A corrupção da inteligência’ critica o papel dos
intelectuais no Brasil
Luciano Trigo, Máquina de Escrever, G1, 20/08/2017
Se Flávio Gordon tiver razão, seu livro “A corrupção da
inteligência – Intelectuais e poder no Brasil” (Record, 364 pgs R$ 44,90) não
terá grande repercussão na mídia, já que, como ele escreve, as redações estão
dominadas faz tempo por profissionais ligados ao campo de esquerda que ele
critica. Os agentes da corrupção mais nociva ao Brasil, afirma, não são os
políticos nem os empresários, mas os intelectuais, aí incluídos os jornalistas,
além de professores e historiadores e da classe artística. Segundo o autor,
esse fenômeno da devastação da inteligência brasileira não é percebido pela
intelectualidade acadêmica e midiática pela simples razão de que essa mesma
intelectualidade é a sua protagonista.
“Eles são, ao mesmo tempo, os corruptos, os corruptores
e, paradoxalmente, as primeiras vítimas do fenômeno”, escreve Gordon.
Diferentemente da corrupção protagonizada por políticos, envolvendo a
roubalheira de bilhões de reais em recursos públicos em periódicos Mensalões e
Petrolões, a corrupção praticada pelos intelectuais “não é criminalizável,
porque não diz respeito a algo que os atores simplesmente fazem, mas a algo que
eles vieram a se tornar, algo que eles são e, em grande parte dos casos, não
conseguem deixar de ser. Trata-se de uma corrupção que envolve o intelecto e a
personalidade – uma corrupção da inteligência”.
Na entrevista a seguir, Gordon esclarece alguns pontos de
seu livro, lamenta a situação da universidade e reflete sobre a permanência dos
conceitos de direita e esquerda. Ambos – a entrevista e o livro – sinalizam que
a terra ainda não foi inteiramente devastada.
Máquina de Escrever – A corrupção da inteligência é mais
grave que a corrupção econômica? De que forma as duas se entrelaçam?
Flávio Gordon – Sim. É mais grave, porque seus efeitos
são mais duradouros, de longo prazo, e dificilmente reversíveis. É claro que a
corrupção tradicional causa um dano profundo e imediato na vida das pessoas.
Num país como o nosso, carente de infraestrutura, e cujas saúde, segurança e
educação públicas acham-se em estado calamitoso, o desvio de dinheiro tungado
do contribuinte para atender interesses partidários e pessoais é nada menos que
repugnante. Ainda assim, essas perdas podem ser revertidas – só a Operação
Lava-Jato, por exemplo, já conseguiu restituir cerca de R$ 10 bilhões aos
cofres públicos – e os responsáveis, eventualmente punidos e neutralizados. Já
a corrupção da inteligência causa danos permanentes para a cultura, debilitando
o intelecto e a imaginação dos indivíduos por muitas e muitas gerações.
O resultado daquele estreitamento é a balcanização social
e o sectarismo a que temos assistido no debate público brasileiro, fruto, a meu
ver, menos das polarizações político-partidárias recentes do que de um processo
de décadas de provincianismo cultural das nossas classes falantes –
intelectuais, jornalistas, artistas etc – que tomaram a decisão – se mais ou
menos consciente pouco importa – de romper os laços do país com a grande
tradição cultural do Ocidente em favor de uma pretensa “identidade nacional”
tão artificial quanto tacanha. A perda do sentido de nossa herança
civilizacional deu nesse ambiente cultural tribalizado, em que cada um fala a
sua própria língua e ninguém se entende, num verdadeiro diálogo de surdos. E,
ao menos quanto a esse estado de coisas, os nossos políticos e empresários
malfeitores estão isentos de culpa. Foram os nossos corruptos intelectuais os
responsáveis por ele.
