O governo divulgou na semana passada o texto da proposta
de emenda à constituição (PEC) que limita o avanço do gasto primário -isto é, o
gasto que exclui pagamento de juros- à inflação do ano anterior.
A PEC é uma primeira resposta ao desequilíbrio das contas
públicas, que está na origem da crise atual: crescimento real do gasto público
de 6% anuais por 20 anos, quando, no mesmo período, a economia cresceu a uma
média de pouco menos de 3%. Essa trajetória é insustentável.
Surpreende que alguns considerem que o objetivo da PEC
seja destruir a Constituição de 1988. Eles ignoraram que, nos anos que se
seguiram à promulgação da Carta, houve grande piora dos indicadores sociais em
decorrência da aceleração inflacionária no fim do governo Sarney e no governo
Collor.
Apenas após a estabilização da economia, em 1994,
assistimos a uma expressiva queda da desigualdade e da extrema pobreza.
A continuar a trajetória de aumento do gasto público
acima do crescimento da renda, o endividamento crescente do país resultará em insolvência,
na incapacidade do setor público em cumprir suas obrigações e na retomada da
inflação crônica nos anos à frente. Nada pior para os indicadores sociais do
que estagnação com inflação.
O que se deseja com a PEC, portanto, é o oposto do que
alguns apregoam. O objetivo é criar as condições para que o desajuste
macroeconômico produzido de 2009 até 2014 não comprometa os ganhos sociais que
tivemos até aqui.
Qual é o motivo de a PEC não limitar o gasto com juros?
A taxa neutra de juros é aquela compatível com pleno
emprego e baixos níveis de inflação. Por diversas razões nossa taxa neutra é
elevada. Caso o governo opte por uma taxa de juros abaixo da taxa neutra, o
resultado é o aumento da inflação, que, além de tudo, prejudica o crescimento a
médio prazo, além de aumentar a desigualdade.
Aliás, foi exatamente isso que ocorreu quando o Banco
Central baixou as taxas de juros significativamente em 2011. A inflação dos
preços livres chegou a 15% ao ano, e a economia desacelerou nos anos seguintes.
Para agravar o quadro, com a deterioração fiscal, a taxa
neutra aumentou nos últimos anos. Para evitar inflação elevada, precisamos
agora de juros ainda maiores do que no fim do governo Lula.
Ao contrário, a boa gestão fiscal na década de 2000, em
conjunto com o boom de commodities e diversas reformas institucionais, resultou
na progressiva queda da taxa neutra, no maior crescimento econômico e na
melhora dos indicadores sociais.
Evidentemente, se a dívida pública crescer muito, o BC
perderá a capacidade de utilizar a taxa de juros para controlar a inflação.
Atingiremos o ponto conhecido por dominância fiscal e seremos obrigados a
aceitar a escalada inflacionária.
Não chegamos lá ainda, mas estamos nos aproximando. Se
algo muito drástico não for feito, iremos para lá.
Nossa sociedade já se jogou no abismo inflacionário nos
anos 1980 e, desde o começo desta década, começou uma nova queda livre no mesmo
precipício. Já contratamos aceleração inflacionária para daqui a quatro ou
cinco anos. A PEC é um primeiro passo –de muitos necessários–, representando
uma corda que o governo jogou e que a sociedade pode ou não agarrar. Se não
agarrar, teremos de conviver novamente com inflação crônica e seus imensos
custos sociais. Cabe a nós escolhermos se retornamos aos anos 2000 ou aos anos
1980.
Samuel Pessôa, formado em física e doutor em economia
pela USP, é pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da FGV. Escreve aos
domingos nesta coluna.