Luiz Carlos Cancellier de Olivo, o Cao, está morto.
Nas estatísticas oficiais a morte de Cao será contada
como suicídio.
Mas ninguém se iluda. Mãos visíveis algumas, que podem
ser identificadas sem que seja necessário levar ninguém à prisão, e mãos
invisíveis, muitas mãos invisíveis, o empurraram das alturas, de modo que os
seus ossos se quebrassem, o sangue jorrasse na hemorragia incontrolável, e a
vida se extinguisse rapidamente no choque terrível. Instantes depois do baque
surdo, o coração cheio de bondade, de tolerância, de respeito ao próximo, parou
de bater.
Que mãos eram essas? Mãos de quem talvez saiba o que é
vingança, mas sabe pouco do que seja justiça. Mãos de quem só têm a si mesmo
como honestos e virtuosos, senhores do bem e do mal, da reputação de quem mal
conhecem e que não têm curiosidade de conhecer. Mãos de quem, tendo o poder de
prender, ignoram a gravidade do delito suposto, e para quem tanto faz ter o
cidadão ficha limpa ou antecedentes criminais. Mãos de quem, sendo ciosos da
imagem de suas respectivas instituições, desprezam, entretanto, a imagem das
demais, como deuses de um alcorão, uma bíblia fundamentalista.
Mãos de quem, tendo o poder de prender sem flagrante, e
de começar uma investigação pela coerção, constrangimento e prisão dos
suspeitos, não chegam a perceber que o método rústico revela a incapacidade de
cumprir seus deveres e obrigações com inteligência, método e moderação.
Mãos de quem, ciosos de seu poder e autoridade, ao invés
de exercê-los com critério, partindo do pressuposto inalienável de que o
cidadão pode ser culpado, pode ter só parte de culpa, ou nenhuma culpa,
pensando que seu juízo e sua intuição são infalíveis, só têm olhos para as
evidências que confirmem as suas suspeitas.
Mãos de quem, ainda ontem frequentavam os bancos da
faculdade, mas para quem a presunção da inocência - pináculo do estado de
Direito, pilar da democracia, conquista da civilização - é um inútil ornamento
da lei.
Mãos de quem não abrigam em seus corações nenhum sinal de
bondade, de compreensão pelo outro, e em suas cabeças nenhum raciocínio a
respeito da proporção dos seus atos, nenhuma projeção dos seus efeitos e suas
consequências, para o ser humano, a instituição, a comunidade.
Mãos de quem em nada parecem saber que a prisão é, em
toda circunstância, a não ser nas ditaduras, desonrosa. Em nada parecem saber
que abate, constrange e humilha, aprisionar, examinar alguém em corpo nu,
vesti-lo em roupa de prisioneiro, e que tudo isso adentra pelo terreno da
barbárie, ainda mais quando se faz sem flagrante, sem a sentença, antes mesmo
de ser réu.
Mãos de quem se aproveitam de uma época inglória e
insana, de uma sociedade exaurida pelos escândalos públicos, e que em boa
parte, têm espuma e sangue nos lábios, e para quem tudo é joio, e trigo só eles
são, tendo na ponta da língua os chavões da época, de condenação geral aos
bandidos de verdade, mas levando juntos os que passaram perto e os inocentes
que têm o azar de atravessar o caminho.
Um pouco de humildade, um pouco de humanidade não lhes
faria mal. Não conheço nenhum desses agentes da lei, e não desejo conhecê-los,
porque tenho medo deles. Que autoridades são essas que ao invés de proteger nos
causam medo e terror? Quem são eles, assim destituídos de humanidade e razão? É
preciso agir com a mão assim pesada, com tal crueldade, com tal virulência e
desumanidade?
Não se passa o país a limpo assim, senhores e senhoras.
Digo de novo o que já escrevi: os senhores, as senhoras, estão jogando o bebê
fora junto com a água do banho.
Mãos não só de autoridades, mas de uma imprensa que
primeiro atira e só depois pergunta quem vem lá, quando e se pergunta. Uma
imprensa que toma como verdadeira, em princípio, a palavra da autoridade, não
mediada, não contextualiza. De blogueiros, ativistas e pessoas
"comuns" que, raivosos, expelem argumentos chulos, pensamentos
prontos, clichês preconceituosos, manifestações de atraso, ignorância, e ódio,
muito ódio nas redes sociais Mãos de quem confunde moral com moralismo de baixo
custo, que a todos rotula, por método, costume e um certo prazer sádico.