O entrelaçamento entre as duas formas de corrupção deu-se
de maneira muito visível no modo sui generis como o PT a exerceu. Eu não teria
nada a objetar à afirmação de que a corrupção tradicional é praticada por todos
os partidos brasileiros. Mas isso não deveria nos impedir de ver que só um
deles, o PT – que, mais que um partido, eu prefiro tratar como uma “rede”, que
engloba outros partidos, movimentos e organizações sociais diversas – é
portador de uma ampla narrativa ideológica para justificá-la e até mesmo
enobrecê-la. Só o PT, fiel à tradição comunista-revolucionária de disfarçar o
seu mal com as cores do bem, pôde contar com um exército de artistas e
intelectuais a defender incondicionalmente os seus corruptos. Enquanto os
corruptos dos outros partidos demonstravam em público alguma vergonha, mesmo
que fingida, os do PT erguiam no ar o punho orgulhoso, sendo recebidos como
heróis no seio da militância. Delinquir em nome de um pretenso “bem” é sempre
muito pior do que delinquir simplesmente, e é isso que confere à corrupção
petista, a única amparada por um gigantesco exército de corruptos intelectuais,
seu sabor especificamente patológico e assustador.
Máquina de escrever – Qual foi o papel dos intelectuais e
artistas no processo que resultou no impeachment de Dilma Rousseff e na sua
consequência, o atual governo Temer. Como você explica esse comportamento? De
que forma ele se entrelaça com a ideia de uma hegemonia cultural?
Flávio Gordon – Foi o pior possível. Dentro da academia,
por exemplo, a narrativa farsesca de tratar o impeachment como golpe foi
sustentada pela esmagadora maioria dos corpos docente e discente. Houve
professores universitários caras-de-pau o bastante para equiparar o impeachment
ao nazismo, numa ofensa à memória das vítimas do Holocausto. Tivemos também
manifestações oficiais de reitores de universidades federais, que, naquela
típica confusão brasileira entre público e privado, usaram de suas posições
institucionais para manifestar um posicionamento político-partidário. É claro
que a maior parte das manifestações não vinham em trajes político-partidários
explícitos. Como todo discurso ideológico que se preze, este, frequentemente
precedido pelo introito “não sou petista, mas…” também era vendido ao público
como uma preocupação com a justiça, o equilíbrio e a isonomia.
Quem quer que tente compreender aquele comportamento como
expressão de uma doutrina político-partidária coerente deixará escapar o seu
aspecto essencial, qual seja o fato de estarmos aí diante de uma cultura política,
que ultrapassa em muito a esfera das escolhas racionais dos indivíduos. Uma
cultura política não pode ser compreendida como corpo doutrinal ou projeto de
poder aos quais uma pessoa adere de maneira consciente e plenamente voluntária,
como quem apanhasse produtos na prateleira do supermercado. Não se trata de um
objeto extrínseco situado no campo visual de um sujeito, mas, ao contrário, do
próprio campo visual pelo qual o sujeito contempla todo e qualquer objeto.
Sendo assim, noções tipicamente liberais tais como as de “escolha racional” e
“cálculo de interesses” são insuficientes para abarcar a política. Esta depende
de um complexo de valores, tradições, linguagem, simbolismos e representações
compartilhados, que consolidam uma identidade coletiva, uma memória social e um
fundamento para a ação prática.
Quem está dentro de uma cultura tende a reproduzir certos
comportamentos, e até mesmo sentimentos, de maneira automática, alheia a
tomadas de decisão voluntárias e individuais. O caso mais extremo de imperativo
cultural nesse sentido é a língua. Ninguém escolhe falar a sua língua nativa, e
seria impossível optar por recusá-la. E, dentro dos meios intelectuais e
artísticos brasileiros, sobretudo no interior da universidade, a cultura
política de esquerda é hegemônica. Nesse ambiente, alguém que se recuse a
reproduzir o comportamento, os maneirismos e o vocabulário consensualmente
admitidos pagará um pesado preço social, correndo o risco de romper com seu
ciclo de relações, do qual depende inclusive a continuidade da carreira. A
palavra-de-ordem “Impeachment é golpe!” está para a nossa cultura política
acadêmica assim como o arroz-e-feijão está para a nossa cultura gastronômica. E
o infante universitário só cresce e fica fortinho ingerindo generosas porções daquele
alimento ideológico.
