Quem acha que a internet já provocou mudanças demais
ainda não viu nada
Uma das questões mais difíceis para a internet hoje é o
tema da identidade. Dá para dizer que há uma verdadeira corrida para ver quem
vai ser capaz de certificar a identidade de usuários digitalmente, com validade
na rede e fora dela.
A razão para isso é que a arquitetura da internet não foi
feita para identificar pessoas. A rede é capaz de identificar máquinas que se
conectam a ela. Mas não tem como autenticar as pessoas que estão usando essas
máquinas.
Isso aumenta a atenção sobre o anúncio, na semana
passada, do lançamento do projeto Libra por parte do Facebook.
Um dos componentes do projeto é justamente a criação de
um mecanismo de identificação dos usuários. O que faz sentido.
Quando se faz uma transferência financeira pela internet,
é importante saber que quem de fato está do outro lado para receber os
recursos.
Para além do Libra, há diversas iniciativas trabalhando
com a construção de modelos de certificação de identidade online.
Um exemplo é a Fundação Sovereign, que criou um modelo
baseado em blockchain capaz de certificar identidades de forma aberta, dinâmica
e independente de documentos estatais.
O modelo empregado é o que se chama de “identidade
autossoberana”, em referência ao seu caráter descentralizado.
Nesse modelo, os atributos de uma pessoa (como diplomas,
fluência em línguas, nacionalidade, idade e outros) são confirmados de forma
aberta por qualquer indivíduo, sem a necessidade de uma autoridade central.
Dá até para dizer que está começando a surgir uma dicotomia
global entre serviços da internet em que os usuários são identificados e os que
os usuários são indeterminados.
Na primeira categoria estão aqueles que aplicam algum
grau de certificação de identidade. Na segunda estão aqueles que se satisfazem
com uma autodeclaração do usuário, ou procedimentos mais simples como um
endereço de email, ou, quando muito, um número de telefone.
Hoje, cada vez mais serviços caminham para implementar
formas de identificação. Na Ásia, os serviços mais novos de livestreaming na
China, na Coreia do Sul e no Japão exigem identificação mais elevada do
usuário.
Para assistir a conteúdos, a identificação continua sendo
simples. No entanto, para transmitir pela plataforma, várias regras se aplicam.
É preciso vincular a conta a um número de telefone e até a uma identidade
governamental. É preciso usar a plataforma por ao menos uma hora diária por
sete dias. É preciso ter ao menos sete seguidores reais.
E, na dúvida, a plataforma pode pedir que uma outra
pessoa “real”, já certificada, avalize o novo usuário, afirmando que ele é real
(e se responsabilizando por essa afirmação).
Essas medidas dificultam, por exemplo, o uso de robôs e
contas automatizadas. Mais do que isso, na medida em que a internet vai se
transformando cada vez mais em uma rede em que trafegam transações financeiras
e outras funções críticas, passa a ser importante reforçar a camada de
autenticação dos usuários.
As repercussões dessa mudança não são triviais. Produzem
impacto sobre governo, comércio, a própria ordem internacional e o potencial de
desencadeamento de novas forças disruptivas.
Quem acha que a internet já provocou mudanças demais
ainda não viu nada.
Ronaldo Lemos
Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade
do Rio de Janeiro