Luciano Trigo, Máquina de Escrever, G1 - A corrupção da inteligência’ critica o papel dos intelectuais no Brasil

A corrupção da inteligência’ critica o papel dos intelectuais no Brasil
Luciano Trigo, Máquina de Escrever, G1, 20/08/2017
Se Flávio Gordon tiver razão, seu livro “A corrupção da inteligência – Intelectuais e poder no Brasil” (Record, 364 pgs R$ 44,90) não terá grande repercussão na mídia, já que, como ele escreve, as redações estão dominadas faz tempo por profissionais ligados ao campo de esquerda que ele critica. Os agentes da corrupção mais nociva ao Brasil, afirma, não são os políticos nem os empresários, mas os intelectuais, aí incluídos os jornalistas, além de professores e historiadores e da classe artística. Segundo o autor, esse fenômeno da devastação da inteligência brasileira não é percebido pela intelectualidade acadêmica e midiática pela simples razão de que essa mesma intelectualidade é a sua protagonista.
“Eles são, ao mesmo tempo, os corruptos, os corruptores e, paradoxalmente, as primeiras vítimas do fenômeno”, escreve Gordon. Diferentemente da corrupção protagonizada por políticos, envolvendo a roubalheira de bilhões de reais em recursos públicos em periódicos Mensalões e Petrolões, a corrupção praticada pelos intelectuais “não é criminalizável, porque não diz respeito a algo que os atores simplesmente fazem, mas a algo que eles vieram a se tornar, algo que eles são e, em grande parte dos casos, não conseguem deixar de ser. Trata-se de uma corrupção que envolve o intelecto e a personalidade – uma corrupção da inteligência”.
Na entrevista a seguir, Gordon esclarece alguns pontos de seu livro, lamenta a situação da universidade e reflete sobre a permanência dos conceitos de direita e esquerda. Ambos – a entrevista e o livro – sinalizam que a terra ainda não foi inteiramente devastada.
Máquina de Escrever – A corrupção da inteligência é mais grave que a corrupção econômica? De que forma as duas se entrelaçam?
Flávio Gordon – Sim. É mais grave, porque seus efeitos são mais duradouros, de longo prazo, e dificilmente reversíveis. É claro que a corrupção tradicional causa um dano profundo e imediato na vida das pessoas. Num país como o nosso, carente de infraestrutura, e cujas saúde, segurança e educação públicas acham-se em estado calamitoso, o desvio de dinheiro tungado do contribuinte para atender interesses partidários e pessoais é nada menos que repugnante. Ainda assim, essas perdas podem ser revertidas – só a Operação Lava-Jato, por exemplo, já conseguiu restituir cerca de R$ 10 bilhões aos cofres públicos – e os responsáveis, eventualmente punidos e neutralizados. Já a corrupção da inteligência causa danos permanentes para a cultura, debilitando o intelecto e a imaginação dos indivíduos por muitas e muitas gerações.
O resultado daquele estreitamento é a balcanização social e o sectarismo a que temos assistido no debate público brasileiro, fruto, a meu ver, menos das polarizações político-partidárias recentes do que de um processo de décadas de provincianismo cultural das nossas classes falantes – intelectuais, jornalistas, artistas etc – que tomaram a decisão – se mais ou menos consciente pouco importa – de romper os laços do país com a grande tradição cultural do Ocidente em favor de uma pretensa “identidade nacional” tão artificial quanto tacanha. A perda do sentido de nossa herança civilizacional deu nesse ambiente cultural tribalizado, em que cada um fala a sua própria língua e ninguém se entende, num verdadeiro diálogo de surdos. E, ao menos quanto a esse estado de coisas, os nossos políticos e empresários malfeitores estão isentos de culpa. Foram os nossos corruptos intelectuais os responsáveis por ele.
O entrelaçamento entre as duas formas de corrupção deu-se de maneira muito visível no modo sui generis como o PT a exerceu. Eu não teria nada a objetar à afirmação de que a corrupção tradicional é praticada por todos os partidos brasileiros. Mas isso não deveria nos impedir de ver que só um deles, o PT – que, mais que um partido, eu prefiro tratar como uma “rede”, que engloba outros partidos, movimentos e organizações sociais diversas – é portador de uma ampla narrativa ideológica para justificá-la e até mesmo enobrecê-la. Só o PT, fiel à tradição comunista-revolucionária de disfarçar o seu mal com as cores do bem, pôde contar com um exército de artistas e intelectuais a defender incondicionalmente os seus corruptos. Enquanto os corruptos dos outros partidos demonstravam em público alguma vergonha, mesmo que fingida, os do PT erguiam no ar o punho orgulhoso, sendo recebidos como heróis no seio da militância. Delinquir em nome de um pretenso “bem” é sempre muito pior do que delinquir simplesmente, e é isso que confere à corrupção petista, a única amparada por um gigantesco exército de corruptos intelectuais, seu sabor especificamente patológico e assustador.