No meio universitário brasileiro, e mais especificamente
no campo das ciências humanas, a opinião pública – ou seja, o conjunto de
“opiniões e comportamentos que podem ser exibidos em público sem o medo do
isolamento”, como define a cientista política Elisabeth Noelle-Neumann – é de
esquerda e, no caso que nos interessa aqui, simpática ao PT. Num tal contexto,
aos que pensam diferente restam duas opções: ou se calam e se acomodam à
cultura do entorno, tornando-se assim invisíveis e politicamente neutralizados,
ou enfrentam o isolamento. O mecanismo de isolamento é tanto mais eficaz quanto
mais insidioso, porque não se explicitam os termos da discordância política, e
o dissidente jamais é confrontado abertamente, tendo a chance se fazer ouvir,
mas gradativamente afastado da comunidade. É para evitar esse processo que a
maioria das pessoas se acomoda e acaba gritando (com maior ou menor entusiasmo)
que “foi golpe!”
Máquina de Escrever – Um traço marcante da crise atual é
a divisão do país, que parece passar do estágio do “nós contra eles” para o
“todos contra todos”, com minorias brigando contra minorias em meio a uma
politização de todos os aspectos da vida cotidiana. Você concorda?
Flávio Gordon – Sim, você tem toda a razão. Vejo o fenômeno
ocorrendo sobretudo no seio da militância política organizada. E era inevitável
que ocorresse, pois é da própria lógica do espírito revolucionário esse
processo de autofagia. Basta ver o que se passou com o jacobinismo durante a
Revolução Francesa. O mecanismo de depuração revolucionário ganhou vida
própria, e os jacobinos puseram-se a guilhotinar uns aos outros num verdadeiro
frenesi sanguinolento. O mesmo se deu nos regimes comunistas, especialmente com
Stalin. Quando se age com a convicção de ser o juiz da História e o responsável
pela criação de uma humanidade inteiramente renovada, é natural que se queira
eliminar os obstáculos ao paraíso terrestre. E, a depender das circunstâncias,
o demiurgo revolucionário de ontem será visto como o reacionário de amanhã.
No presente contexto histórico, temos assistido àquilo
que o crítico americano Bruce Bawer chamou de “a revolução das vítimas”. Quando
ser vítima passou a conferir poder político – como, por exemplo, o de falar sem
ser interrompido, ou o de receber benefícios reparadores – é natural que todos
desejem sê-lo. Vivemos em meio a um leilão ideológico em que já não se pergunta
“quem dá mais?”, mas, ao contrário, “quem dá menos?” É a balcanização cultural
a que me referi antes. Os grupos militantes passam a exigir representação
política, não nos termos da declaração universal dos direitos do homem, mas nos
termos do direito à diferença.
Todos querem diferir. Todos querem que a sua diferença
específica seja mais diferente que as demais. Todos são iguais nisso. As mais
excêntricas idiossincrasias, próprias a determinado “coletivo” ou “minoria”,
passam a ser reivindicadas – e, pior, reconhecidas! – como direitos naturais
inalienáveis. Para cada uma das categorias coletivas em conflito, toda a
realidade está circunscrita aos seus objetivos políticos imediatos, que
adquirem, portanto, um caráter quase metafísico. O diálogo aí é impossível, porque
cada “coletivo” fala sua novilíngua particular.
Apesar da situação algo preocupante, confesso me divertir
diante de cada nova batalha nessa “grande guerra das minorias”, como quando o
deputado e ex-BBB Jean Wyllys, do PSOL, foi torpedeado por membros do movimento
negro, que, apelando ao mesmíssimo estilo retórico que o psolista não se cansa
de usar contra desafetos políticos, o acusaram de ser um racista velado. Quem
sabe se, concentrando todas as energias em devorar-se mutuamente, esses
profissionais da vitimização não deixem em paz os demais brasileiros, que
precisam pagar as contas, e para quem o sentido da vida não se esgota na
militância político-ideológica?
