Ela compromete - e pelo visto continuará comprometendo -
a qualidade da democracia
Sendo a política predominantemente concebida no Brasil
como “o que ocorre em torno do Estado”, não há vacina poderosa o suficiente
para imunizar os políticos da forte atração centrípeta do Estado e que se
manifesta sob a forma de um adesismo generalizado a quem o ocupa que tende à
unanimidade. Essa é uma das “taras” mais peculiares da cultura política
brasileira que caracteriza o comportamento das elites políticas com relação aos
governos, sejam eles quais forem.
Só não tem base política no Legislativo aquele governante
que não a quiser. Na realidade, qualquer novo governo no Brasil, se não fechar
as portas do poder, será invadido. Não há barreira programático/ideológica,
partidária ou ética que seja capaz de conter o vício tentador da adesão ao
poder, aos cargos, mordomias e o acesso às facilidades para a corrupção.
A expressão mais acabada dessa característica da cultura
política brasileira se manifesta nas ondas de unanimidade nacional que varrem
os cenários políticos, uma vez definido o vencedor. Foi assim com os governos
da Arena durante o regime militar; com a campanha das Diretas Já,
transferindo-se logo após para o processo de constituição da Aliança
Democrática e ao governo Tancredo/Sarney; com o Plano Cruzado, episódio
emblemático do adesismo, quando o PMDB elegeu todos os governadores estaduais,
com apenas uma exceção!
O mesmo processo repetiu-se com o impeachment de Collor
e, logo em seguida, na formação do governo Itamar. Fernando Henrique, com o
Plano Real, obteve vitória em primeiro turno e, navegando mais uma onda de
quase unanimidade, não teve problemas para conquistar maioria no Congresso,
sempre que se empenhou.
A comprovar que a tara do adesismo não conhecia limites
partidários, o governo Lula, não obstante o escândalo do mensalão levou o
adesismo ao paroxismo, chegando à quase unanimidade decorrente da corrupção,
como ficou visível e conhecido por meio da Operação Lava Jato.
O adesismo do governo Lula, bem lubrificado pela sua
popularidade e pelo seu peculiar carisma, não se limitou à sua pessoa. Passou
para Dilma, a sucessora que elegera e que, embora destituída de todos os
atributos de imagem que Lula possuía, não teve problemas em contar com ampla
maioria no Legislativo.
Por fim, com o impeachment de Dilma, o adesismo, como uma
“ameba gigante”, não teve maior dificuldade de se reagrupar, com inegável
disposição no governo Temer.
Como se vê, o adesismo não é uma peculiaridade de um
determinado grupo de partidos, pertencentes ao setor de centro-direita do
espectro político; tampouco não dependia da prática democrática, já que soube
se acomodar sem dificuldade na Arena do período autoritário; conseguiu também
se alojar na nova República do governo Sarney; sobreviveu à ampla modificação
do sistema político, com a Constituição de 1988; depois ajustou-se ao Plano
Real, à rigorosa Lei de Responsabilidade Fiscal e ao governo FHC; chegando ao
“paraíso” no governo Lula e Dilma, com o estímulo extra do pagamento mensal por
serviços prestados e, para espanto do mundo, com o petrolão ainda em
investigação, um escândalo numa escala de país altamente desenvolvido e
multinacional.
O fato é que o adesismo não pertence ao mundo da
conjuntura, já que foi capaz de saltar sobre todos os obstáculos e mudanças que
se sucederam na política brasileira desde Getúlio, passando pelo regime de 64,
pela Nova República, pela Constituinte, pelo governo Itamar, pelo governo FHC,
por Lula e Dilma, até chegar aos nossos dias com Temer.
Curiosamente, só o breve governo Collor não se beneficiou
deste adesismo, até onde se sabe em grande medida por que não o quis e, segundo
muitos, foi essa recusa a razão principal para o impeachment.
Ao contrário dos países de cultura política de
democracias estáveis, no Brasil, ser da oposição é ser amaldiçoado; o trágico é
“perder a boquinha” no governo. Nossa cultura política está muito mais para um
processo tendente à unanimidade do que para o conflito.
Em consequência, não temos oposição como uma estrutura
política independente, que se mantém como alternativa ao governo. Somente um
raciocínio político desligado da realidade, portanto, pode conceber como
“solução” política para o País, por exemplo, o parlamentarismo, regime político
que depende de modo absoluto da existência de uma oposição para sua dinâmica de
funcionamento.
O eufemismo mais recente para revestir de dignidade o
oportunismo adesista é o conceito de governabilidade: a pretensa necessidade de
formar maioria parlamentar permanente para governar. Depois que esta
“justificativa nobre” foi encontrada, o processo atingiu as raias do
indecoroso, atenuado por um conceito com pretensões acadêmicas –
presidencialismo de coalizão – que logo passou a ser utilizado de forma
deturpada pela linguagem política como uma justificativa elegante para o
adesismo.
O adesismo é, pois, um traço estrutural do sistema
político. Diante de sua força, chega a ser irônica a tentativa de modernizar
nosso sistema político por mais uma soidisant reforma da legislação política.
Tais reformas não passam de aperitivo para a fome
incontrolável da tara adesista, a mesma que não hesitou em engolir todos os
artigos, parágrafos e incisos da nova Constituição.
Como traço estrutural, o adesismo ainda vai viver conosco
por um bom tempo, corroendo e corrompendo nossas práticas políticas, no estado
de instabilidade política crônica em que vivemos e que ainda vamos ter de viver
por muito tempo, como detalhadamente analisei no meu livro Brasil: a cultura
política de uma democracia mal resolvida.
Esta “tara adesista” de boa parte da classe política e
empresarial, tão característica de nossa cultura e prática política, compromete
– e pelo visto continuará comprometendo – severamente a independência dos
poderes, a eficiência do governo e, em consequência, a qualidade de nossa
democracia.
*Professor de ciência política, ex-reitor da UFRGS,
pós-graduado pela Universidade de Princeton, é criador e diretor de Política
para Políticos (www. politicaparapoliticos.com.br)