Cancellier almoçou lá em casa há menos de uma semana. Com
o filho Mikhail, Ricardo Baratieri, Arlete e Nara Micaela. Ao final, nós
estávamos reconfortados. Cancellier nos pareceu lúcido, fazendo um esforço
genuíno para compreender que tinha sido vítima de uma dessas armadilhas do
destino, uma coincidência infeliz. Ele parecia razoavelmente recuperado do
golpe sofrido.
Um turbilhão que tudo arrasta, um vendaval que se solta,
uma cilada da vida: assim pareceu Cancellier encarar o seu drama pessoal. Ele
aparentava uma calma estranha, uma misteriosa resignação. Quando soube de sua
morte ontem, compreendi imediatamente: ele já havia engendrado o seu destino,
fingiu serenidade, para que ninguém quisesse interromper o plano que já tinha
traçado. Alguém já disse que não há pior vergonha do que a de não ter feito o
que lhe imputam. Muito pior que a desonra, é o sentimento de quem não a merece.
Podem ficar tranquilos todos e cada um dos mais de cem
agentes públicos e autoridades do Estado que, de alguma forma contribuíram para
desenlace trágico, dando ou cumprindo ordens, assinando as portarias, os
despachos, cumprindo as frias formalidades da "lei", que este homem
singular, Cancellier, que não cultivou em vida a raiva, a mágoa, o
ressentimento, também não os levará para a eternidade.
Conduziram ao camburão, abriram as portas do cárcere um
homem que não queria mal a ninguém, que não fazia mal a ninguém. Um homem de
coração generoso e aberto, um democrata na teoria e mais ainda na prática, um
homem de diálogo e conciliação, um campeão da harmonia e da paz. Ah,
Cancellier, como você, querido amigo e querido irmão fará falta, ainda mais
nesta terra brasileira nunca tão dilacerada pela dissensão e a intolerância,
apequenada nos conflitos políticos de uma República abastardada, no facilitário
do ódio, na insensatez arrogante de muitas das suas elites.
Como fará falta sua voz calma e pacificadora, em busca da
palavra certa em favor do diálogo e do entendimento, na instituição que você
respeitou, protegeu e amou mais do que qualquer outro, a quem você emprestou o
seu talento e capacidade de trabalho, esta Universidade Federal de Santa
Catarina, o palco involuntário de uma tragédia que marcará para sempre e
indelevelmente a sua história.
Abraço caloroso, Mikhail, Júlio, Acioly, Cristiane,
familiares, amigos. Choremos o passamento de Cao Cancellier e sigamos o seu
exemplo, de uma vida dedicada ao bem, à justiça, à liberdade e à paz entre os
homens. Descanse Cao em algum lugar, na dimensão possível. E rezemos para que
esta tragédia que nos causa tamanho torpor, tal comoção, que nos fere tão fundo
na alma, de alguma maneira seja uma lição que nos afaste da barbárie, nos
contagie com um pouco de fraterna humanidade, nos dê força para enfrentar esta
provação.
Abraço sentido e caloroso, reitora Alacoque,
pró-reitores, diretores, servidores e alunos. Universidade, se bem interpreto o
pensamento do amigo e irmão que se foi de forma tão despropositada, é lugar
onde se privilegia o conhecimento e o saber, a extensão e pesquisa. É o lugar
dos crentes e dos ateus, dos socialistas e dos liberais, da direita e da
esquerda, dos negros, indígenas e brancos, dos pobres e dos ricos, das mulheres
e dos homens, dos héteros e dos homossexuais. Aqui se encontram, convivem e
aprendem para a vida e a cidadania, todas as tribos da comunidade nacional e
planetária.
Todos os que se acham superiores moralmente,
politicamente, esqueçam. Somos todos iguais ou parecidos em defeitos e
qualidades. Experimentem, como o Cao fazia o tempo todo, calçar de vez em
quando as sandálias da humildade. A Universidade não é o lugar apropriado para
a guerrilha política, para o "nós" contra "eles". Aqui
podem e até devem se bater as facções, as narrativas históricas, mas ninguém é
dono do futuro e só uma busca é possível e legítima: a de uma sociedade
próspera, justa, livre e fraterna. Universidade rima com verdade e liberdade.
Nelson Wedekin