Máquina de Escrever – Os conceitos de direita e esquerda
são mesmo válidos em um país no qual o campo da esquerda estimula o capitalismo
de compadrio e o campo da direita praticamente não existe? Essa nomenclatura
ajuda ou atrapalha o debate?
Flávio Gordon – Sim, esses conceitos apontam para
diferenças importantes de visão de mundo, que vão muito além da política, mas
que nela refletem. Se forem bem definidos, permanecem úteis ao debate. A
distinção que faço entre esses dois campos tem a ver com a antropologia
filosófica, ou concepção de homem, subjacente a cada um deles, que resultam em
dois modos bem distintos de encarar a política. Essa diferença produz duas
concepções de política radicalmente distintas, que, recorrendo a Michael
Oakeshott, poderíamos glosar como política de fé (esquerda) e política do
ceticismo (direita).
A política de fé é revolucionária, e acredita em rupturas
definitivas via ação política, com a criação de uma nova ordem social a partir
do zero (“nunca antes na história deste país” etc.), e até mesmo de uma nova
humanidade, livre dos pecados e das impurezas advindos das configurações
político-sociais anteriores. Essa visão da política implica uma gigantesca
concentração de poder, e uma baixa disposição à negociação, já que os
adversários não são vistos como partes numa disputa simétrica, mas como
obstáculos no caminho, tão certo quanto necessário, rumo ao paraíso terrestre.
Já a política do ceticismo é essencialmente antirrevolucionária. Para os
adeptos dessa visão, não há, em política, soluções definitivas e sínteses
superiores. Não há “avanço” e “retrocesso”. A política seria um diálogo
interminável num mesmo plano, uma dialética sem síntese, por assim dizer,
exercício de convivência dos heterogêneos e contrários. Os adversários
políticos podem ser derrotados, mas nunca superados. E o passado, antes que
obstáculo, serve de referência para as ações futuras.
Sua pergunta sobre esquerda e capitalismo de compadrio
parte da premissa de que este é essencialmente anátema àquela. Isso pode ser
verdade numa definição meramente enciclopédica de esquerda, mas não faz sentido
do ponto de vista da experiência histórica. Vejo muita gente no Brasil,
inclusive no campo liberal-conservador, comprando a tese de que, por haver
governado em conluio com os grandes bancos e as grandes empreiteiras, o governo
do PT não teria sido de esquerda, como se a aliança entre partidos socialistas
e banqueiros fosse coisa inédita e intrinsecamente contraditória. Ora, essa
contradição só existe no papel. O tipo de capitalismo monopolista de Estado
praticado pela esquerda nacional foi muito similar ao que vicejava clandestinamente
na própria URSS, dando origem a duas “classes” distintas: de um lado, a
população comum, vítima da catástrofe econômica do sistema e refém da escassez
de bens e produtos; de outro, a Nomenklatura bolchevique, que desfrutava de um
rico e vasto mercado negro, consumindo os melhores e mais finos produtos vindos
do estrangeiro.
Não se trata de nenhuma invenção do petismo, e muito
menos de uma guinada à direita. Ele é resultado da própria lógica da esquerda
revolucionária: para realizar o alegado propósito de distribuir a riqueza de
forma igualitária, é preciso um poder gigantesco que se erga acima das
“classes” existentes e, na base da força, tome a riqueza de uma e a transfira
para a outra. Esse poder gigantesco concentra-se fatalmente no partido. Para a
efetivação de tamanha concentração de poder, todo partido precisa, entre outras
coisas, de dinheiro. Muito dinheiro! E o único sistema econômico no mundo a
criar dinheiro é o sistema capitalista. Não existe essa coisa de economia
socialista. Isso é uma contradição em termos. O próprio Lênin reconheceu a
impossibilidade prática de uma economia inteiramente estatizada. E, de maneira
inapelável, Ludwig von Mises demonstrou-o teoricamente na década de 1920. Logo,
mesmo na URSS, sempre houve um misto de economia estatal e economia privada. O
fato de comunistas e socialistas se renderem a contragosto à imperiosa
necessidade de alguma economia de mercado não os transmuda automaticamente em
“direitistas”.