Máquina de escrever – Qual foi o papel dos intelectuais e artistas no processo que resultou no impeachment de Dilma Rousseff e na sua consequência, o atual governo Temer. Como você explica esse comportamento? De que forma ele se entrelaça com a ideia de uma hegemonia cultural?
Flávio Gordon – Foi o pior possível. Dentro da academia, por exemplo, a narrativa farsesca de tratar o impeachment como golpe foi sustentada pela esmagadora maioria dos corpos docente e discente. Houve professores universitários caras-de-pau o bastante para equiparar o impeachment ao nazismo, numa ofensa à memória das vítimas do Holocausto. Tivemos também manifestações oficiais de reitores de universidades federais, que, naquela típica confusão brasileira entre público e privado, usaram de suas posições institucionais para manifestar um posicionamento político-partidário. É claro que a maior parte das manifestações não vinham em trajes político-partidários explícitos. Como todo discurso ideológico que se preze, este, frequentemente precedido pelo introito “não sou petista, mas…” também era vendido ao público como uma preocupação com a justiça, o equilíbrio e a isonomia.
Quem quer que tente compreender aquele comportamento como expressão de uma doutrina político-partidária coerente deixará escapar o seu aspecto essencial, qual seja o fato de estarmos aí diante de uma cultura política, que ultrapassa em muito a esfera das escolhas racionais dos indivíduos. Uma cultura política não pode ser compreendida como corpo doutrinal ou projeto de poder aos quais uma pessoa adere de maneira consciente e plenamente voluntária, como quem apanhasse produtos na prateleira do supermercado. Não se trata de um objeto extrínseco situado no campo visual de um sujeito, mas, ao contrário, do próprio campo visual pelo qual o sujeito contempla todo e qualquer objeto. Sendo assim, noções tipicamente liberais tais como as de “escolha racional” e “cálculo de interesses” são insuficientes para abarcar a política. Esta depende de um complexo de valores, tradições, linguagem, simbolismos e representações compartilhados, que consolidam uma identidade coletiva, uma memória social e um fundamento para a ação prática.
Quem está dentro de uma cultura tende a reproduzir certos comportamentos, e até mesmo sentimentos, de maneira automática, alheia a tomadas de decisão voluntárias e individuais. O caso mais extremo de imperativo cultural nesse sentido é a língua. Ninguém escolhe falar a sua língua nativa, e seria impossível optar por recusá-la. E, dentro dos meios intelectuais e artísticos brasileiros, sobretudo no interior da universidade, a cultura política de esquerda é hegemônica. Nesse ambiente, alguém que se recuse a reproduzir o comportamento, os maneirismos e o vocabulário consensualmente admitidos pagará um pesado preço social, correndo o risco de romper com seu ciclo de relações, do qual depende inclusive a continuidade da carreira. A palavra-de-ordem “Impeachment é golpe!” está para a nossa cultura política acadêmica assim como o arroz-e-feijão está para a nossa cultura gastronômica. E o infante universitário só cresce e fica fortinho ingerindo generosas porções daquele alimento ideológico.
No meio universitário brasileiro, e mais especificamente no campo das ciências humanas, a opinião pública – ou seja, o conjunto de “opiniões e comportamentos que podem ser exibidos em público sem o medo do isolamento”, como define a cientista política Elisabeth Noelle-Neumann – é de esquerda e, no caso que nos interessa aqui, simpática ao PT. Num tal contexto, aos que pensam diferente restam duas opções: ou se calam e se acomodam à cultura do entorno, tornando-se assim invisíveis e politicamente neutralizados, ou enfrentam o isolamento. O mecanismo de isolamento é tanto mais eficaz quanto mais insidioso, porque não se explicitam os termos da discordância política, e o dissidente jamais é confrontado abertamente, tendo a chance se fazer ouvir, mas gradativamente afastado da comunidade. É para evitar esse processo que a maioria das pessoas se acomoda e acaba gritando (com maior ou menor entusiasmo) que “foi golpe!”
