Oliveira Vianna, um cultor da obra do visconde de Uruguai,
discípulo do estadista Guizot, especialista em Direito Administrativo e
ministro de Estado sob o regime da Restauração na França, das primeiras décadas
do século 19. Nas pegadas de Guizot e do visconde de Uruguai, Oliveira Vianna
mobilizou sua crítica ao regime da Primeira República em torno de dois grandes
eixos: a crítica da descentralização – tema maior de Tavares Bastos, que lhe dedicou
seu importante ensaio A Província – e do idealismo constitucional na
forma em que foi arquitetada a primeira Constituição republicana, em 1891, sob
a inspiração de Ruy Barbosa.
A Revolução de 30 atestaria o fracasso da experiência
constitucional anterior, com o retorno às políticas de centralização
administrativa, herdadas do Império, e a partir dela o Estado passa a exercer
de modelagem da sociedade civil por meio não só da legislação, como de práticas
administrativas. A modernização do País torna-se o eixo orientador das ações
estatais; os militares fornecem quadros qualificados e de suas lideranças são
selecionados muitos dirigentes das empresas estatais que então são criadas para
o esforço da industrialização, são recrutados do seu meio; não se pode falar da
Petrobrás, talvez a mais estratégica das estatais, sem o papel decisivo da
corporação militar na sua criação. No desbravamento do hinterland, com que
se começou a incorporação do oeste ao processo de modernização capitalista,
somente concluído no recente regime militar com as estradas que abriram os
sertões à ocupação do que viria a se tornar o agronegócio e a pecuária de hoje,
essas foram obras que contaram com sua participação, inclusive na política de
colonização levada a efeito naquela região, conforme registra a bibliografia
especializada.
Tal história de construção do capitalismo brasileiro, que
conheceu momentos épicos, como, entre outros, as jornadas do marechal Rondon
sertão adentro e a construção de Brasília, não conheceu Henry Ford e Nelson
Rockefeller, que aqui não encontrariam território fácil para prosperarem.
Nossos heróis empreendedores não vieram do mercado, salvo honrosas exceções,
mas de agentes do Estado, como sanitaristas, engenheiros e militares, não se
podendo omitir os cientistas e técnicos que criaram a Embraer e a Embrapa.
Nesse sentido, é quase assustador que nosso ministro da Economia, que jamais
produziu um prego, ouça sem protestar declarações inóspitas à rica História do
País de um ideólogo capaz de subir nas tamancas e chamar de idiota um general
do Exército Brasileiro, aliás, atual vice-presidente da República.
Outra peça forte de sustentação da tradição brasileira é
a sua magistratura, cuja história está bem descrita pelo historiador José
Murilo de Carvalho em A Construção da Ordem. A Regência, com sua política
de descentralização, tinha exposto o País a rebeliões que ameaçavam a unidade
territorial, objetivo estratégico do Estado imperial, que tinha braços curtos,
na caracterização do visconde de Uruguai, sem ter meios de alcançar os
longínquos rincões, confiados aos poderosos locais, que ignoravam as políticas
e as leis do poder central, favorecendo a emergência do caudilhismo como na
América hispânica, perigo maior a ser evitado. O remédio heroico para esses
males foi a criação de uma magistratura de Estado, desvinculada dos poderes
locais, que agora passariam a conhecer o braço longo do Estado.
O enraizamento do Judiciário aprofundou-se na vida social
com a modernização que nos trouxeram, depois da Revolução de 30, a Justiça do
Trabalho e a Justiça Eleitoral, ambas hoje inerradicáveis, pelas nossas
circunstâncias, do nosso tecido institucional.
Por fim a Igreja Católica, mas essa tem 2 mil anos, é uma
pedra que não se remove. E não cabe do bico do ideólogo.
*Sociólogo (PUC-Rio)