É por isso que já vai fazer um século desde que a esquerda,
especialmente com o chamado “marxismo ocidental”, passou a deixar de lado os
aspectos econômicos do capitalismo, concentrando-se em vez disso no domínio da
cultura, dos valores e do imaginário. E é nesse terreno cultural que se dá
atualmente a disputa entre esquerda e direita. Se é verdade que o campo da
direita praticamente não existe de modo formal e organizado, tanto em termos de
representação político-partidária quanto termos de expressão cultural, o fato é
que temos um povo majoritariamente conservador em termos de valores, mas que,
por falta de opção, acaba muitas vezes votando em partidos e candidatos de
esquerda. Há hoje em dia uma curiosa divisão na sociedade brasileira, em que
sua elite cultural – academia, imprensa e meio artístico – tende à esquerda, e
o povo tende à direita. Isso é muito visível em temas como o aborto, a
diminuição da maioridade penal e o direito ao porte de arma, nos quais as
posições respectivas do povo e da elite (entendida aqui não em sentido
econômico) costumam ser diametralmente opostas.
Penso que aquela divisão tende a crescer. E aí voltamos
ao tema da “guerra de todos contra todos”. Essa situação de um povo conservador
e uma elite ultra-progressista obcecada em “educá-lo” é socialmente
insustentável. Se os valores médios da população são desprezados por sua elite
ao ponto de não terem mais quaisquer canais de expressão institucionais, eles
vão encontrar alguma válvula de escape, e isso nem sempre é algo bonito de se
ver. Penso, por exemplo, que o aumento na frequência de episódios de
linchamento de criminosos é um sintoma desse processo.
Máquina de Escrever – Você acha que a sociedade
brasileira é tolerante em relação a escândalos de corrupção?
Flávio Gordon – Não. Acho justamente o contrário: que
somos particularmente sensíveis aos escândalos de corrupção, o que não é algo
necessariamente positivo, sobretudo se contrastado com uma curiosa negligência
em face de problemas mais graves. O Brasil é campeão absoluto no número de
homicídios, com 60 mil ocorrências anuais, o que dá 30 mortes por 100 mil
habitantes. Temos aí um morticínio que supera as cifras da maioria dos
conflitos armados do mundo contemporâneo. Essa situação não se deu da noite
para o dia, e deveria paralisar a sociedade em busca de uma solução. Trata-se
do problema número um do país, porque é preciso estar vivo para dar conta dos
demais. E, no entanto, não nos mobilizamos nesse terreno como o fazemos no caso
da corrupção.
O mesmo se poderia dizer do nosso colapso educacional.
Segundo dados recentes da OCDE, o Brasil é o terceiro país que mais investe em
educação, com gastos públicos de mais de 6% do PIB, acima da média mundial. E,
no entanto, os resultados são pífios. Nossos alunos ocupam sempre as últimas
posições em testes internacionais como o PISA. Isso deveria suscitar
manifestações recorrentes, mas nada acontece. O que vemos, em vez disso, é o
sequestro dessa pauta por militantes políticos fanatizados, ligados a partidos
de extrema-esquerda, que tentam nos convencer que o nosso principal problema é
a falta de dinheiro.
Este é outro dos efeitos nocivos da corrupção da
inteligência nacional: a consagração de uma imagem radicalmente materialista da
realidade, que aqui terminou por degradar-se em dinheirismo. É triste o que vou
dizer, mas parece que o bolso se tornou o nosso único órgão sensível.
Esperneamos – não sem razão, convém esclarecer para evitar mal-entendidos –
quando tomam nosso dinheiro, mas ficamos estranhamente apáticos quando nos
tomam a vida e comprometem o futuro de nossos estudantes. Fremimos de
indignação diante de um político corrupto, mas olhamos com uma certa
indiferença e um senso de inevitabilidade para assassinos e estupradores.