Máquina de Escrever – Um traço marcante da crise atual é a divisão do país, que parece passar do estágio do “nós contra eles” para o “todos contra todos”, com minorias brigando contra minorias em meio a uma politização de todos os aspectos da vida cotidiana. Você concorda?
Flávio Gordon – Sim, você tem toda a razão. Vejo o fenômeno ocorrendo sobretudo no seio da militância política organizada. E era inevitável que ocorresse, pois é da própria lógica do espírito revolucionário esse processo de autofagia. Basta ver o que se passou com o jacobinismo durante a Revolução Francesa. O mecanismo de depuração revolucionário ganhou vida própria, e os jacobinos puseram-se a guilhotinar uns aos outros num verdadeiro frenesi sanguinolento. O mesmo se deu nos regimes comunistas, especialmente com Stalin. Quando se age com a convicção de ser o juiz da História e o responsável pela criação de uma humanidade inteiramente renovada, é natural que se queira eliminar os obstáculos ao paraíso terrestre. E, a depender das circunstâncias, o demiurgo revolucionário de ontem será visto como o reacionário de amanhã.
No presente contexto histórico, temos assistido àquilo que o crítico americano Bruce Bawer chamou de “a revolução das vítimas”. Quando ser vítima passou a conferir poder político – como, por exemplo, o de falar sem ser interrompido, ou o de receber benefícios reparadores – é natural que todos desejem sê-lo. Vivemos em meio a um leilão ideológico em que já não se pergunta “quem dá mais?”, mas, ao contrário, “quem dá menos?” É a balcanização cultural a que me referi antes. Os grupos militantes passam a exigir representação política, não nos termos da declaração universal dos direitos do homem, mas nos termos do direito à diferença.
Todos querem diferir. Todos querem que a sua diferença específica seja mais diferente que as demais. Todos são iguais nisso. As mais excêntricas idiossincrasias, próprias a determinado “coletivo” ou “minoria”, passam a ser reivindicadas – e, pior, reconhecidas! – como direitos naturais inalienáveis. Para cada uma das categorias coletivas em conflito, toda a realidade está circunscrita aos seus objetivos políticos imediatos, que adquirem, portanto, um caráter quase metafísico. O diálogo aí é impossível, porque cada “coletivo” fala sua novilíngua particular.
Apesar da situação algo preocupante, confesso me divertir diante de cada nova batalha nessa “grande guerra das minorias”, como quando o deputado e ex-BBB Jean Wyllys, do PSOL, foi torpedeado por membros do movimento negro, que, apelando ao mesmíssimo estilo retórico que o psolista não se cansa de usar contra desafetos políticos, o acusaram de ser um racista velado. Quem sabe se, concentrando todas as energias em devorar-se mutuamente, esses profissionais da vitimização não deixem em paz os demais brasileiros, que precisam pagar as contas, e para quem o sentido da vida não se esgota na militância político-ideológica?
Máquina de Escrever – Os conceitos de direita e esquerda são mesmo válidos em um país no qual o campo da esquerda estimula o capitalismo de compadrio e o campo da direita praticamente não existe? Essa nomenclatura ajuda ou atrapalha o debate?
Flávio Gordon – Sim, esses conceitos apontam para diferenças importantes de visão de mundo, que vão muito além da política, mas que nela refletem. Se forem bem definidos, permanecem úteis ao debate. A distinção que faço entre esses dois campos tem a ver com a antropologia filosófica, ou concepção de homem, subjacente a cada um deles, que resultam em dois modos bem distintos de encarar a política. Essa diferença produz duas concepções de política radicalmente distintas, que, recorrendo a Michael Oakeshott, poderíamos glosar como política de fé (esquerda) e política do ceticismo (direita).
A política de fé é revolucionária, e acredita em rupturas definitivas via ação política, com a criação de uma nova ordem social a partir do zero (“nunca antes na história deste país” etc.), e até mesmo de uma nova humanidade, livre dos pecados e das impurezas advindos das configurações político-sociais anteriores. Essa visão da política implica uma gigantesca concentração de poder, e uma baixa disposição à negociação, já que os adversários não são vistos como partes numa disputa simétrica, mas como obstáculos no caminho, tão certo quanto necessário, rumo ao paraíso terrestre. Já a política do ceticismo é essencialmente antirrevolucionária. Para os adeptos dessa visão, não há, em política, soluções definitivas e sínteses superiores. Não há “avanço” e “retrocesso”. A política seria um diálogo interminável num mesmo plano, uma dialética sem síntese, por assim dizer, exercício de convivência dos heterogêneos e contrários. Os adversários políticos podem ser derrotados, mas nunca superados. E o passado, antes que obstáculo, serve de referência para as ações futuras.