Execramos o PT mais por ter desviado dinheiro público do que por tê-lo usado
para sustentar a ditadura chavista na Venezuela, que hoje, com a cumplicidade
declarada da esquerda brasileira, massacra a sua população em plena luz do dia,
cometendo as mais bárbaras violações dos direitos humanos. Parece mesmo haver
algo de muito errado com a nossa indignação moral e senso de prioridades.
Máquina de Escrever – A universidade parece dominada por
um pensamento hegemônico de esquerda, que se prolonga mesmo após o fim do ciclo
lulopetista. Como se estabeleceu essa hegemonia no meio acadêmico e quais são
os seus efeitos?
Flávio Gordon – Essa hegemonia de esquerda começou a se
consolidar justamente no período militar, por paradoxal que isso possa parecer.
O fenômeno foi reconhecido à época por intelectuais de esquerda como Roberto
Schwarz, e, recentemente, por Vladimir Safatle. Num conhecido ensaio publicado
em 1970, Schwarz começava por analisar os efeitos negativos imediatos do golpe
de 1964 sobre as forças de esquerda, para em seguida ressalvar:
“Entretanto, para surpresa de todos, a presença cultural
da esquerda não foi liquidada naquela data, e mais, de lá para cá não parou de
crescer. A sua produção é de qualidade notável nalguns campos, e é dominante.
Apesar da ditadura da direita, há relativa hegemonia cultural da esquerda no
país. Pode ser vista nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas
estreias teatrais, incrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas de
invasão policial, na movimentação estudantil ou nas proclamações do clero
avançado. Em suma, nos santuários da cultura burguesa a esquerda dá o tom”.
Mas, ao contrário do que afirma Schwarz, a hegemonia
cultural da esquerda não se deu “apesar da ditadura”, mas justamente por causa
dela. Amadores que eram na guerra cultural, e obcecados com a esquerda política
(e, sobretudo, armada), os militares subestimaram a assim chamada esquerda
festiva justo no momento em que, por todo o mundo, a “festa” se convertia em
luta, ou seja, em que a esquerda elegia a cultura como o terreno privilegiado
da luta política. Não por acaso, alguns analistas do período, como o
historiador Marcos Napolitano, falam numa “estranha derrota” experimentada
pelos militares: vitoriosos política e militarmente, mas derrotados
culturalmente de maneira fragorosa.
O grande responsável por entregar a cultura à esquerda
foi o general Golbery do Couto e Silva, com a sua teoria da “panela de
pressão”, apresentada na famosa palestra na Escola Superior de Guerra, em julho
de 1980. Nela, Golbery comparava a história das nações ao ciclo cardíaco, que
alterna entre momentos de contração (sístole) e descontração (diástole). Depois
do período “sistólico” iniciado com a tomada do poder em 1964, ele advogava
pela necessidade imperiosa de uma descompressão do regime. E, como válvula,
elegeu logo a cultura, precisamente o campo em que a esquerda resolvera jogar.
Para se ter uma ideia do problema, basta dar uma
vasculhada nos bancos de teses e dissertações da Capes, da BDTD (Biblioteca
Digital Brasileira de Teses e Dissertações) ou das nossas mais importantes
universidades. Os principais autores do pensamento conservador são praticamente
inexistentes aí. A grande maioria dos alunos jamais sequer ouviu falar desses
nomes, quanto mais de suas ideias. Os trabalhos que mencionam alguns deles são
raríssimos, dissolvendo-se como gotas de vinho num oceano de estudos devotados
a Marx, Engels, Gramsci, Marcuse, Lukács, Althusser, Sartre, Foucault, Deleuze,
Bourdieu e Paulo Freire. Dentro da academia, portanto, a direita não passa de
uma assombração, produto de uma imaginação paroquial e autorreferente. Apenas
uma irrisória minoria de acadêmicos travou contato direto com o pensamento de
direita real, autoconsciente e historicamente identificável. No geral, a imagem
da direita consagrada pela intelligentsia universitária é aquela
rudimentarmente desenhada por seus críticos de esquerda.
Um desses críticos, um sociólogo aposentado da USP, teve
a pachorra de, recentemente, sair-me com esta definição: “A direita é a direita
violenta, o regime militar, que justifica toda a violência possível contra as
pessoas e as práticas iníquas que você pode imaginar”. Ora, é claro que o
sujeito não está descrevendo algum objeto do mundo real, mas dando vazão a um
trauma político de juventude, na esperança de transmiti-lo às novas gerações.
Estamos aí no terreno da psicanálise, não no da análise política. Ademais, não
deixa de ser pitoresco ouvir um intelectual marxista tentar associar à direita
contemporânea a violência de uma ditadura extinta há 30 anos justo quando a
esquerda nacional em peso apoia incondicionalmente o regime brutal de Nicolás
Maduro.
Máquina de Escrever – Ainda sobre os conceitos de direita
e esquerda, queria que você comentasse duas frases do livro: 1) “A direita real
foi banida e, na falta de exercício intelectual, a própria inteligência de
esquerda atrofiou brutalmente”; 2) “A riquíssima história cultural brasileira
foi assim reduzida a uma autobiografia da nossa esquerda política”.
Flávio Gordon – Sobre a primeira frase, refiro-me a esse
processo de ensimesmamento da esquerda, que passou a falar apenas entre si, pregando
para convertidos e debatendo-se com uma direita imaginária, fantasmagórica, por
ela própria criada. A segunda tem relação com o mesmo processo. No livro, ela
aparece no contexto de uma discussão sobre o empobrecimento da vida intelectual
brasileira a partir dos anos 1960, fruto de uma politização radical da
cultural. É digno de nota o contraste entre a quantidade, qualidade e,
sobretudo, variedade político-ideológica dos nossos intelectuais públicos até
mais ou menos a década de 1950 e a situação de hoje, em que impera uma
acachapante pobreza intelectual e uma quase homogeneidade de ideias e valores
no seio da classe falante.
Eu cito como exemplo os nomes elencados na lista de
agradecimentos que Otto Maria Carpeaux fez publicar no prefácio do seu A Cinza
do Purgatório, de 1942. Há aí intelectuais das mais diversas orientações
políticas, ideológicas ou religiosas, de direita e de esquerda, comunistas e
anticomunistas, cristãos e agnósticos. Todos talentosíssimos, e todos debatendo
e dialogando francamente, sempre à vista do público. Ninguém se escandalizava
com as opiniões alheias. Não havia a menor intenção de silenciá-las.
Dos anos 1960 em diante, aquele ambiente de alta cultura
simplesmente ruiu. Tudo o que não fosse a imagem e semelhança do intelectual
enragé de esquerda desapareceu do horizonte intelectual brasileiro. O debate de
ideias no país foi gradualmente substituído cada vez mais por corporativismo e
patrulhamento ideológico. Os militantes passaram a controlar os mecanismos de
seleção e de distribuição do prestígio dentro das faculdades, editoras,
produtoras de filmes, redações de jornal etc., promovendo, de um lado, o
recrutamento preferencial de companheiros de ideologia e, de outro, o boicote
sistemático dos que consideravam inimigos políticos, agrupados indistintamente
sob o rótulo de “reacionários”.
Era como se quem fora perseguido se sentisse agora no
direito de perseguir, lançando mão de mecanismos de difamação e silenciamento
contra todo aquele que, em não sendo de esquerda, passou a ser maliciosamente
associado ao regime caído, segundo um maniqueísmo que viria fatalmente a
empobrecer a imaginação moral e o horizonte cultural das gerações futuras.
Começava ali, na década de 1960, um processo que a crítica literária Eliane
Robert Moraes, em referência à polêmica Bruno Tolentino vs. Augusto de Campos,
chamou de “coronelismo intelectual”. Continuamos até hoje reféns desse ambiente
culturalmente corrompido.