Sua pergunta sobre esquerda e capitalismo de compadrio parte da premissa de que este é essencialmente anátema àquela. Isso pode ser verdade numa definição meramente enciclopédica de esquerda, mas não faz sentido do ponto de vista da experiência histórica. Vejo muita gente no Brasil, inclusive no campo liberal-conservador, comprando a tese de que, por haver governado em conluio com os grandes bancos e as grandes empreiteiras, o governo do PT não teria sido de esquerda, como se a aliança entre partidos socialistas e banqueiros fosse coisa inédita e intrinsecamente contraditória. Ora, essa contradição só existe no papel. O tipo de capitalismo monopolista de Estado praticado pela esquerda nacional foi muito similar ao que vicejava clandestinamente na própria URSS, dando origem a duas “classes” distintas: de um lado, a população comum, vítima da catástrofe econômica do sistema e refém da escassez de bens e produtos; de outro, a Nomenklatura bolchevique, que desfrutava de um rico e vasto mercado negro, consumindo os melhores e mais finos produtos vindos do estrangeiro.
Não se trata de nenhuma invenção do petismo, e muito menos de uma guinada à direita. Ele é resultado da própria lógica da esquerda revolucionária: para realizar o alegado propósito de distribuir a riqueza de forma igualitária, é preciso um poder gigantesco que se erga acima das “classes” existentes e, na base da força, tome a riqueza de uma e a transfira para a outra. Esse poder gigantesco concentra-se fatalmente no partido. Para a efetivação de tamanha concentração de poder, todo partido precisa, entre outras coisas, de dinheiro. Muito dinheiro! E o único sistema econômico no mundo a criar dinheiro é o sistema capitalista. Não existe essa coisa de economia socialista. Isso é uma contradição em termos. O próprio Lênin reconheceu a impossibilidade prática de uma economia inteiramente estatizada. E, de maneira inapelável, Ludwig von Mises demonstrou-o teoricamente na década de 1920. Logo, mesmo na URSS, sempre houve um misto de economia estatal e economia privada. O fato de comunistas e socialistas se renderem a contragosto à imperiosa necessidade de alguma economia de mercado não os transmuda automaticamente em “direitistas”.
É por isso que já vai fazer um século desde que a esquerda, especialmente com o chamado “marxismo ocidental”, passou a deixar de lado os aspectos econômicos do capitalismo, concentrando-se em vez disso no domínio da cultura, dos valores e do imaginário. E é nesse terreno cultural que se dá atualmente a disputa entre esquerda e direita. Se é verdade que o campo da direita praticamente não existe de modo formal e organizado, tanto em termos de representação político-partidária quanto termos de expressão cultural, o fato é que temos um povo majoritariamente conservador em termos de valores, mas que, por falta de opção, acaba muitas vezes votando em partidos e candidatos de esquerda. Há hoje em dia uma curiosa divisão na sociedade brasileira, em que sua elite cultural – academia, imprensa e meio artístico – tende à esquerda, e o povo tende à direita. Isso é muito visível em temas como o aborto, a diminuição da maioridade penal e o direito ao porte de arma, nos quais as posições respectivas do povo e da elite (entendida aqui não em sentido econômico) costumam ser diametralmente opostas.
Penso que aquela divisão tende a crescer. E aí voltamos ao tema da “guerra de todos contra todos”. Essa situação de um povo conservador e uma elite ultra-progressista obcecada em “educá-lo” é socialmente insustentável. Se os valores médios da população são desprezados por sua elite ao ponto de não terem mais quaisquer canais de expressão institucionais, eles vão encontrar alguma válvula de escape, e isso nem sempre é algo bonito de se ver. Penso, por exemplo, que o aumento na frequência de episódios de linchamento de criminosos é um sintoma desse processo.
Máquina de Escrever – Você acha que a sociedade brasileira é tolerante em relação a escândalos de corrupção?
Flávio Gordon – Não. Acho justamente o contrário: que somos particularmente sensíveis aos escândalos de corrupção, o que não é algo necessariamente positivo, sobretudo se contrastado com uma curiosa negligência em face de problemas mais graves. O Brasil é campeão absoluto no número de homicídios, com 60 mil ocorrências anuais, o que dá 30 mortes por 100 mil habitantes. Temos aí um morticínio que supera as cifras da maioria dos conflitos armados do mundo contemporâneo. Essa situação não se deu da noite para o dia, e deveria paralisar a sociedade em busca de uma solução. Trata-se do problema número um do país, porque é preciso estar vivo para dar conta dos demais. E, no entanto, não nos mobilizamos nesse terreno como o fazemos no caso da corrupção.
O mesmo se poderia dizer do nosso colapso educacional. Segundo dados recentes da OCDE, o Brasil é o terceiro país que mais investe em educação, com gastos públicos de mais de 6% do PIB, acima da média mundial. E, no entanto, os resultados são pífios. Nossos alunos ocupam sempre as últimas posições em testes internacionais como o PISA. Isso deveria suscitar manifestações recorrentes, mas nada acontece. O que vemos, em vez disso, é o sequestro dessa pauta por militantes políticos fanatizados, ligados a partidos de extrema-esquerda, que tentam nos convencer que o nosso principal problema é a falta de dinheiro.
Este é outro dos efeitos nocivos da corrupção da inteligência nacional: a consagração de uma imagem radicalmente materialista da realidade, que aqui terminou por degradar-se em dinheirismo. É triste o que vou dizer, mas parece que o bolso se tornou o nosso único órgão sensível. Esperneamos – não sem razão, convém esclarecer para evitar mal-entendidos – quando tomam nosso dinheiro, mas ficamos estranhamente apáticos quando nos tomam a vida e comprometem o futuro de nossos estudantes. Fremimos de indignação diante de um político corrupto, mas olhamos com uma certa indiferença e um senso de inevitabilidade para assassinos e estupradores. Execramos o PT mais por ter desviado dinheiro público do que por tê-lo usado para sustentar a ditadura chavista na Venezuela, que hoje, com a cumplicidade declarada da esquerda brasileira, massacra a sua população em plena luz do dia, cometendo as mais bárbaras violações dos direitos humanos. Parece mesmo haver algo de muito errado com a nossa indignação moral e senso de prioridades.
Máquina de Escrever – A universidade parece dominada por um pensamento hegemônico de esquerda, que se prolonga mesmo após o fim do ciclo lulopetista. Como se estabeleceu essa hegemonia no meio acadêmico e quais são os seus efeitos?
Flávio Gordon – Essa hegemonia de esquerda começou a se consolidar justamente no período militar, por paradoxal que isso possa parecer. O fenômeno foi reconhecido à época por intelectuais de esquerda como Roberto Schwarz, e, recentemente, por Vladimir Safatle. Num conhecido ensaio publicado em 1970, Schwarz começava por analisar os efeitos negativos imediatos do golpe de 1964 sobre as forças de esquerda, para em seguida ressalvar:
“Entretanto, para surpresa de todos, a presença cultural da esquerda não foi liquidada naquela data, e mais, de lá para cá não parou de crescer. A sua produção é de qualidade notável nalguns campos, e é dominante. Apesar da ditadura da direita, há relativa hegemonia cultural da esquerda no país. Pode ser vista nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estreias teatrais, incrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas de invasão policial, na movimentação estudantil ou nas proclamações do clero avançado. Em suma, nos santuários da cultura burguesa a esquerda dá o tom”.
Mas, ao contrário do que afirma Schwarz, a hegemonia cultural da esquerda não se deu “apesar da ditadura”, mas justamente por causa dela. Amadores que eram na guerra cultural, e obcecados com a esquerda política (e, sobretudo, armada), os militares subestimaram a assim chamada esquerda festiva justo no momento em que, por todo o mundo, a “festa” se convertia em luta, ou seja, em que a esquerda elegia a cultura como o terreno privilegiado da luta política. Não por acaso, alguns analistas do período, como o historiador Marcos Napolitano, falam numa “estranha derrota” experimentada pelos militares: vitoriosos política e militarmente, mas derrotados culturalmente de maneira fragorosa.
O grande responsável por entregar a cultura à esquerda foi o general Golbery do Couto e Silva, com a sua teoria da “panela de pressão”, apresentada na famosa palestra na Escola Superior de Guerra, em julho de 1980. Nela, Golbery comparava a história das nações ao ciclo cardíaco, que alterna entre momentos de contração (sístole) e descontração (diástole). Depois do período “sistólico” iniciado com a tomada do poder em 1964, ele advogava pela necessidade imperiosa de uma descompressão do regime. E, como válvula, elegeu logo a cultura, precisamente o campo em que a esquerda resolvera jogar.
Para se ter uma ideia do problema, basta dar uma vasculhada nos bancos de teses e dissertações da Capes, da BDTD (Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações) ou das nossas mais importantes universidades. Os principais autores do pensamento conservador são praticamente inexistentes aí. A grande maioria dos alunos jamais sequer ouviu falar desses nomes, quanto mais de suas ideias. Os trabalhos que mencionam alguns deles são raríssimos, dissolvendo-se como gotas de vinho num oceano de estudos devotados a Marx, Engels, Gramsci, Marcuse, Lukács, Althusser, Sartre, Foucault, Deleuze, Bourdieu e Paulo Freire. Dentro da academia, portanto, a direita não passa de uma assombração, produto de uma imaginação paroquial e autorreferente. Apenas uma irrisória minoria de acadêmicos travou contato direto com o pensamento de direita real, autoconsciente e historicamente identificável. No geral, a imagem da direita consagrada pela intelligentsia universitária é aquela rudimentarmente desenhada por seus críticos de esquerda.
Um desses críticos, um sociólogo aposentado da USP, teve a pachorra de, recentemente, sair-me com esta definição: “A direita é a direita violenta, o regime militar, que justifica toda a violência possível contra as pessoas e as práticas iníquas que você pode imaginar”. Ora, é claro que o sujeito não está descrevendo algum objeto do mundo real, mas dando vazão a um trauma político de juventude, na esperança de transmiti-lo às novas gerações. Estamos aí no terreno da psicanálise, não no da análise política. Ademais, não deixa de ser pitoresco ouvir um intelectual marxista tentar associar à direita contemporânea a violência de uma ditadura extinta há 30 anos justo quando a esquerda nacional em peso apoia incondicionalmente o regime brutal de Nicolás Maduro.
Máquina de Escrever – Ainda sobre os conceitos de direita e esquerda, queria que você comentasse duas frases do livro: 1) “A direita real foi banida e, na falta de exercício intelectual, a própria inteligência de esquerda atrofiou brutalmente”; 2) “A riquíssima história cultural brasileira foi assim reduzida a uma autobiografia da nossa esquerda política”.
Flávio Gordon – Sobre a primeira frase, refiro-me a esse processo de ensimesmamento da esquerda, que passou a falar apenas entre si, pregando para convertidos e debatendo-se com uma direita imaginária, fantasmagórica, por ela própria criada. A segunda tem relação com o mesmo processo. No livro, ela aparece no contexto de uma discussão sobre o empobrecimento da vida intelectual brasileira a partir dos anos 1960, fruto de uma politização radical da cultural. É digno de nota o contraste entre a quantidade, qualidade e, sobretudo, variedade político-ideológica dos nossos intelectuais públicos até mais ou menos a década de 1950 e a situação de hoje, em que impera uma acachapante pobreza intelectual e uma quase homogeneidade de ideias e valores no seio da classe falante.
Eu cito como exemplo os nomes elencados na lista de agradecimentos que Otto Maria Carpeaux fez publicar no prefácio do seu A Cinza do Purgatório, de 1942. Há aí intelectuais das mais diversas orientações políticas, ideológicas ou religiosas, de direita e de esquerda, comunistas e anticomunistas, cristãos e agnósticos. Todos talentosíssimos, e todos debatendo e dialogando francamente, sempre à vista do público. Ninguém se escandalizava com as opiniões alheias. Não havia a menor intenção de silenciá-las.
Dos anos 1960 em diante, aquele ambiente de alta cultura simplesmente ruiu. Tudo o que não fosse a imagem e semelhança do intelectual enragé de esquerda desapareceu do horizonte intelectual brasileiro. O debate de ideias no país foi gradualmente substituído cada vez mais por corporativismo e patrulhamento ideológico. Os militantes passaram a controlar os mecanismos de seleção e de distribuição do prestígio dentro das faculdades, editoras, produtoras de filmes, redações de jornal etc., promovendo, de um lado, o recrutamento preferencial de companheiros de ideologia e, de outro, o boicote sistemático dos que consideravam inimigos políticos, agrupados indistintamente sob o rótulo de “reacionários”.

Era como se quem fora perseguido se sentisse agora no direito de perseguir, lançando mão de mecanismos de difamação e silenciamento contra todo aquele que, em não sendo de esquerda, passou a ser maliciosamente associado ao regime caído, segundo um maniqueísmo que viria fatalmente a empobrecer a imaginação moral e o horizonte cultural das gerações futuras. Começava ali, na década de 1960, um processo que a crítica literária Eliane Robert Moraes, em referência à polêmica Bruno Tolentino vs. Augusto de Campos, chamou de “coronelismo intelectual”. Continuamos até hoje reféns desse ambiente culturalmente corrompido.

Lama no ventilador

Lama no ventilador

A delação premiadíssima dos irmãos Batista, com toda a carga de suspeitas que levantou, teve ao menos um efeito colateral positivo: obrigou o procurador-geral Rodrigo Janot a desengavetar denúncias que lá estavam há quase dois anos.

As denúncias contra os quadrilhões do PT e do PMDB misturam fatos antigos com outros recentes. Foi o meio que Janot encontrou de enquadrar o presidente da República, Michel Temer, que a lei exime de prestar contas de atos alheios e anteriores a seu mandato.

Mas a pressa, ainda que necessária, que Janot exibiu em relação a Temer, não a teve em relação a Lula, Dilma et caterva.

O caso Aluízio Mercadante, por exemplo, que tentou comprar o silêncio do ex-senador Delcídio do Amaral, que preparava delação premiada (a seguir feita), veio a público em março de 2016. Só agora Janot a encaminhou ao STF. Por quê?

Mercadante, que cometeu o mesmo delito que levou Delcídio à prisão sumária e à perda do mandato, não foi incomodado e exerceu seu cargo de ministro da Educação até a saída de Dilma.

Janot, a rigor, não incomodou nenhum dos governos do PT, pelos quais foi nomeado e renomeado.

Chegou a ser visto como um procurador do PT. Não explicou, até agora, por que incinerou a delação do ex-presidente da OAS, Leo Pinheiro, que tratava em minúcias de Lula e de um ministro do STF, Antonio Dias Toffoli. Sua atuação, até os 44 minutos do segundo tempo, esteve longe de mostrar isenção.

Ao sair, porém, em meio às trapalhadas (eufemismo de coisa bem mais séria) da delação dos irmãos Batista – e do comportamento que agora criminaliza de seu braço direito na PGR, Marcelo Miller -, decidiu jogar lama no ventilador.

E haja lama. O contribuinte, lesado por tudo quanto veio à tona, agradece. O problema é que a extensão do que remeteu ao STF faz prever encaminhamento lento e problemático. Por serem amplas demais, e documentadas de menos, as denúncias perdem clareza e objetividade. A defesa dos acusados agradece.

Janot viverá dias difíceis. Arranjou inimigos poderosos em todos os partidos. Mas o modo como o fez, de última hora e sem transparência em suas motivações, não o tornou um herói popular. Muito pelo contrário, o colocou sob suspeição.

Não terá, pois, a contrapartida que tem um Sérgio Moro, de compensar a ira dos poderosos com o apoio entusiástico da opinião pública. Inversamente, terá muito o que explicar, para fora e para dentro da PGR. Seu entorno na instituição está todo citado nos áudios de Joesley Batista e Ricardo Saud.

Ele, que inicialmente defendeu a probidade de Marcelo Miller, terminou por pedir-lhe a prisão. Tal como Lula, alegou que não sabia de nada, embora, por força do cargo que ocupava, devesse sabê-lo.

É a teoria do domínio do fato, que a PGR sustentou, com êxito, no Mensalão contra José Dirceu, levando-o à condenação.

O fato concreto é que, se o país já estava quase órfão de referências institucionais, agora ficou sem nenhuma. Os três Poderes estão, para dizer o mínimo, chamuscados com o que se extraiu das fitas de Joesley e Saud. E há mais, muito mais por vir, em áudios ainda não decodificados, em posse do STF.

Disso resultam urgências políticas, decorrentes da anomalia de um presidente da República, acusado de comandar uma quadrilha, continuar no cargo, em contraste com o rito judicial, lento, complexo e pouco confiável, incumbido de selar-lhe o destino.

O PT, que está em situação bem pior, já que sua quadrilha ficou com a parte do leão na rapina ao Estado, não hesita em insistir no “Fora, Temer!”. Pretende levá-lo com mais força às ruas, acreditando que até os antipetistas serão sensíveis ao apelo.

O certo é que a semana termina com extensa lista de ações da Justiça: O depoimento desastroso de Lula a Sérgio Moro; o agravamento da pena de José Dirceu e João Vaccari, no TRF 4 (para 40 anos), pendente ainda do voto de minerva; a rejeição unânime pelo STF da tentativa de Temer de colocar Janot sob suspeição; a prisão de Wesley Batista; a prisão do ex-governador Garotinho; a evidência de que Marcelo Miller era agente duplo (participava, inclusive, de um grupo no WhatsApp com o pessoal da JBS para tratar da delação junto à PGR). E a busca e apreensão no apartamento funcional do ministro da Agricultura, Blairo Maggi, acusado também de corrupção.


Diante de tal cenário, é absolutamente inviável especular sobre as eleições de 2018. Falta um ano – e até lá não se sabe quais serão os atores dessa peça de horrores a que o país assiste. Não se sabe sequer que partidos haverá - ou mesmo se haverá eleições.